Rose Esquenazi
O nome parece
complicado, mas, à medida que repetimos “Radamés Gnatalli”, um mundo
se abre para os apreciadores da boa música. Por isso, as novas gerações devem
aprender não só a dizer o nome corretamente, mas conhecer melhor a obra desse
gênio musical, um dos maiores compositores e arranjadores brasileiros. Puça no
YouTube um trecho do sexteto Radamés Gnattali interpretando Cochichando, de Benedicto
Lacerda & Pixinguinha.
https://www.youtube.com/watch?v=53FB0GXJ9aQ
A Rádio Nacional, na
sua fase mais importante, contou com a arte desse maestro e instrumentista, o primeiro
a unir o clássico ao popular sem nunca perder o tom. Radamés foi um
experimentador até o fim da vida.
Vou contar como tudo
começou. Radamés nasceu em Porto Alegre, no dia 27
de janeiro de 1906. Seu pai era italiano e se tornou operário no Rio Grande
do Sul. Como o italiano gostava muito de música, começou a tocar vários
instrumentos, até se tornar maestro. Radamés era gago e só
tirava zero nas provas orais. Irritado, o pai quis saber o que o menino queria ser
na vida, afinal. Ele não teve dúvidas: desejava se dedicar à música. Já estudava piano com a mãe desde os 3 anos. Aos
14, passou para o Conservatório de Música, onde ficou durante nove anos.
Em várias entrevistas
que deu ao longo da vida, Radamés disse que entrou para um quarteto de cordas
que tinha um bom repertório. Além de violista (de viola), era pianista e fez o
primeiro concerto aos 18 anos, em 1924, no Rio de Janeiro. Como cursava o
último ano de piano, voltou para se formar em Porto Alegre. Logo estava no Rio novamente para tocar piano em diferentes
orquestras: a Victor Brasileira, Diabos do Céu, Grupo da Velha Guarda,
Orquestra Típica Victor. Ele compunha lindas valsas e chorinhos. Vamos ouvir o
chorinho Cabuloso, na interpretação de
Jacob do Bandolim, em 1949. Ouça um trecho: https://www.youtube.com/watch?v=JrxHEYjLTvs
O começo da vida no Rio
foi de miséria e fome. Ele reconheceu que ele e outros músicos, além do escritor Murilo Mendes, se
reuniam, sem grana, na casa do pintor Portinari em Laranjeiras. Portinari
ficava pintando e os amigos batendo papo enquanto esperavam uma oportunidade.
Ao fazer arranjos para a RCA, em 1932, inventou o pseudônimo de Vero. Não
pegava bem um erudito, compositor de música sinfônica, fazer arranjos populares.
E por que Vero? Simplesmente porque a mulher de Radamés se chamava Vera Bieri,
também pianista, com quem ficou casado durante 35 anos.
Na gravadora RCA
Victor, Radamés substituiu Pixinguinha e começou a fazer arranjos orquestrais.
Ele deu ênfase às cordas, algo novo na MPB, nos anos 30. Radamés tinha o sonho
de viver da música erudita, ou de seus dos direitos autorais. Mas no Brasil,
isso sempre foi difícil. Então, decidiu entrar para uma orquestra de rádio e
depois trabalhou no cinema e na TV. Ele nunca se frustrou ao fazer música
popular. Radamés afirmou que foi muito ligado ao Jacob do Bandolim, Heitor dos
Prazeres, João da Baiana, Alcebíades Barcelos, o Bide, Marçal e Luciano
Perrone. Cada um deu uma coisa diferente a ele.
Curiosamente, quando ele
conheceu Pixinguinha, quase não se tocava música popular brasileira. “O negócio”,
segundo ele, “era tango, fox trot e
jazz”. O jazz ganhou o mundo porque não se exigia uma
orquestra cara. Apenas piano, contrabaixo um ou outro instrumento de sopro, explicou.
O jazz também o influenciou. Mas a música de Radamés é toda brasileira,
baseada em temas folclóricos e urbanos do Rio de Janeiro. Ele sempre gostou de música popular, a começar
com o tango que ouvia no Sul. “Se eu tivesse ido à Europa”, declarou, “poderia
ter sido um grande pianista, mas nunca seria um compositor brasileiro”. Na época, o samba estava restrito ao Rio de
Janeiro, e ele mergulhou nessa atmosfera.
A primeira rádio
em que pisou foi a Rádio Clube do Brasil, em 1924, que tinha um estúdio no
Largo do Machado. Em 1930, passou a ser músico da orquestra. Depois foi para Rádio
Cajuti e Mayrink Veiga. Na Mayrink, ele
tocava tudo, popular e erudito, mas ganhava mal. Chegou à Nacional no ano da
estreia, em 1936. Em seu depoimento, ele
afirmou que não havia orquestra de música brasileira, existiam apenas o regional
e a orquestra de salão, com cordas e
flautas, para tocar trechos de operetas, árias de óperas. Os arranjos vinham
impressos, do exterior.
Radamés começou a
fazer pequenos arranjos para trio: ele, no
piano, o Iberê Gomes Grosso, no violoncelo, e Romeu Ghypsman, no violino. Radamés
conta que, naquele tempo, não havia um roteiro nos rádios. Em qualquer buraco
na programação, ele tocava música para acabar com o silêncio. Por isso, começou
a escrever. Depois os cantores, amigos de Radamés, gostavam e pediam para o
músico fazer os arranjos.
Foi o próprio cantor Orlando
Silva que pediu para gravar um disco de samba-canção e cordas. Era possível
aquilo? Sim e os dois cresceram muito com essa novidade. Não só Orlando Silva, mas
também a música de Francisco Alves e Sílvio Caldas ganharam outra dimensão. Um
dos destaques desses arranjos incríveis foi Aquarela
do Brasil composta para o teatro de revista Joujoux e Balangandans,
em 1939. O compositor Ari Barroso não gostou da abertura, que tinha “tan, tan,
tan - tan, tan”. Radamés bateu pé e reclamou: "Ô Ari, faz a música que eu
faço o arranjo". O arranjador incluiu saxofones que deram grande impacto. Ouça
Aquarela do Brasil, na voz de
Francisco Alves, música de Ari Barroso e arranjo de Radamés.
https://www.youtube.com/watch?v=yyhPL2Q_Bog
Radamés trabalhava
todo dia na Rádio Nacional até que recebeu o convite para fazer um programa de
música popular de meia hora, com nove músicas de várias partes do mundo, ligadas
uma na outra. O programa era Um Milhão de Melodias, patrocinado pela Coca Cola. Ele
concordou, mas não queria mais ser pianista. Ele iria três vezes por semana à
estação, faria os arranjos e entregaria ao copista. O programa, espécie de
parada musical, ia ao ar às quartas-feiras. Radamés fazia os nove arranjos por
semana, e, às vezes, a música era executada uma única vez, apesar de todo o capricho.
Os diretores Paulo Tapajós e Haroldo Barbosa e um discotecário da Nacional escolhiam
os sucessos mais populares do mundo e sabiam que o arranjador iria engrandecer
ainda mais aquelas músicas. Durante 13
anos, Radamés mostrou o seu brilho, que foi o auge de sua carreira.
A Nacional ganhou uma
orquestra criada por Radamés, onde, ao todo, ele trabalhou durante 30 anos. Ele reconheceu que foi um dos
maestros da estação responsáveis em “vestir” a música popular brasileira.
Abandonavam-se os parcos recursos dos conjuntos regionais e criava-se um
arranjo para uma orquestra inteira, com direito a violinos, pianos, flautas,
tudo! Segundo Luiz Carlos Saroldi e Sonia Virgínia Moreira, no livro Rádio Nacional, O Brasil em Sintonia, “o
ouvinte tornava-se mais exigente, acostumado pelo rádio com um tipo de
linguagem musical mais sofisticada”. Só para se ter uma ideia, a Nacional tinha
sob contrato 100 músicos, sendo 35 violinistas, nove violistas e seis
violoncelistas.
Havia outros maestros na Nacional, como Leo Peracchi e Lyrio Panicali. Eles eram os responsáveis por todas as coisas boas que se faziam por lá. Mas a Rádio Nacional não pagava bem. Segundo Radamés, a emissora funcionava como vitrine para que os músicos fossem convidados para fazer shows em outros lugares.
Havia outros maestros na Nacional, como Leo Peracchi e Lyrio Panicali. Eles eram os responsáveis por todas as coisas boas que se faziam por lá. Mas a Rádio Nacional não pagava bem. Segundo Radamés, a emissora funcionava como vitrine para que os músicos fossem convidados para fazer shows em outros lugares.
Quando Radamés ganhou o
Prêmio Shell, em 1983, ele apresentou o Concerto nº. 3 - Seresteiro, para
piano e orquestra. Como a música desse concerto é muito brasileira, ele
colocou um regional junto com o piano. Mesmo nos anos 80, os puristas não gostaram
muito de misturar regional com orquestra sinfônica. Radamés reagiu, então: “mas
se o concerto é meu, eu escolho o repertório que vou tocar, é ou não é?”
Jairo Severiano, no
livro Uma história da música popular brasileira,
afirma que Radamés era um grande experimentador. E Mário de Andrade, uma das cabeças
do movimento Modernista, escreveu que o músico tinha, abre aspas, “uma
habilidade extraordinária para manejar o conjunto orquestral, que faz soar com
riqueza e estranho brilho”. Na música Copacabana, de João de
Barro e Alberto
Ribeiro, interpretada por Dick Farney,
na década de 1950, pode-se ouvir essa qualidade. A música ficou 64 semanas nas
paradas de sucesso e tornou-se um clássico. Ouça:
https://www.youtube.com/watch?v=BRn_b7KVZO0
Sem medo das
novidades, Radamés decidiu experimentar o cinema. Ele colaborou com o cineasta Nelson Pereira dos Santos e com o sambista
Zé Ketti
em dois filmes importantes: Rio Zona Norte (1957) e Rio 40 Graus
(1955). Em 1960, apresentou-se num sexteto que incluía acordeão,
guitarra,
bateria e contrabaixo. Compôs muitas músicas importantes e influenciou uma geração de jovens
instrumentistas como Raphael Rabello, Joel
Nascimento e Mauricio Carrilho, e para a
formação de grupos de choro como o Camerata
Carioca, de quem se tornou padrinho musical. Ouça um trecho de Remexendo, de Radamés Gnattali, com a Camerata Carioca. https://www.youtube.com/watch?v=CC-HluUbjDM
Radamés foi parceiro e amigo de Tom Jobim, Cartola, Heitor Villa-Lobos, Pixinguinha Donga, João da Baiana, Francisco Mignone, Lorenzo Fernandez e Camargo Guarnieri. Foi um dos primeiros a gravar Ernesto Nazareth
em disco. É autor do hino do Estado de Mato Grosso do Sul, que foi escolhida em concurso público
nacional. Viúvo, casou-se com Nelly Biato Gnattali, pianista
e cantora. A irmã, Aída Gnatalli, também foi uma exímia pianista e fundamental como
copista de Radamés. Em 1986, ele
sofreu um derrame que o deixou com o lado direito do corpo paralisado. Dois
anos mais tarde, sofreu outro derrame e
morreu aos 82 anos, no dia 13 de fevereiro de 1988, na cidade do Rio de Janeiro.
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