segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Aracy de Almeida, Araca


 “A Dama do Encantado”, “Dama da Central”, "O Samba Em Pessoa"

A Dama do Encantado foi a melhor intérprete de Noel Rosa: 


Aracy de Ameida nasceu no dia 19 de agosto de 1914 (morreu antes de completar 64 anos, em 20 de junho de 1988), no Rio, em uma casa no Encantado, subúrbio do Rio. Ela nunca mais deixou o bairro em que morou a vida toda, com seus cachorros, árvores e plantas. O pai de Araci era chefe de trens da Central do Brasil, a família religiosa, evangélica. Ela cantava no coro da Igreja Batista, mas, escondida dos pais, saía no bloco Somos poucos a falar e cantava nos terreiros de macumba. Todos diziam que ela era muito diferente, isso, desde muito jovem.
Não se via com bons olhos uma moça ser cantora de rádio. Mas ela foi, mesmo assim. Fez teste na Rádio Suburbana e depois entrou para Rádio Educadora do Brasil, na Rua Senador Dantas, com a ajuda de um vizinho, o Manuel, que gostava da voz dela. Manuel era amigo do violonista Custódio Mesquita, conseguiu uma chance na Rádio Educadora.
 Ser irmã de um pastor, o Alcides, atrapalhava tudo. Assim foi que o diretor do programa  Hora do outro mundo, Renato Murce, de muito sucesso nos anos 30, querendo ajudar, foi até o Encantado e garantiu aos pais de Aracy que se responsabilizava por ela.
Na Rádio Educadora, Aracy conheceu Noel Rosa, que já era famoso desde  que compôs Com que roupa e outros sucessos. Segundo o livro Noel  Rosa: uma biografia, de João Máximo e Carlos Didier (Ed. UNB), esgotado e vendido em sebos por R$ 500, 00,  Noel não esperou ser apresentado. Aproximou-se da cantora e disse que ela tinha jeito, mas não podia ficar cantando o mesmo repertório de Carmem Miranda, que já era popular. 

                                                           O x do problema
Noel a convidou imediatamente para ir à Taberna da Glória, restaurante que existe até hoje nesse bairro. Foi lá que ele a apresentou a seus amigos e conhecidos: de compositores a prostitutas, de malandros da Lapa a cantores. Noel se dava com todo o mundo. Aracy gostou do mundo da noite. De madrugada, Noel acompanhou Aracy até a Central do Brasil. Na época, menina direita também  não chegava de manhazinha em casa, e claro, Aracy levou uma bronca enorme dos pais.
Noel se tornou amigo dela, mas nunca namoravam. Aracy era um tipo mignon, não era bonita, segundo ela mesma reconhecia. Em uma entrevista, Aracy afirmou que Noel Rosa gostava de mulheres altas e exuberantes, ela não era nada disso. O compositor passou a levá-la para a casa dele em Vila Isabel. No quartinho dos fundos, ele lhe dava uma sopinha de feijão e lhe ensinava os sambas. A voz anasalada de Aracy era perfeita para interpretar os sambas de Noel, tinha um ar triste, fundamental. Dona Martha, mãe de Noel, não gostava e uma vez reclamou: nunca tinha visto uma mulher dizer “tanto nome feio”.  Aracy adorava palavrões e gírias e se tornou mestre nisso até o fim da vida, em 1988.

 Noel ensinou muita coisa, apesar de Aracy ser muito intuitiva. Não aprendia facilmente melodia e letra. Mas depois que dominava o samba, dava tudo certo. Tinha uma grande afinidade com Noel. Para ele, era a melhor cantora de “samba de batida”. Ou seja, o samba bem marcado, que tinha bossa, em contraposição ao samba-canção. Noel chegou a dizer para o jornal A Pátria, em 4 de janeiro de 1936, o seguinte: "Aracy de Almeida é, na minha opinião,  a pessoa que interpreta com exatidão o que eu produzo.  É um valor. É nova, mas das melhores”.

Noel Rosa também era muito amigo de Marília Baptista, muito mais comportada e controlada de perto pelos pais, que também trabalhavam no rádio. As duas se tornam as maiores intérpretes de Noel, só que tinham características muito próprias. Segundo João Máximo e Didier: eram diferentes em tudo. “No temperamento, nos hábitos, na formação musical, no timbre de voz, no modo de cantar, no tipo físico, nos mundos em que nasceram” e viveram. (p. 320).
 Aracy, quatro anos mais velha do que Marília, se apresentava em várias emissoras de rádio, não se fixando em nenhuma delas. Aqui e ali ia ganhando cachês. A primeira música que gravou foi um samba de Noel: Sorriso de criança. Depois, não parou mais.  Noel gostava de levar Aracy para os prostíbulos pobres da Central, e ela ia, e cantava para as prostitutas com entusiasmo. Gostava de dizer que “quem canta de graça é galo”, mas muitas vezes cantou apenas por prazer. 
Noel ficou tuberculoso e não havia cura para a doença na época. Continuou compondo e desafiando as ordens médicas, saindo à noite, comendo mal e bebendo muito. Teve um tempo em que ele tentou se comportar, mas já era tarde. Mesmo casado com Lindaura, fazia música e se encontrava com a paixão de sua vida, a Ceci. Pela música, Noel passava recados, e isso aconteceu com Cansei de pedir e Último desejo, testamento cantado por Aracy de Almeida para a amada de Noel. Vamos ouvir.
                                                                     Último desejo
A morte de Noel, que tinha apenas 26 anos, abalou a cidade. Ele era muito querido, deixou um legado fabuloso de mais de 300 músicas.  Aracy de Almeida continuou a cantar Noel Rosa, mas nos anos 50, tinha conquistado outro público. Passou a se apresentar na requintada boate Vogue, em Copacabana, unindo a cidade  - ricos e pobres - através das composições de Noel. Vendo que os discos estavam esgotados, a gravadora Continental gravou, em 1950, Aracy cantando Noel. Eram três discos de 78 rotações, tendo, na capa, uma linda pintura de Di Cavalcanti. Sucesso absoluto de vendas e, hoje, uma raridade que custa nos sebos em torno de R$ 200,00.  
                                                                     Não tem tradução
Nas contracapas do disco triplo, críticos importantes de música, como Lúcio Rangel e Fernando Lobo, escreveram sobre Aracy de Almeida e Noel.  Para eles, a voz de Araca tinha ficado ainda melhor com o tempo e, curiosamente, Noel continuava sendo cantado, para alegria de todos.

Os ouvintes mais velhos devem lembrar se de Aracy como jurada do Show de Calouros, do Silvio Santos, ou anteriormente, nos vários programas de Abelardo Barbosa, o Chacrinha, nos anos 70 e 80. Era uma senhora rabujenta, mal-humorada, que acabava com os candidatos com suas palavras cortantes e alguns palavrões. Mas ela sabia o que dizia. Era uma grande cantora. Tinha muitos fãs sinceros e apaixonados, como Hermínio Bello de Carvalho que escreveu o livro Araca, arquiduquesa do Encantado (Edições Folhas Secas) para contar as grandes e engraçadas histórias dessa mulher suis generis.
Para ele, ela era pansexual: amava homens, mulheres, cachorros e árvores.  Cheia de contradições, era um personagem rico, que amava grandes sacadas, porque não dizer: gostava de chocar as pessoas naquele tempo tão careta e formal. Em sua casa, havia quadros de grandes pintores, como Di Cavalcanti, amigo verdadeiro, e também pinturas de Aldemir Martins, Antonio Bandeira, Heitor dos Prazeres. Ouvia o clássico Bach e amava as óperas.
Viveu com Henri, o alemão Henrique Pffiferkorner, de quem pegava as cuecas. Sim, Aracy não gostava de calcinhas, mas de cuecas largas e confortáveis. Nesse ponto, antecipou a moda: muitas jovens atualmente se gabam de usar cuecas dos namorados, olha só como Aracy era moderna! Mas ela se vestia de forma estranha, nada lhe caía muito bem. As roupas eram de boa qualidade, mas ela não tinha gosto ou talvez paciência para descobrir o que combinava com o seu tipo físico. Os cortes de cabelo também não eram nada femininos. Sim, ela era feia e mal ajambrada. Não ficou rica com a música, continuou morando na casinha do subúrbio e, às vezes, fazia uma extravaganza comprando enfeites caros para a sua casa.

Segundo o maior fã e protetor, o Belo Hermínio, como Aracy gostava de chamá-lo, a cantora tinha uma coisa que antecedia aos hippies, às conquistas femininas postuladas pela francesa Simone de Beauvoir. Foi existencialista antes de Jean-Paul Sartre. Gostava de ler o Velho Testamento e, segundo ela, Eclesiastes era um existencialista por natureza.
 Olivia Byinton gravou um disco maravilhoso em que fez um tributo a Aracy de Almeida, chamado “A Dama do Encantado”, de 1977.

                                                         Três apitos



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