O RÁDIO FAZ HISTÓRIA - 20/07/2015
Rose Esquenazi
Hoje vamos
falar, pela segunda vez, sobre os 70 anos do fim da Segunda Guerra e a
participação do brasileiro Francis Charlton Hallawell (1912/2004), o Chico da
BBC, em seu trabalho radiofônico pioneiro. Francis foi para a Inglaterra
para lutar como voluntário e assinou o contrato com a BBC no dia 7 de agosto de
1941, dois anos antes de o Brasil declarar guerra aos países do Eixo. No
início, Francis era um locutor de notícias, em português. Depois passou a criar
programas e, a partir de 1944, como correspondente, enviava despachos
jornalísticos, crônicas e programas radiofônicos da Itália para a Inglaterra.
De Londres, os técnicos transmitiam para o Brasil, em ondas curtas. Vamos ouvir locutor da BBC, que chama Francis
Hallawell.
Já havia uma
massa de público ligada no rádio e nas notícias de guerra nas grandes cidades
brasileiras, embora 70% da população ainda morassem no campo. Em 1944, no
Brasil, “mais de 100 estações em ondas médias retransmitiam os programas de
Chico da BBC”. A BBC era sinônimo de credibilidade, já que as rádios
brasileiras estavam sob a mira cerrada dos agentes censores do Departamento de
Imprensa e Propaganda, o DIP, do Estado Novo de Getúlio Vargas.
Alguns desses
trabalhos foram preservados até hoje em discos de 78 rotações. Hoje vamos falar
sobre o programa gravado ao vivo, em 1944, na Itália, talvez no campo de
Francolise, não há nenhuma citação clara sobre a origem. Chama-se A Hora do rancho, que contou com a participação de
soldados e de outros correspondentes. Todas as pessoas foram reunidas próximos
do microfone e do gravador da BBC que ficava dentro de um pequeno carro feito
especialmente para esse fim.
O objetivo de
Chico era valorizar o soldado junto ao público brasileiro e confortar os
ouvintes. As famílias podiam ter certeza de que os filhos, namorados e maridos
estavam bem na Itália. Na abertura, ouvimos a voz de speaker em Londres que fez a apresentação do
programa. Podemos observar as gírias, as piadas e a leveza com que Chico da BBC
conduziu as entrevistas no campo. Falou sobre a “gororoba”, explicou que os
soldados precisavam comer porque “nem jipe funciona sem gasolina”. Exagerou ao
chamar o cozinheiro-chefe de “maître do quartel-general da FEB”. Arlindo Formé,
de São Paulo, o chef entrevistado, com muito bom humor e excelente voz, fez
chiste de tudo.
Não sei se
todos conseguem entender a gravação, eu mesma tive certa dificuldade, mas ao
perguntar sobre qual era a maior dificuldade para se cozinhar para os soldados,
o chef disse que é “desviar de inglês”, no caso do Chico da BBC. Apesar de ser
brasileiro nato, muitas pessoas o chamavam de inglês, isso até na imprensa
local que circulava pelos acampamentos. Talvez porque Chico preservava um leve
sotaque herdado de sua família inglesa. Vamos ouvir mais um trecho do programa Hora do Rancho.
Gaiato,
Francis quis saber se o chef não tinha vantagens ao comandar uma cozinha de
campanha. Arlindo Formé admitiu que sim, agradava as meninas, que
provavelmente, eram italianas que cercavam os brasileiros quando a fome
aumentava. Devemos nos lembrar de que os italianos estavam na pior nos anos de
1944 e 1945, com várias cidades devastadas por bombardeios da guerra. Não havia
comida suficiente, afinal Mussolini já tinha caído e o país “perdera” para os
aliados.
Na segunda
entrevista, podemos observar que o soldado responsável pelo fogão é uma pessoa
mais humilde e hesitante do que Arlindo Formé. E que decorou a sua fala. Esse
soldado apresentou e elogiou os soldados responsáveis por trazer a água para a
cozinha: “o nosso cabo Netuno”, segundo ele. Citou também o “príncipe das
panelas”, responsável pelos panelões, e um craque que fazia arroz. O maior
problema da cozinha do acampamento era quando o fogão enguiçava, disse o
soldado. Podia dar muita confusão. Além da fome, os soldados enfrentavam o frio
e estavam prestes a sofrer com o inverno rigoroso. Nesses momentos, a tensão
aumentava. Mas o programa de Chico não era para fazer críticas ou mostrar o
lado mais duro da guerra.
Além das
refeições no rancho, havia a comida servida quando os pracinhas estavam em
movimento ou lutando nos foxholes. O soldado e escritor Joaquim Xavier da
Silveira lembrou-se das scatolettas,
que ele traduziu como “caixinhas impermeabilizadas e embaladas a vácuo”, que os
americanos entregavam aos soldados brasileiros. Havia, segundo ele, três tipos
de rações dependendo da ocasião. “A ração K, conhecida como ração de assalto,
era entregue à tropa com orientação de só usá-la em casos extremos, quando não
havia a menor possibilidade de chegar outro alimento”. Ao todo, continha 900
calorias, consistindo de café ou limonada solúvel, chocolate, biscoitos, lata
de queijo, patê ou sopa, cigarros e fósforos e tabletes de purificador de água.
A ração C, chamada de ração de combate, tinha seis pequenas latas, três com
carne e cereais, e outras com outros artigos, como “biscoitos, cigarros, doces,
café, limonada solúvel e açúcar e pastilhas de Halazone para esterilizar a
água”. A ração B, a chamada operacional, era para ser consumida quente. O
soldado conseguia a refeição em marmitas na própria cozinha da unidade.
Continha as três refeições, totalizando 4 mil calorias, segundo Joaquim Xavier
da Silveira. Tinha café da manhã, com leite, pão, manteiga de amendoim, ovos
mexidos, feitos com ovo em pó, suco de tomate ou laranjada enlatada. No almoço,
carne, feijão e arroz, frutas ou suco de frutas, doces, cigarros, fósforos.
O que os
italianos mais desejavam eram os chocolates, chicletes e caramelos das rações
dos soldados. Em troca desses produtos, eles podiam fazer vários serviços que
nem sempre eram bem-vistos pelas autoridades da FEB. Podiam lavar a roupa do
soldado, trocar os regalos por um vinho local ou até fazer favores amorosos. Ao
chegar à Itália, o correspondente Rubem Braga percebeu que os italianos
esperavam os soldados no porto em busca dessas delícias. Braga escreveu: “Não
faltam, de resto, os pedintes, homens e mulheres e crianças de voz chorosa que
sempre dizem a mesma coisa. Uma
sigaretta, ciocolata, caramella. Una scatoletta”.
Em certas
crônicas reunidas no livro raro chamado Scatolettas
da Itália, Chico da BBC faz o
que crítico Antonio Candido denomina “retalhos de vida”. Para ele, os retalhos
são “próximos à reportagem jornalística e radiofônica”, que permitem concorrer
com outros meios comunicativos e assegurar a função de escritor. Candido
registra o número de analfabetos no Brasil, em 1940, é impressionante: nada
menos do que 57% da população. E vejam que o índice de leitura havia aumentado
em relação a 1920. Nessa época, 75% da população não sabiam ler. Os novos meios
de comunicação, como o rádio, iriam abrir portas de informação para os
analfabetos.
Apesar da
censura, os correspondentes, que raramente eram convidados para ir à linha de
frente dos combates na Itália, tiveram uma importante participação durante a
guerra. Mesmo camuflando as derrotas e se concentrando no dia a dia dos
soldados, enfrentando o eventual mau humor e a antipatia do alto comando da
FEB, os correspondentes deram humanidade aos pracinhas na frente italiana.
Faziam propaganda e favor dos aliados, o que Rubem Braga chamou de “simples
literatura de exaltação cívica”. Mas, na volta para a casa, eles também foram
vistos como heróis, ganharam festas e medalhas militares. Chico da BBC ganhou a
medalha OBE, Ordem do Império Britânico, dada pela rainha Elizabeth, em 1963,
reconhecimento por seu trabalho durante a guerra.
Durante
o conflito, o rádio era o principal meio de comunicação, e Chico da BBC soube
tirar grande proveito da gravação da voz humana. O correspondente Joel Silveira
fez um resumo dos conflitos já que também não revelou
os horrores vividos pelos soldados. “Nessa guerra de menos de oito meses”,
escreveu, “a FEB perdeu 443 homens, entre soldados e oficiais, e mandou para os
hospitais da retaguarda perto de 3 mil feridos”.
A BBC, fundada
em 1922, deu início às transmissões para a América Latina, em espanhol e
português, em 1938. Era a forma que encontrou para se fazer presente na América
do Sul, onde outras rádios, como a alemã (Rádio Berlim) e a italiana (AIR) já
estavam por aqui fazendo propaganda nazista e fascista. “Uma guerra de palavras
estava sendo travada entre 1939 e 1945, e tanto nos países democráticos quanto
nos totalitários o microfone tornou-se uma arma poderosa”. Em 1941, a emissora
inglesa estreou o Serviço Brasileiro feito especialmente para ouvintes de fala
portuguesa. A programação durava quatro horas e tinha como objetivo a
informação, com notícias da guerra, e o entretenimento, com diferentes
programas culturais. Havia transmissões em 43 idiomas, para países de várias
partes do mundo. O mesmo fazia a Rádio Berlim, antes do fim da guerra.
Até hoje, a
BBC é considerada a mais importante estação de rádio do mundo. Não só
pela credibilidade, mas também pela seriedade de seu conteúdo e excelência de
seu entretenimento, que inclui a TV. Pertencente ao Governo do Reino Unido,é
mantida por uma taxa de licença por todas as famílias que tenham rádio ou TV. A emissora emprega mais de 19 mil
pessoas e teve um custo operacional de 5 bilhões de libras esterlinas entre
2014 e 2015. Atualmente, enfrenta certa crise econômica. No início do
mês, a emissora demitiu cerca de mil
funcionários.
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