quinta-feira, 7 de julho de 2016

O rádio faz história:sonoplastia




Para ilustrar o blog do programa, há um vídeo americano sensacional.https://mail.google.com/mail/u/0/#inbox/150dcd96ae91a79f?projector=1


Não é preciso dizer que o objetivo da sonoplastia que cria mesmo um clima de suspense no seriado Teatro de Mistério da Rádio Nacional, de Hélio do Soveral. A sonoplastia, que os antigos radialistas chamavam de “decoração sonora”, foi um recurso usado timidamente nos primeiros radioteatros, nos anos 30, e que depois foi crescendo de importância com a estreia das radionovelas, em 1936. A primeira de todas,  Em busca da felicidade, na Rádio Nacional, fez  sucesso absoluto por vários motivos. Roteiros bem escritos e adaptados ao gosto romântico da época, atores excelentes, donos de vozes diferentes e impactantes, direção bem feita, músicos que executavam os trechos escolhidos a ao vivo, e, lógico, uma eficaz sonoplastia.

Em 1940, a Rádio Nacional foi incorporada às empresas da União.
Havia uma dívida dos antigos donos e o Governo do Estado Novo, de
Getúlio Vargas,  decidiu ter a sua própria estação de rádio.  Assim, a
Nacional ganhou investimentos que superaram os de qualquer outra
emissora brasileira. Como era do governo, a Nacional podia importar
aparelhos, discos, contratar artistas com muita mais facilidade e
recursos. Mas dependia dos anunciantes que, nos anos 40, estavam muito interessados na grande força que a emissora conquistou ao longo da década de ouro.

Foi construída uma pequena casa no amplo estúdio de radioteatro na
Praça Mauá para abrigar todos os aparelhos, gadgets e objetos que
podiam produzir os sons a pedido de um autor ou diretor. No Estúdio
Vitor Costa, a construção ficava  ao fundo e próxima aos microfones
onde os atores interpretavam os seus papéis. Havia chão de cascalho,
pedra, areia, vários tipos de campainha: da manual à elétrica. E não
só isso: estavam lá os antigos telefones, placas de metal para
reproduzir raios e trovões, gavetas, apitos, um número eclético de
invenções feitas pelos próprios funcionários da Nacional.  Tudo
arrumado na casinha, caso fosse preciso recorrer aos sons que
produziam.

Contrarregras como Jorge Bico, Geraldo José e Gerdal dos Santos  
recebiam o mesmo script dos atores e do diretor. A partir das
indicações, começavam a buscar os sons que teriam que
acrescentar na transmissão ao vivo. Não havia gravação de
novelas naquela época. Era mesmo tudo ao vivo, correndo todos os
riscos. E, claro, também não havia computadores que pudessem fazer
esse papel tão importante de sonoplastia.

Não eram só os ruídos de portas se fechando, escadas rangentes,
rodas de ferro, cavalos relinchando, galinhas e galos cantando, ou
vários tipos de passarinho com seus pios. Havia o som do suspense,
do amor, da raiva, do encontro e do desencontro. A música ajudava a
embalar o produto e dava um laço de ouro à transmissão. Vamos
ouvir um pouco dos sons no seriado Sombra. Produção importada
dos Estados Unidos, chamada lá de The Shadow, foi um primor de
efeitos sonoros.
        
Na história, o policial, interpretado por Saint Clair Lopes, no Brasil, e
Orson Welles, nos Estados Unidos, conseguia ficar transparente e
entrar em todos os recintos dos bandidos. Por isso, esse agente da lei
resolvia os casos mais escabrosos.  Vocês podem ouvir primeiramente, a versão americana de 1938, que foi interpretada pelo famoso Welles.

The Shadow
https://www.youtube.com/watch?v=-scB7ndNUVQ&list=PL7nfByN4jYSM7HjwZyvGKX5RkUQR3dDwj


Agora, vamos à parte sonora de um programa sobre a Rádio Nacional  em que o sonoplasta Geral dos Santos apresenta os objetos que
reproduzem os ruídos. O áudio começa com a abertura da novela Em
busca da Felicidade e acaba com a versão do Sombra de Saint Clair
Lopes.

YOUTUBE: RÁDIO NACIONAL - RADIONOVELAS - STV . De 0:19 a 1:45.
https://www.youtube.com/watch?v=SGCBIFLUq8E (não é o primeiro item da página)


Sem imagens para ver – a TV só começou no Brasil em 1950, em São Paulo, e 1951, no Rio de Janeiro - o rádio obrigava o público a usar a imaginação. Com o sucesso da primeira novela, foi-se emendando uma na outra, em vários horários. A Nacional se tornou uma fábrica de radionovelas, com gigantesco elenco de atores, diretores e sonoplastas. Só para se ter uma ideia: a Nacional transmitiu 861 novelas, ao longo de menos de duas décadas. Faziam  sucesso em todo o país.

Uma novela de sucesso, como a versão da cubana O direito de nascer, de 1951, teve 260 capítulos de muito sofrimento e dor. Na sonoplastia, estavam Lourival Faissal, Gurgel de Castro e Manoel Coutinho. A protagonista solteira se apaixonou por um homem casado e deu um “mau passo”, como se dizia então. Engravidou e esse “filho do pecado”, o famoso Albertinho Limonta. O menino foi entregue para a empregada da família com o pedido que ela o criasse. Amargurada, a moça se recolheu a um convento.

Os seriados também usavam muito os recursos da sonoplastia. Jerônimo, Herói do Sertão, incluía tiros, cavalos e portas se abrindo e se fechando.  Durante 14 anos e 3.276 capítulos, o seriado foi ao ar de segunda a sexta, às 18h35, e dava muito trabalho aos sonoplastas. Vamos ouvir um trechinho da obra de Moysés Weltman?

YOUTUBE: De 9: 29 a 10:46. Jerônimo, o Herói do Sertão - Radio Nacional (1958) EP 01

O humor, principalmente, Lauro Borges e Castro Barbosa capricharam no PRK 30. Eles mesmos faziam a sonoplastia. E eram geniais. PRK 30 – YOUTUBE: PRK-30 - Aula de ginástica, de 0 a 1:16. https://www.youtube.com/watch?v=6TlG8BuQK5A
Ouça mais um trecho de Gerdal dos Santos fazendo passos de mulher,
portas se abrindo e fechando na reconstituição da novela Mentira de amor, em
que antigos atores da emissora, como Daisy Lúcidi, voltaram a interpretar anos
depois da primeira irradiação.

 YOUTUBE. DE 3:33 A 4:20. RÁDIO NACIONAL - RADIONOVELAS - STV


O jornalismo, durante a Segunda Guerra, precisava sensibilizar os ouvintes para a situação na Europa. As bombas lançadas em Londres, ou em alto-mar, significavam destruição, medo. Criou-se na sonoplastia esses mesmos sons, o  clima de medo e apreensão mundial. O ruído de aviões reproduzia esses momentos do conflito, a milhares de quilômetros do Brasil.  Vamos ouvir sinos de uma igreja comemorando o fim da guerra, no Repórter Esso, que tinha uma abertura espetacular, com sentido de urgência e atenção.

YOUTUBE  https://www.youtube.com/watch?v=F4EgnI1AuUY&list=PLm1Pw9je28TStw0NaGeG6DXRDd44DmO9e&index=2



 

José de Vasconcelos: humorista politicamente incorreto



Rose Esquenazi



     Hoje vamos falar de José Thomaz da Cunha Vasconcellos Neto, um comediante que fez muito sucesso no rádio e na TV. José de Vasconcelos nasceu no dia 20 de março de 1926, em Rio Branco, no Acre, e morreu aos 85 anos em São Paulo, em 11/10/2011, na sua casa em Itatiba. Ele começou no rádio, em 1941, no programa Papel Carbono, de Renato Murce. No programa, os calouros tentavam imitar a voz e a interpretação de cantores, animadores e locutores de futebol. Aos 18 anos, imitando a estranha e esganiçada voz de Ary Barroso, José de Vasconcelos conseguiu seu lugar na galeria do humor. Foi aprovado. Ary era politicamente incorreto nos campos de futebol dos anos 30, sempre torcendo pelo Flamengo abertamente. Esse posicionamento vai contra a tentativa de neutralidade que um profissional deve ter. Só para situar, Renato Murce foi um pioneiro do rádio e seguindo a onda dos programas de calouros, lançou o dele querendo descobrir talentos. Muitos achavam que precisariam copiar as grandes vozes de cantores e cantoras da época de ouro. Mas Murce disse que foi mal compreendido, ele só queria novatos talentosos.


     Anos mais tarde, Ary e José ficaram amigos e se divertiram muito juntos no rádio. No documentário Ele É o Espetáculo, de Jean Carlo Szepilovski, o próprio José contou que os dois juntos fizeram misérias juntos. Mas era tudo por amor porque gostavam mesmo do trabalho que faziam. José de Vasconcelos também copiava a voz de outros personagens do rádio, como Theófilo de Vasconcelos, locutor de turfe pela Rádio Jornal do Brasil. Imitava a famosa dupla da Rádio Nacional, os humoristas Lauro Borges e Castro Barbosa, da PRK-30, e locutores sérios de vozes graves, como o Luiz Jatobá. Vamos ouvir o humorista José de Vasconcelos imitando a voz de Ary Barroso.
De 0:48 a 1:40

     José de Vasconcelos não tinha vergonha de dizer que era bom profissional e muito bagunceiro também. Tirava graça de tudo e mesmo quem não pudesse ver as suas expressões que ele fazia, tipo caretas à la Jerry Lewis, se divertia com ele. José sabia se fazer entender pelas ondas radiofônicas. No documentário Ele É o Espetáculo, de 2009, Vasconcelos contou que trabalhou na Rádio MEC durante 15 anos, onde fez de tudo. Foi produtor, contrarregra, ator, roteirista. Foi a sua verdadeira escola de rádio. Trabalhou também na Rádio Nacional no programa Rádio Revista, em 1948. Para ele, a Rádio Nacional foi estupenda, segundo suas palavras “que loucura foi aquilo!”

     O humorista Chico Anysio contou que foi José de Vasconcelos quem o incentivou no dia de seu teste no rádio. Chico ainda era tímido na época e o veterano teve paciência para que ele perdesse o medo e enfrentasse o microfone. O produtor, ator e comediante Manoel da Nóbrega também lhe abriu as portas. Mas não era muito difícil não reconhecer o seu talento e sua maneira histriônica de ser. Jô Soares também deu um depoimento no documentário sobre José de Vasconcelos. E sempre aparecia emocionado quando o comediante aparecia em seu programa de TV. Para todos esses craques, Zé era um pioneiro do humor de comédia.

     Além de radialista, José de Vasconcelos foi também ator, diretor, produtor e compositor. Seus companheiros consideram que ele foi o primeiro o primeiro a fazer o gênero humorístico que faz muito sucesso atualmente: o stand up comedy. Em uma época em que o politicamente correto ainda não existia, José de Vasconcelos gostava de irradiar um jogo como se fosse gago. Ouvimos um trecho desse quadro no início do programa.

     Seu primeiro filme foi Este Mundo É um Pandeiro, em 1947, e teve a sorte de produzir e atuar no primeiro programa humorístico da TV brasileira, A Toca do Zé, que foi ao ar na TV Tupi de São Paulo, em 1952.

     Durante muitos anos, o comediante viajou pelo Brasil e descobriu o filão de gravar discos. Em 1960, pela Odeon, lançou um LP que daria, anos mais tarde, o título do documentário Eu Sou o Espetáculo. Ele foi o primeiro humorista a vender mais de 100 mil cópias de um LP do gênero. O disco tinha a duração de 55 minutos, o mais longo LP de humor já feito no país.  Vasconcelos tentou repetir o sucesso em outros seis LPs, mas não conseguiu o mesmo resultado. O mundo alegre de Zé Vasconcellos, A hora e a vez de José Vasconcellos, froam alguns deles. O que acho interessante é que o humor do disco se oarece com o do rádio que ele aprendeu na prática, na vivência do dia a dia.
Eclético, em 1961, começou a pruzir para o teatro de revista. JV no País dos Bilhetinhos ridiculariza a mania do presidente Jânio Quadros de anunciar decisões e medidas através de bilhetes. Outros grandes nomes do humor estavam nesse elenco: como Otelo Zeloni, Maria Fernanda e Walter D’Ávila. Outro grande sucesso.

     Compôs com o músico Garoto algumas músicas, a mais famosa foi Nick Bar, de 1951. Era um bar em São Paulo onde os artistas se encontravam para se divertir e encontrar parceiros. Vamos ouvir uma versão interpretada por Dick Farney e Emílio Santiago.
  https://www.youtube.com/watch?v=izz6AwDk-tA

     José Vasconcellos teve uma grande ideia que acabou se revelando um fracasso. Nos anos 60, ao voltar dos EUA, decidiu construir um parque temático em uma área de um milhão de metros quadrados, no município de Guarulhos. Investiu todo o dinheito, pediu ajuda da prefeitura, mas não recebeu um tostão. Acabou quase falido no fim dessa história.
 José Vasconcellos pode ter largado o rádio, mas trabalhou em praticamente todas as estações de TV. Alpem da TV Tupi, passou pela TV Rio, Excelsior, Band, SBT e Rede Globo, onde fez Satiricon, em 1972, com Jô Soares e  Escolinha do Professor Raimundo, no papel do gago Rui Barbosa Sa-Silva na, com Chico Anysio. Apresentou em casas de espetáculos por todo o Brasil. Ao todo, trabalhou em 10 filmes, sendo um dos primeiros Os maridos traem e as mulheres Sub Traem. Em 204, foi o padre no filme Romeu e Julieta e seu último personagem no cinema foi Barbosa, no filme Bom Dia, Eternidade (2009). Afastado da televisão devido ao mal de Alzheimer.
Vamos ouvir a escalação no programa do Jô feita por José Vasconcellos.

 https://www.youtube.com/watch?v=diGveZC8vwc
De 1:22 a 4:00

Dorival Caymmi, o compositor de alma brasileira


Rose Esquenazi

https://www.youtube.com/watch?v=C0rYfHkRv6s


Dorival Caymmi - É doce morrer no mar (1959)

     Dorival Caymmi foi um artista brilhante, único, maravilhoso. Parte da criativa geração dos anos 30, a Época de Ouro da MPB, Caymmi realizou bem tudo a que se propôs. Foi cantorcompositor, violonista, pintor e ator brasileiro. Ele nasceu em Salvador, no dia 30 de abril de 1914, e começou a compor bem jovem. Caymmi formou com o irmão e amigos o grupo chamado Os três e meio. Os músicos tentaram a carreira em algumas rádios inexpressivas em Salvador e não tiveram muita sorte. Suas composições foram desacreditadas. Diziam, preconceituosamente, que pareciam músicas de macumba, de negros. Caymmi, então, compôs músicas ao estilo dos cariocas. Ganhou um prêmio em um concurso patrocinado pelo jornal O Imparcial com a canção A Bahia também dá. Trabalhou também como escrivão e vendedor, mas não era isso que ele queria.
     Até que, em 1937, um conhecido estava indo para o Rio de Janeiro convenceu-o a partir com ele. Caymmi levou 13 composições na bagagem, com a marca da Bahia em seu DNA. Caymmi tinha um vozeirão, o que ajudava a defender uma ou outra música que tentava emplacar nas rádios do Rio de Janeiro. Passou pela popular Rádio Mayrink Veiga, sem sucesso. Tentou trabalhar como desenhista na revista de maior sucesso na época, O Cruzeiro, mas não funcionou.
     O primeiro cachê que Caymmi recebeu foi na Rádio Tupi, em 1938. Havia um ano que ele estava no Rio de Janeiro e as coisas começavam a mudar. Conversava com todo mundo, pedia uma oportunidade, mostrando a sua música. Até que aconteceu algo inesperado. Durante a filmagem do filmeBanana da Terra, em 1939, Carmem Miranda iria interpretar uma música do já famoso Ary Barroso. Mas o diretor Wallace Downey se desentendeu com Ary. O que fazer com a fantasia de baiana que já estava pronta? Alguém se lembrou que havia um rapaz cheio de músicas prontas e que falavam da Bahia. Por que não o convidar para uma conversa?
     Foi assim que Caymmi apareceu para mostrar O que é que a baiana tem?. A música agradou em cheio. Caymmi topou ficar nas filmagens para ajudar Carmem Miranda a fazer os trejeitos de uma verdadeira baiana. A música e o filme estouraram. E aquele rapazinho magro deixou de ser anônimo. Vamos ouvir Carmem Miranda e Caymmi cantando O que é que a baiana tem?
     Aos 26 anos, ele conheceu uma jovem cantora na Rádio, e se encantou pela moça que tinha 18. Adelaide Tostes, a cantora Stella Maris, preferiu se casar a continuar a carreira de cantora. Preferiu ou foi forçada pelo marido, isso eu não tenho certeza. Juntos, o casal teve três filhos - Nana CaymmiDori Caymmi e Danilo Caymmi – todos cantores de mão cheia. Ah, a neta AliceCaymmi também é cantora, seguindo a tradição da família. Com os Anjos do Inferno, Dorival interpretou sambas-canção que fizeram sucesso.  A obra tinha quase sempre o tom descritivo e pictórico. Provavelmente letras influenciadas pelas telas que pintou até o fim da vida.
     Caymmi sofreu influência do povo baiano: dos compositores, das mulheres que vendiam acarajé nas ruas, dos costumes, hábitos e tradições. O que parecia ser uma música fácil e simples eram obras-primas em que a letra combinava perfeitamente com a música. Meticulosa como uma joia. Caymminunca teve pressa para nada, muito menos para compor. Segundo o pesquisador Jairo Severiano, a melhor fase, a mais produtiva da vida deCaymmi foi até 1947. Na minha opinião, Caymmi nunca saiu de moda porque compôs clássicos, como Saudade da Bahia, Samba da minha Terra, Doralice,Modinha para GabrielaMaracangalha, Saudade de Itapuã, O Dengo que a Nega Tem, Rosa Morena.
      A vida profissional de Caymmi também foi rica no Rio de Janeiro. Ao lado de músicos cariocas, deixou de ser “o cantor dos pescadores” e passou a compor composições que seriam a marca da nova fase da MPB: a do samba-canção. Além de cantar eventualmente no rádio, Caymmi passou a se apresentar nas boates de Copacabana. Houve um verdadeiro boom desses lugares, atraindo os amantes da boa música. Durante oito meses seguidos ele se apresentou no Clube 36, já com seus sambas urbanos e cosmopolitas. Também era admirado pelos sócios do Clube da Chave, frequentado apenas por sócios e no Chez Colbert. Era uma época em que se encontravam e se tornavam parceiros pessoas como Vinicius de Moraes, Tom Jobim, Newton Mendonça, Carlos Guinle, Johnny Alfie e muitos outros.  Essas histórias sobre as boates estão no livro A noite do meu bem, de Ruy Castro.
     Uma das músicas de CaymmiMarina, rompeu com o acordo de exclusividade que existia nos anos 40. Um cantor, ao gravar uma música, podia permanecer com ela durante um ano. Mas não foi o que aconteceu.Marina foi gravada por Francisco Alves, Dick Farney, Nelson Gonçalves e o próprio Caymmi. Pouco tempo depois, foi interpretada por João Gilberto e se tornou uma das grandes influenciadoras da Bossa Nova.
     Caymmi contou como nasceu Marina, em 1947. Uma vez, ao sair de casa para ir para o rádio, seu filho Dorivalzinho lhe disse, zangado: “Estou de mal”. “Na rua, essa frase ficou martelando na sua cabeça: “Estou de mal, estou de mal, estou de mal…” Ele contou essa história na Revista da Música Popular, em janeiro de 1955 . “Enquanto comprava umas coisas, andava nas ruas, a melodia e a letra foram se compondo em minha cabeça. No fim do dia, a música estava pronta”. 
Vamos ouvir Marina interpretada por Caymmi em um show de 1996.
     A música de Caymmi também foi apresentada nos Estados Unidos pelo cantor Dick Farney. Ele fez uma temporada em Nova York na mesma época de Cauby Peixoto. Os americanos gostaram daqueles sons tão doces, mesmo que não pudessem entender bem o que diziam as letras. Vamos ouvir a romântica  Não tem solução, na voz de Dick Farney, gravada em 1950. De um bom gosto incrível.
Caymmi também foi ator. Mas ele se descrevia como “galã rústico”. Em 1949, no filme Estrela da manhã teve argumento de Jorge Amado. Caymmiinterpretou um pescador que cantava o personagem interpretado pela atriz Dulce Bressane.
Ao lado de Sapoti, apelido de Angela Maria, Dorival Caymmi se apresentou no musical Acontece que sou baiano. Dirigido pelo homem da noite Carlos Machado, o espetáculo apresentado em 1953, na boate Casablanca. Fez muito sucesso. Para Angela, ele compôs um samba-canção especial chamado Nem eu. A letra é um hino ao amor:
“Não fazes favor nenhum//Em gostar de alguém//Nem eu, nem eu, nem eu//Quem inventou o amor//Não fui eu/Não fui eu, não fui eu//Não fui eu nem ninguém//O amor acontece na vida/Estavas desprevenida//E por acaso eu também//E como o acaso é importante querida//De nossas vidas a vida//Fez um brinquedo também”
Vamos ouvir Nem eu, na voz de Nana Caymmi.
Quando morreu aos 94 anos, em 2008, Caymmi tinha assinado 120 composições. Tendo como forte influência a música negra, desenvolveu um estilo pessoal de compor e cantar, demonstrando espontaneidade nos versos, sensualidade e riqueza melódica. Depois de João Gilberto, muitos outros cantores interpretaram a música do baiano. Gal Costa, Chico Buarque, Sylvia Telles. Vamos ouvir Sábado em Copacabana, na interpretação de Sylvia Telles e letra de Carlos Guinle.

Elizeth Moreira Cardoso – A Divina



Rose Esquenazi


Com o conjunto do Época de Ouro e Jacob do Bandolim

     Elizeth Moreira Cardoso nasceu no Rio de Janeiro, no dia  16 de julho de 1920 e morreu no dia 7 de maio de 1990, aos 69 anos. Ficou conhecida como A Divina, por sua voz maravilhosa, belo timbre e interpretação cheia de personalidade. Tornou-se uma das mais importantes intérpretes da música brasileira.

     A cantora ganhou outros apelidos na vida, como “A Noiva do Samba-Canção”, “Lady do Samba”, “Machado de Assis da Seresta”, “Mulata Maior”, “A Magnífica” (apelido dado por Mister Eco), a “Enluarada” (por Hermínio Bello de Carvalho). De todos, o apelido dado por Haroldo Costa, “A Divina”, foi o que mais ficou associado ao DNA da cantora.

      Elizeth nasceu na Rua Ceará, em um cortiço, no bairro de São Francisco Xavier, perto do Morro da Mangueira. Como muitas outras jovens de origem humilde, tinha o sonho de ser cantora. O pai, Jaime Moreira Cardoso, que era seresteiro e tocava violão, costumava levá-la para cantar nos bairros da Zona Norte. Cobrava um ingresso de 10 tostões. Na época, Elizeth gostava de cantar os sucessos de Vicente Celestino, mas também ponderava se podia ser atriz. A família toda era musical porque a mãe Maria José Pilar também cantava em casa para os filhos. Além de Elizeth, havia outras cinco crianças na casa: Jaimira, Enedina, Nininha, Diva e Antônio.

     A cantora também convivia com os músicos e religiosos que frequentavam a casa da tia Ciata, na Cidade Nova. Mas a família era pobre e todos tinham que ajudar nas despesas. Depois de terminar o primário, aos 10 anos, foi trabalhar como balconista, depois foi contratada em uma fábrica de sabão e mais tarde trabalhou como cabeleireira.

      A vida começou a melhorar aos 16 anos quando ela conheceu, em uma festa, os músicos Pixinguinha, Dilermando Reis e Jacob do Bandolim. Mesmo muito tímida, cantou para esses grandes músicos que ficaram impressionados com a voz da mocinha, que já parecia profissional. Foi então convidada por Jacob para fazer um teste na Rádio Guanabara, no Centro do Rio. No dia seguinte, o dono da estação aprovou Elizeth que passou na prova eliminando as outras concorrentes, ficando em primeiro lugar. Foi a primeira rádio na sua biografia, outras viriam depois. Embora fossem ligados na música, os pais eram conservadores e não queriam que ela se expusesse demais no mundo radiofônico. Mas não teve jeito: Elizeth insistiu e seguiu a carreira. Em 1936, no Programa Suburbano, se apresentou ao lado de Vicente Celestino, Araci de Almeida, Moreira da Silva, Noel Rosa e Marília Batista. Sua carreira se consolidava, na semana seguinte, ganhou um programa semanal no rádio na Rádio Guanabara.

     Elizeth passou pela Rádio Educadora, onde se apresentava no programa Samba e Outras Coisas. Na época, os salários eram baixos, por isso, no começo de 1939, Elizeth começou a fazer shows em circos, clubes e cinemas, apresentando o quadro Boneca de piche (Ari Barroso e Luís Iglesias), com Grande Otelo. Eles trabalharam juntos durante quase dez anos. A cantora passou a se apresentar como sambista em uma companhia de revista, onde conheceu Ari Valdez, com quem se casou no final de 1939. A união não deu certo e depois da separação, ela passou a trabalhar em boates como taxi-girl, as moças que dançam com fregueses cobrando uma taxa. Em 1941, tornou-se crooner de orquestras, chegando a ser uma das atrações do dancing Avenida, que deixou em 1945. Elizeth se mudou para São Paulo onde foi contratada para se apresentar na Rádio Cruzeiro do Sul, no programa Pescando Humoristas.

     Em 1946 , Elizeth estava de volta ao Rio, onde passou a se apresentar como crooner da orquestra de Dedé, com quem rompeu rapidamente, passando a cantar em outros dancings. Em 1948, foi contratada pela Rádio Mauá para o programa Alvorada da Alegria. Logo a seguir voltou para a Rádio Guanabara.

     Em 1950, graças a Ataulfo Alves, Elizeth gravou na gravadora Star a música Braços vazios (Acir Alves e Edgard G. Alves) e Mensageiro da saudade (Ataulfo Alves e José Batista),  mas não teve repercussão.  Já o segundo disco foi muito bem sucedido.  Elizeth gravou Canção de amor, de Chocolate e Elano de Paulo. Para quem não está associando o nome à pessoa, Elano era irmão do humorista Chico Anysio. Estudante de engenharia, ganhava algum dinheiro fazendo um bico na Rádio Guanabara. Vamos ouvir um trecho de Canção de amor ?

https://www.youtube.com/watch?v=OSNAewAjabg


     A Rádio Tupi não perdeu a chance de convidá-la e logo a seguir a TV Tupi fez o mesmo no primeiro programa de televisão no Rio de Janeiro, em 1951. Agora, A Divina chegava ao cinema, nos filmes Coração materno, de Gilda de Abreu, e É fogo na roupa, de Watson Macedo. Mas a trajetória radiofônica de Elizeth continou e, em 1951, foi contratada pela Rádio Mayrink Veiga e pela boate Vogue. Nessa época, gravou um dos seus maiores sucessos, Barracão se zinco (Luís Antônio e Oldemar Magalhães), que ouvimos no começo do quadro.

     Em 1953 participou do show Feitiço da Vila, na boate Casablanca, no Rio. Mudou-se para São Paulo r, na cidade, foi contratada pela Rádio e TV Record. Na ponte Rio-São Paulo, assinou contrato com a TV Rio. Na Rádio Tamoio, no programa A boate do Chacrinha, Abelardo Barbosa  gostava de tocar os sucessos de Elizeth. Mesmo com o jogo proibido no Brasil em 1946, o apresentador fingia haver ali um cassino de verdade graças a uma sonoplastia maluca que fazia por conta própria.  Elizeth cantou em muitas boates, como conta Ruy Castro no livro A noite do meu bem, recém-lançado. Ao lado de Linda Baptista e outros cantores famosos, Elizeth cantou no Vogue, no Sacha e no Plaza, boates conhecidas de Copacabana, muitas vezes sem hora para fechar. Elizeth tb deu canja no Clube da Chave, boate exclusiva em que todos os sócios tinham a chave para entrar e se divertir à vontade, sem a presença de pessoas indesejadas.

     Em 1953, Elizeth e Silvio Caldas participaram do show Feitiço da Vila, dirigido por Carlos Machado, na boate Casablanca. Outro sucesso da cantora interpretando as mais lindas músicas de Noel. Vamos ouvir Último desejo.


      Ao lado de Dalva de Oliveira e Angela Maria, Elizeth costumava cantar também no Clube da Aeronáutica, nos bailes de fim de semana. Ela estava no primeiro time nos anos 50. Em 1954, ocorreram dois suicídios que marcaram o mundo artístico, o de Getulio Vargas e de Evaldo Ruy, que havia três anos mantinha um caso com Elizeth. A cantora queria que ele assumisse a relação e a esposa legítima exigia uma definição. Isso tudo com doses extras de álcool e uma forte depressão acabou em uma tragédia.
Elizeth fazia muito sucesso na boate Sacha. Para facilitar a ida e vinda de sua casa em Bonsucesso para a boate, que ficava no Leme, a cantora alugou um apartamento no mesmo prédio da boate. Inexplicavelmente no dia 14/8/1954, ela havia dormido em Bonsucesso quando soube, pelo rádio, que a boate tinha pegado fogo. Ela podia ser uma vítima.

     Durante a gravação de seu disco Canção do amor demais, música de Tom e Vinicius, um jovem violonista acompanhou a cantora e se sobressaiu na faixa de Chega de saudade. Era João Gilberto que experimentava uma nova batida. Logo foi reconhecido como um dos baluartes da Bossa Nova, que, meses depois, estabelecia como um novo ritmo musical. Segundo Ruy Castro, o disco continha um repertório perfeito. Vinicius se apaixonou por Elizeth, mas a cantora fugiu bastante do assédio. Vamos ouvir Canção do amor demais, de Vinícius de Moraes e Tom Jobim.


     Em 1959, Elizeth dublou a voz da americana Marpessa Dawn, no papel de Eurídice, no filme Orfeu do Carnaval, dirigido pelo francês Marcel Camus. O filme baseado na obra teatral de Tom e Vinicius ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes. Mas o nome da nossa cantora não apareceu nos créditos, infelizmente. Em fevereiro de 1960, após o lançar o disco Magnifica, foi contratada pela Rádio Nacional, no programa Cantando pelos Caminhos.


Donga, o fundador do samba





Rose Esquenazi


 Bambo do Bambu, de Donga e Patrício Teixeira, gravação de 1940, com Jararaca e Ratinho


      Vamos falar sobre o centenário do samba que se comemora esse ano. E para falar desse marco da música temos que nos lembrar de Donga, Ernesto Joaquim Maria dos Santos. Donga nasceu no dia 5 de abril de 1899, na Rua Teodoro da Silva, Vila Isabel, no  Rio.  Morreu aos 84 anos, em 25/8/1974.  E por que ele deve ser lembrado? Donga e Mauro de Almeida foram os responsáveis pela gravação e registro da música Pelo telefone, em 1916,  na Biblioteca Nacional. Pela primeira vez, a seu pedido, a gravadora de Fred Figner, a Casa Edison, colocou no selo do disco a palavra “samba”.


     No livro As vozes desassombradas do museu, publicado em 1970, as palavras de Donga são esclarecedoras. O músico deu seu Depoimento para a Posteridade em 2/4/1969, aos 80 anos. Nessa época, o Museu da Imagem e do Som era dirigido por Ricardo Cravo Albin. Donga disse que seu pai tocava bombardino e que seu primeiro instrumento foi o cavaquinho, que passou a tocar aos 14 anos. Não teve aulas formais, mas ouvia música o tempo todo em casa, depois que se mudou para o Centro da Cidade. Ficava perto da casa de outras tias baianas que chegaram ao Rio no começo do século passado. 

     A mãe Amélia Silvana de Araújo promovia grandes festas que podiam durar oito dias seguidos. As pessoas iam para comer, dançar e participar dos rituais de origem africana, como o candomblé. Cada casa de baiana tinha um estilo, podia ter choro e samba na sala da frente e, atrás, batucada. Donga esclareceu: “Batucada não é samba” e sim capoeiragem. Revelou também que “samba-batuque é equívoco, pois samba é sapateado, nos pés, pelos homens, e nos quadris, pelas mulheres.”

     O menino passou a infância nos terreiros de candomblé das tias baianas, rezadeiras, festeiras do Estácio e da Cidade Nova. Conviveu com ex-escravos e, nas festas, passou a tocar vários instrumentos para acompanhar as rodas de samba. Depois de tocar de ouvido, teve lições com Quincas Laranjeiras.  Para Donga, o samba veio da Bahia. Não cresceu no morro e  e sim nas ruas Senador Pompeu, do Costa – atual Alexandre Mackenzie –,  Alfândega e Hospício, hoje Buenos Aires. Curiosamente, Donga não frequentava muito a Casa da tia Ciata, a mais citada e conhecida das baianas. Para agradar a mãe, compôs as modinhas Olhar de Santa e Ligia, teus olhos dizem tudo, que ganhou mais tarde a letra de David Nasser. Vamos ouvir um trecho de Ligia, teus olhos dizem tudo, com Donga tocando violão.

     A história da música Pelo telefone foi mais complicada do que esse simples registro dos dois parceiros. Na verdade, foi uma obra coletiva dos que frequentavam a casa da Tia Ciata, na Cidade Nova. Um grupo criou conjuntamente a música. Segundo Donga, a letra original de Pelo telefone foi paródia de uma reportagem publicada no jornal A noite, que tinha como um dos sócios o Irineu Marinho, que adorava o samba e foi importante na vida de Donga pouco mais tarde.Segundo Donga, “sem Irineu Marinho e o Arnaldo Guinle não haveria os Oito Batutas”.

      A segunda versão tem uma letra diferente. Não mais “O chefe da folia pelo telefone”, mas “O chefe da polícia pelo telefone...” No fim, a autoria ficou com o Donga porque ele teve a iniciativa do registro.  Em 1921, a convite do empresário Arnaldo Guinle, Donga foi para Paris com o grupo Os Oito Batutas do qual faziam parte Pinguinha e outros excelentes músicos. A ideia era mostrar a música brasileira com exímios compositores aos franceses.  Fizeram sucesso, esticaram a temporada para quase um ano. Mas fazia frio e os cariocas preferiam voltar para o calor local. Donga trouxe da Europa um violão-banjo, uma novidade no Brasil.
 Em 1922, Os Oito Batutas participaram da inauguração do rádio no Brasil durante o Centenário da Independência do Brasil, que aconteceu no Rio, capital do país. Acabo de descobrir esse fato histórico importante. Vamos ouvir Patrão, Prenda seu gado (João da Baiana/Pixinguinha/Donga). Aproveitem para assistir a um lindo filme dos Batutas dançando.

 

     Em 1926, Donga fez parte de outro grupo, o Carlito Jazz que acompanhava a companhia francesa de revistas Ba-Ta-Clan, no Rio de Janeiro. Voltou para Europa em nova excursão, prova de que a música brasileira estava sendo bem aceita no exterior. Na volta, em 1928, Donga participou de outros grupos: Guarda Velha e Diabos do Céu, ambas formadas por Pixinguinha para gravações. Em 1932, Donga tocou no Programa Casé, na Rádio Philips, o mais popular do rádio brasileiro, dirigido por Adhemar Casé. Todos os sucessos fonográficos acabavam nas rádios que estavam sendo inauguradas e já podiam contar com o dinheiro vindo da publicidade, atividade enfim liberada pelo governo Vargas. Que diretor não gostaria de ter em seu programa os Oito Batutas, com a Santíssima Trindade do Samba: Pixinguinha e João da Baiana e Donga?

      Em 1940, a bordo do navio S.S. Uruguai, Donga gravou nove composições (entre sambas, toadas, macumbas e lundus) do disco Native Brazilian Music. O projeto foi organizado por dois maestros: o norte-americano Leopold Stokowski e o brasileiro Heitor Villa-Lobos, lançado nos Estados Unidos pela Columbia. Villa Lobos era amigo e frequentava a casa de como Pixinguinha, Cartola, Donga, João da Bahiana, Zé Espinguela, Luiz Americano, Zé da Zilda e Jararaca e Ratinho. As gravações fizeram parte do projeto da Boa Vizinhança do governo americano, idealizada por Nelson Rockefeller. No Brasil, foi apoiado pelo Estado Novo de Getúlio Vargas. Vamos ouvir o original com  Zé da Zilda, Pixinguinha e Regional do Donga – Pelo telefone, de  1940
  https://www.youtube.com/watch?v=C6uHtVXQqXw

     Em 2012, depois de 70 anos do lançamento dos álbuns Native Brazilian Music, a Revista Rolling Stones, publicou uma reportagem sobre a gravação desses oito discos de 78 RPM. No Brasil, não ganharam repercussão, mas através desse material os americanos passaram a conhecer a arte musical dos brasileiros.


      No final dos anos 1950 Donga voltou a se apresentar com o grupo Velha Guarda, em shows organizados por Almirante. Ele foi um grande violonista, compositor e aglutinador de artistas. Pedia respeito aos músicos que queriam viver de sua profissão. Nos 100 anos do samba, aplausos ao mestre Donga.

Ismael Silva, o autêntico Bamba do Estácio



Rose Esquenazi


Se você jurar - de Ismael, Nilton Bastos e Francisco Alves


     Ouvimos um trecho de Se você jurar, de Ismael, Nilton Bastos e Francisco Alves.
A história de Ismael Silva é muito interessante. O Bamba do Estácio escreveu mais de 200 canções e tornou-se o legítimo representante da época de ouro da música popular brasileira. Ele foi o grande parceiro de Noel Rosa e fundador, ao lado de outros músicos, da primeira escola de samba do Rio de Janeiro, a Deixa Falar, em 1928. Morreu pobre, como muitos outros músicos.

     Como ensina o pesquisador Jairo Severiano, no livro Uma história da música popular brasileira, os novos compositores do Estácio, inclusive Ismael Silva, aos 13 anos, acreditavam ser os professores do samba.  Afinal, eles mudaram o ritmo que já existia. Como ensaiavam perto da Escola Normal, que forma professores, se sentiam mestres. Os vizinhos começaram a debochar do nome:  “Mas que escola, que nada”. Reunido, o grupo teria reagido com essa expressão: Deixa falar. Foi aí que Ismael resolveu organizar o grupo uniformizado, cujo embrião foi o bloco A União Faz a Força.

     No porão de uma casa de cômodos, os integrantes ensaiavam as músicas, os passos, os volteios. Impressionaram e deslumbraram todos os viram pela primeira vez vestidos com tecidos brilhantes e enfeites cintilantes. Incluíram também o surdo e a cuíca, pela primeira vez. Isso em 1928.  Hoje, os historiadores classificam a escola como rancho, que durou três anos apenas. Mas não importa. A partir dessa agremiação, surgiram as outras escolas de samba. Em seu depoimento no Museu da Imagem e do Som, Ismael Silva revelou que foi ele quem criou o novo samba para ajudar na fluidez do desfile. Com os sambas anteriores, não era possível desfilar. Na verdade, não foi ele sozinho e sim seu grupo de bambas.

     Frequentador do Bar Apollo e do Café do Compadre, no Estácio, Ismael conviveu com inúmeros sambistas. Mano Edgar, Baiaco, Mano Rubens (Rubens Barcellos), Nilton Bastos, Brancura, Bíde, Marçal, Francelino Ferreira Godinho e outros. Eles também gostavam das rodas de samba que aconteciam no morro do Salgueiro e da Mangueira.  Alguns eram conhecidos como malandros, que gostavam de brigar e detestavam trabalhar.

     Ismael nasceu no dia 14 de setembro de 1905, em Jurujuba, praia que fica perto de Niterói. Filho de cozinheiro e de lavadeira, ele tinha cinco irmãos. Por conta das dificuldades financeiras, a mãe, já viúva, mudou-se para o bairro do Estácio. Ismael pediu para ir à escola, mas era muito cedo ainda. Aos 7 anos, o menino decidiu: foi para a escola sozinho e disse para a professora que queria estudar. Com a permissão, o aluno sobressaiu com boas notas. Aos 15 anos, Ismael compôs o samba Já desisti. Aos 18, terminou o ginásio e empregou-se na Central do Brasil e no escritório de um advogado. Não ficou muito tempo.

   
      Em
1925, aos 20 anos, teve o primeiro samba gravado: Me faz carinhos. A música chamou a atenção de Francisco Alves, que já era o maior cantor brasileiro.  Em 1927, internado no Hospital da Gamboa, Bide informou que Francisco Alves, queria comprar seu samba Me faz carinhos por 100 mil réis. Em 1928, o próprio Rei da Voz apareceu de carro na frente do Bar Apollo e mandou chamar Ismael. Pediu que ele cantasse todas as músicas que havia composto. Foi assim que Chico Viola propôs parceria exclusiva.  Todos os sambas teriam o nome de Francisco Alves em parceria com Ismael Silva. O  material seria gravado e entraria na rádio mais popular da época porque apostava no samba, a Mayrink Veiga. Ismael topou, mas tinha uma questão: as músicas também foram compostas por Nilton Bastos. De 1931 a 1940, a Época de Ouro da música brasileira, 32% de todas as gravações eram sambas.

     Com esse argumento, formou-se o trio que ficou conhecido como Bambas do Estácio, em 1928.  É dessa época o samba que ouvimos na abertura do quadro, Se você jurar. Muitos dizem que a música toda era de Nilton Bastos. Considerado um dos mais belos da história, foi lançado em 1931 e teve 100 gravações diferentes. O sucesso do trio foi imediato. Mas Nilton Bastos morreu cedo, em 1931, e ficaram Chico e Ismael. Um cantava e o outro compunha. Segundo Jairo Severiano, o acordo foi bom para a dupla porque projetou o compositor desconhecido.

     Na sociedade, Chico gravou Que Será de Mim, A Razão Dá-se a Quem Tem, Para Me Livrar do Mal, Sofrer É da Vida, Amor de Malandro, Quem Não Quer Sou Eu, Nem É Bom Falar, Ao Romper da Aurora, Ando Cismado, a já citada Se Você Jurar e Tristezas Não Pagam Dívidas.

     Ismael gostava de se vestir bem, era elegante com seu terno branco de linho ou azul marinho. Com a morte de Nilton Bastos, ele se encontrou com o fabuloso Noel Rosa. Tornou-se o maior parceiro do compositor de Vila Isabel. Ao todo, compuseram nove composições. Entre elas, Para me livrar do mal, Adeus, Gosto, Ando Cismado. Vamos ouvir Quem não quer sou eu, com Francisco Alves.

     Ismael Silva aprendeu violão com Gorgulho, integrante do regional de Benedito Lacerda. A parceria com o Rei da Voz durou 10 anos. Nos shows, muitas pessoas perguntavam quem era Ismael Silva. Tantas vezes isso aconteceu que, uma noite, o cantor apresentou à plateia o parceiro de muitos sucessos. Levou-o ao palco e proclamou: “Este é o Ismael Silva, o preto de alma branca!”
Havia preconceito racial explícito e Ismael sofreu por ser negro e de origem pobre. Mas a originalidade do samba se impôs e conquistou os brancos. Ary Barroso, Noel Rosa, Mário Reis e Francisco Alves passaram a conhecer os segredos do samba e a sincopação mais rica. Segundo explicou o musicólogo Carlos Sandroni, o ritmo ficou livre da influência do maxixe.  Vamos ouvir o Rei da Voz interpretando Tristezas Não Pagam Dívidas.


     Nas pesquisas do escritor Luis Antônio Giron, na obra Mário Reis: o fino do samba, ele chegou à conclusão que, aspas: “Ismael destacava-se dos outros, pois se vestia melhor, usava jóias e era homossexual assumido”. O que hoje é visto com naturalidade, naquela época era sinônimo de defeito físico e moral. O escritor Paulo Lins, no seu livro Desde que o samba é samba, tocou no mesmo assunto. As informações irritaram os amigos de Ismael Silva que não concordaram com a interpretação do autor de Cidade de Deus.
Há também outras versões, de que Ismael teria tido um único romance na sua existência. Teria sido com a passista chamada Diva Lopes Nascimento, com quem teve uma filha, nunca assumida por ele.

      É bom lembrar que Ismael teve uma história triste que o marcou para sempre. Com personalidade impetuosa, em 1935, deu dois tiros em Edu Motorneiro, um valentão que se engraçou com insultos dirigidos à irmã de Ismael. Ele foi preso, mas, devido a seu comportamento, a pena foi reduzida à metade. Quando saiu da prisão, ficou deslocado no meio musical. Noel já havia morrido e a parceria com Francisco Alves terminado havia muito tempo. Na época, a área musical estava bem organizada e mais profissional. O compositor se retraiu. Ismael conseguiu emplacar um ou outro sucesso, como Antonico,  com Alcides Gerardi. Na gravação, podemos ouvir a voz de Ismael Silva. A música foi regravada, em 1971, pela cantora Gal Costa.

     Na lista de composições de Ismael Silva estão também Liberdade, Uma Jura que eu Fiz, Até Amanhã, Adeus, Deixa Falar e Boa Viagem. Em vida, ele ganhou o título de Cidadão Samba, pela Associação das Escolas de Samba do Brasil.  Participou do show O Samba Pede Passagem, no Teatro Opinião, em 1965. Três anos depois, os jornalistas Sérgio Porto, Sérgio Cabral e Lúcio Rangel decidiram trazer à tona o samba, incluindo os bambas da Velha Guarda. Eles convenceram a antiga TV Record a lançarem o festival A Bienal do Samba, onde surgiram novos compositores e intérpretes que amavam o ritmo. Os jovens, como Baden Powell, Paulo César Pinheiro e Chico Buarque, se destacaram mais do que os mais velhos. A exceção foi Cartola que apresentou o lindo samba Tive sim.

     Nos anos 70, Ismael Silva passou a se apresentar na boate Jogral, em São Paulo, e ganhou a medalha de Grande Sambista. Os convites eram um reconhecimento e uma forma de ajudá-lo a ganhar algum dinheiro em uma época difícil para quem envelhecia  no Brasil. Chico Buarque de Holanda declarou que fora ele, Ismael, o seu grande influenciador, bem mais do que Noel Rosa. Em 1972, em seu aniversário, recebeu um bilhete de Chico Buarque que dizia: "Ismael, você está cansado de saber da minha admiração pelos seus sambas. Você sabe o quanto lhe devo por toda sua obra. O Sérgio Cabral está lhe entregando o meu presente pelo seu aniversário. É muito menos do que você merece. Um grande abraço, de coração".  Ismael Silva guardou o cheque durante algum tempo: era o prêmio que Chico tinha recebido do Governo do Estado da Guanabara.

     No fim da vida, pobre e esquecido, Ismael Silva vivia em uma casa de cômodos na Avenida Gomes Freire. Sofrendo de uma úlcera, morreu no dia 14 de março de 1978, aos 72 anos. O selo Discobertas, em convênio com o Instituto Cultural Cravo Albin, lançou, em 2011, a caixa 100 anos de música popular brasileira. Ali estão gravações dos programas realizados pelo radialista e produtor na Rádio MEC em 1974 e 1975.  Para quem gosta de raridades, é uma boa dica. Em 1982, Ismael foi enredo da escola de samba Império Serrano. No ano passado, a Estácio de Sá fez uma série de homenagens aos 110 anos de nascimento do compositor. Vamos terminar com mais uma pérola do repertório de Ismael Silva: A razão dá-se a quem tem, de Ismael Silva, nas vozes de Francisco Alves e Mário Reis.

     Se meu amor me deixar / Eu não posso me queixar / Vou sofrendo sem dizer nada a ninguém / A razão dá-se a quem tem / Sei que não posso suportar / (Se meu amor me deixar) / Se de saudades eu chorar / (Eu não posso me queixar) / Abandonado sem vintém / (Vou sofrendo sem dizer nada a ninguém) / Quem muito riu chora também / (A razão dá-se a quem tem)