“A Dama do Encantado”, “Dama da Central”, "O Samba Em Pessoa"

Não se via com bons olhos uma moça ser
cantora de rádio. Mas ela foi, mesmo assim. Fez teste na Rádio Suburbana e
depois entrou para Rádio Educadora do Brasil, na Rua Senador Dantas, com a ajuda
de um vizinho, o Manuel, que gostava da voz dela. Manuel era amigo do
violonista Custódio Mesquita, conseguiu uma chance na Rádio Educadora.
Ser irmã de um pastor, o Alcides, atrapalhava
tudo. Assim foi que o diretor do programa Hora do
outro mundo, Renato Murce, de muito sucesso nos anos 30, querendo ajudar,
foi até o Encantado e garantiu aos pais de Aracy que se responsabilizava por
ela.
Na Rádio Educadora, Aracy conheceu Noel
Rosa, que já era famoso desde que compôs
Com que roupa e outros sucessos.
Segundo o livro Noel Rosa: uma biografia, de João Máximo e
Carlos Didier (Ed. UNB), esgotado e vendido em sebos por R$ 500, 00, Noel não esperou ser apresentado. Aproximou-se
da cantora e disse que ela tinha jeito, mas não podia ficar cantando o mesmo
repertório de Carmem Miranda, que já era popular.
O x do problema
Noel a convidou imediatamente para ir
à Taberna da Glória, restaurante que existe até hoje nesse bairro. Foi lá que ele
a apresentou a seus amigos e conhecidos: de compositores a prostitutas, de malandros
da Lapa a cantores. Noel se dava com todo o mundo. Aracy gostou do mundo da
noite. De madrugada, Noel acompanhou Aracy até a Central do Brasil. Na época,
menina direita também não chegava de manhazinha
em casa, e claro, Aracy levou uma bronca enorme dos pais.
Noel se tornou amigo dela, mas nunca
namoravam. Aracy era um tipo mignon, não era bonita, segundo ela mesma
reconhecia. Em uma entrevista, Aracy afirmou que Noel Rosa gostava de mulheres
altas e exuberantes, ela não era nada disso. O compositor passou a levá-la para
a casa dele em Vila Isabel. No quartinho dos fundos, ele lhe dava uma sopinha
de feijão e lhe ensinava os sambas. A voz anasalada de Aracy era perfeita para
interpretar os sambas de Noel, tinha um ar triste, fundamental. Dona Martha, mãe
de Noel, não gostava e uma vez reclamou: nunca tinha visto uma mulher dizer
“tanto nome feio”. Aracy adorava
palavrões e gírias e se tornou mestre nisso até o fim da vida, em 1988.
Noel ensinou muita coisa, apesar de Aracy ser
muito intuitiva. Não aprendia facilmente melodia e letra. Mas depois que dominava o
samba, dava tudo certo. Tinha uma grande afinidade com Noel. Para ele, era
a melhor cantora de “samba de batida”. Ou seja, o samba bem marcado, que tinha
bossa, em contraposição ao samba-canção. Noel chegou a dizer para o jornal A Pátria, em 4 de janeiro de 1936, o
seguinte: "Aracy
de Almeida é, na minha opinião, a
pessoa que interpreta com exatidão o que eu produzo. É um valor. É
nova, mas das melhores”.
Noel Rosa também era muito amigo de Marília
Baptista, muito mais comportada e controlada de perto pelos pais, que também
trabalhavam no rádio. As duas se tornam as maiores intérpretes de Noel, só que
tinham características muito próprias. Segundo João Máximo e Didier: eram diferentes
em tudo. “No temperamento, nos hábitos, na formação musical, no timbre de voz,
no modo de cantar, no tipo físico, nos mundos em que nasceram” e viveram. (p.
320).
Aracy, quatro anos mais velha do que Marília, se
apresentava em várias emissoras de rádio, não se fixando em nenhuma delas. Aqui
e ali ia ganhando cachês. A primeira música que gravou foi um samba de Noel: Sorriso de criança. Depois, não parou
mais. Noel gostava de levar Aracy para
os prostíbulos pobres da Central, e ela ia, e cantava para as prostitutas com
entusiasmo. Gostava de dizer que “quem canta de graça é galo”, mas muitas vezes
cantou apenas por prazer.
Noel ficou tuberculoso e não havia cura
para a doença na época. Continuou compondo e desafiando as ordens médicas,
saindo à noite, comendo mal e bebendo muito. Teve um tempo em que ele tentou se
comportar, mas já era tarde. Mesmo casado com Lindaura, fazia música e se
encontrava com a paixão de sua vida, a Ceci. Pela música, Noel passava recados,
e isso aconteceu com Cansei de pedir e Último
desejo, testamento cantado por Aracy de Almeida para a amada de Noel. Vamos
ouvir.
Último desejo
A morte de Noel, que tinha apenas 26
anos, abalou a cidade. Ele era muito querido, deixou um legado fabuloso de mais
de 300 músicas. Aracy de Almeida
continuou a cantar Noel Rosa, mas nos anos 50, tinha conquistado outro público.
Passou a se apresentar na requintada boate Vogue, em Copacabana, unindo a
cidade - ricos e pobres - através das
composições de Noel. Vendo que os discos estavam esgotados, a gravadora Continental
gravou, em 1950, Aracy cantando Noel. Eram três discos de 78 rotações, tendo,
na capa, uma linda pintura de Di Cavalcanti. Sucesso absoluto de vendas e,
hoje, uma raridade que custa nos sebos em torno de R$ 200,00.
Não tem tradução
Nas contracapas do disco triplo,
críticos importantes de música, como Lúcio Rangel e Fernando Lobo, escreveram
sobre Aracy de Almeida e Noel. Para
eles, a voz de Araca tinha ficado ainda melhor com o tempo e, curiosamente, Noel
continuava sendo cantado, para alegria de todos.
Os ouvintes mais velhos devem lembrar
se de Aracy como jurada do Show de Calouros,
do Silvio Santos, ou anteriormente, nos vários programas de Abelardo Barbosa, o
Chacrinha, nos anos 70 e 80. Era uma senhora rabujenta, mal-humorada, que
acabava com os candidatos com suas palavras cortantes e alguns palavrões. Mas
ela sabia o que dizia. Era uma grande cantora. Tinha muitos fãs sinceros e
apaixonados, como Hermínio Bello de Carvalho que escreveu o livro Araca, arquiduquesa do Encantado
(Edições Folhas Secas) para contar as grandes e engraçadas histórias dessa
mulher suis generis.
Para ele, ela era pansexual: amava
homens, mulheres, cachorros e árvores.
Cheia de contradições, era um personagem rico, que amava grandes
sacadas, porque não dizer: gostava de chocar as pessoas naquele tempo tão
careta e formal. Em sua casa, havia quadros de grandes pintores, como Di
Cavalcanti, amigo verdadeiro, e também pinturas de Aldemir Martins, Antonio
Bandeira, Heitor dos Prazeres. Ouvia o clássico Bach e amava as óperas.
Viveu com Henri, o alemão Henrique
Pffiferkorner, de quem pegava as cuecas. Sim, Aracy não gostava de calcinhas,
mas de cuecas largas e confortáveis. Nesse ponto, antecipou a moda: muitas
jovens atualmente se gabam de usar cuecas dos namorados, olha só como Aracy era
moderna! Mas ela se vestia de forma estranha, nada lhe caía muito bem. As
roupas eram de boa qualidade, mas ela não tinha gosto ou talvez paciência para
descobrir o que combinava com o seu tipo físico. Os cortes de cabelo também não
eram nada femininos. Sim, ela era feia e mal ajambrada. Não ficou rica com a
música, continuou morando na casinha do subúrbio e, às vezes, fazia uma extravaganza comprando enfeites caros
para a sua casa.
Segundo o maior fã e protetor, o Belo
Hermínio, como Aracy gostava de chamá-lo, a cantora tinha uma coisa que
antecedia aos hippies, às conquistas femininas postuladas pela francesa Simone
de Beauvoir. Foi existencialista antes de Jean-Paul Sartre. Gostava de ler o
Velho Testamento e, segundo ela, Eclesiastes era um existencialista por
natureza.
Olivia Byinton gravou um disco maravilhoso em
que fez um tributo a Aracy de Almeida, chamado “A Dama do Encantado”, de 1977.
Três apitos