sábado, 17 de outubro de 2015

Dalva de Oliveira: o Rouxinol Brasileiro


Rose Esquenazi




A música Tudo acabado, de J. Piedade e Oswaldo Martins, interpretada por Dalva de Oliveira pode ser ouvida em https://www.youtube.com/watch?v=696uD2GaxBw. A cantora teve seu apogeu artístico durante os anos  30 e 50.  Vicentina de Paula Oliveira nasceu na cidade de Rio Claro, SP, no dia 5 de maio de 1917 e foi uma das maiores cantoras brasileiras. Mas a linda voz não foi usada para cantar sambas ou marchas de Carnaval. Nem para alegrar o público feminino que passou a lotar os auditórios da Rádio Nacional, nos anos 50. No tempo de Marlene e Emilinha, Dalva, que também tinha fã-clube, cantava a tristeza, a desilusão.

No livro Por trás das ondas da Rádio Nacional, de Miriam Goldfeder, a autora explica que no repertório de Dalva não há lugar para o mito da felicidade, para o happy end. As letras podem ser redundantes, mas a aceitação pelo público foi imediata. Depois da guerra, havia no país uma  “situação de insegurança e insatisfação latente nos setores médios e baixos da população, já desiludidos com as perspectivas que a sociedade parecia lhes oferecer”. Isso no entendimento da autora Goldfeder.

Filha de uma portuguesa e de um brasileiro, que era pintor, Vicentina foi muito pobre. Desde cedo aprendeu música, e, como tinha uma bela e potente voz, de contralto ao soprano, estudou canto lírico. Em 1935, conheceu o compositor e cantor Herivelto Martins, com quem iria se casar mais tarde. Ao lado de Francisco Sena, Herivelto formava o dueto Preto e Branco. Com a entrada de Dalva, passaram a se chamar Trio de Ouro.

Foi assim que estrearam na Rádio Mayrink Veiga, no Rio, a convite de César Ladeira. Modernos para a época, Herivelto e Dalva, antes de se casarem, foram morar juntos para horror da classe média conservadora. Finalmente, oficializaram a união em 1937. Foram dois rituais: na igreja católica e no ritual de umbanda, na praia. Tiveram dois filhos, que também seriam cantores: Peri Oliveira Martins, o Pery Ribeiro, e Ubiratan Oliveira Martins. Depois de dez anos, o casamento acabou. Naquele tempo, não era permitido o divórcio no Brasil.

As brigas foram piorando com o tempo. Agressões físicas, temperadas com álcool e muita raiva, só pioravam a situação. Segundo Peri Ribeiro, que lançou o livro Minhas duas estrelas, em 2006, Herivelto não suportou o fato de Dalva conseguir viver sem ele. Mesmo tendo sido do pai a decisão da separação e já estar com uma segunda mulher, costumava dizer que foi ele quem criou a Dalva. Como se a fama fosse de sua autoria e responsabilidade. O que não era verdade, apesar de Herivelto ser um ótimo compositor.

Dalva fazia muito sucesso na Rádio Nacional, mas começou a ser difamada. Ela passou a ter outros namorados, o que pareceu uma atitude escandalosa para uma determinada fatia do público. O problema é que começou na imprensa uma campanha de difamação a pedido de Herivelto Martins. Foram publicadas várias reportagens assinadas pelo jornalista David Nasser no Diário da Noite. As palavras acabaram com a moral de Dalva. Como consequência, o conselho tutelar mandou Pery e Ubiratan para um internato. A alegação era de que a cantora não tinha boa conduta moral para criar os filhos. Dalva entrou em desespero.

Começou nas estações de rádio a apresentação de uma série de músicas que revelavam a tensão entre os dois. As roupas sujas do ex-casal estavam sendo lavadas em público.  Por exemplo, Segredo, de 1947, música de Herivelto Martins e Marino Pinto, falava sobre essa situação constrangedora. Pronto, começava ali a incrível disputa musical entre dois artistas de peso. O pior, o público acompanhava tudo, ora apoiando um, ora apoiando o outro.

Os versos de Segredo  dizem o seguinte:.

O peixe é pro fundo das redes,
Segredo é pra quatro paredes,
Não deixe de que males pequeninos,
Venham transtornar os nossos destinos,
Primeiro é preciso julgar,
Pra depois condenar.

Seu mal é comentar o passado,
Ninguém precisa saber o que houve

Entre nós dois,
O peixe é pro fundo das redes,
Segredo é pra quatro paredes,
Não deixe de que males pequeninos,
Venham transtornar os nossos destinos.


Os filhos ficaram afastados e só podiam visitar os pais em datas festivas e fins de semana. Aos 18 anos, Peri e Ubiratan ganharam o direito de sair do internato. Em 1952, Dalva se consagrou na música mundial, cantou em Paris e Buenos Aires, e ganhou o título de Rainha do Rádio. Outras músicas fizeram parte da polêmica musical radiofônico: Tudo acabado, Que será, Errei sim, Falso amigo, Calúnia, Palhaço. Vamos ouvir Saia do meu caminho.

Dalva conheceu o argentino Tito Climent,  que foi seu amigo, empresário e, finalmente,  seu segundo marido. Dalva se mudou para Buenos Aires, e também não apressou no casamento. Decidiram adotar uma menina, grande sonho de Dalva, que não quis mais ter filhos. Achava que n]ao tinha tempo devido ao sucesso de sua Carrera. O casal adotou uma criança em um orfanato de Buenos Aires.  Ela ganhou o nome de Lúcia Oliveira Climent.
Dalva e Tito acabam se casando. Depois de quatro anos, o casamento acabou e, mais uma vez, Dalva viveu uma turbulência de brigas. Tito Climent queria uma mulher fina e elegante, coisa que Dalva não era. Mulher simples e de fácil relacionamento, a cantora sofreu um choque ao saber que o marido queria tirar a filha de sua convivência.  Entre o Brasil e Argentina, Dalva decide ficar em Buenos Aires para cuidar da filha.  Curiosamente, Tito fez como Herivelto: inventou mentiras sobre Dalva e usou os jornais para fazer intrigas.

Ao retormar a carreira em 1963, Dalva experimentou novo sucesso e mais um amor. Manuel Nuno Carpinteiro, 20 anos mais novo, casou-se com a cantora. Como não podia deixar de ser, muita gente achou a diferença de idade, um verdadeiro absurdo. Mas Dalva assumiu o casamento e passou ao largo das intrigas. Conseguiu ser feliz durante um tempo até que, dois anos Manuel, que estava dirigindo bêbado, teve um acidente que matou quatro pessoas. Foi condenado e preso. Enfrentando a imprensa corajosamente, Dalva costumava visitá-lo na prisão. No Carnaval, costumava interpretar um grande sucesso: Bandeira branca, de Max Nunes e Laércio Alves.

Chamada de Rouxinol Brasileiro, Dalva realizou mais de 400 gravações. Sua voz está registrada também em vários coros de discos de Carmen Miranda, Orlando Silva e Francisco Alves. Na primeira versão do filme Branca de Neve e os Sete Anõe , produzida pelos estúdios Disney, em 1938, Dalva de Oliveira dublou os diálogos da personagem Branca de Neve. 

Dalva morreu no Rio de Janeiro, no dia 30 de agosto de 1972, aos 55 anos. Mais de 2 mil pessoas foram se despedir dela no Teatro João Caetano. No ano de 2010, a Rede Globo reviveu essa história na minissérie Dalva e Herivelto, uma canção de amor, de Maria Adelaide Amaral. No elenco, estavam Adriana Esteves e Fábio Assunção. Vamos ouvir mais uma canção que fez muito sucesso no repertório de Carmem, Folha morta, de Ary Barroso. Os versos dizem assim:

Sei que falam de mim
Sei que zombam de mim
Oh, Deus
Como sou infeliz

Vivo à margem da vida
Sem amparo ou guarida
Oh, Deus
Como sou infeliz

Já tive amores
Tive carinhos
Já tive sonhos
Os dissabores

Levaram minh'alma
Por caminhos tristonhos
Hoje sou folha morta
Que a corrente transporta
Oh, Deus
Como sou infeliz, Infeliz


Eu queria um minuto apenas
Pra matar minhas penas
Oh, Deus
Como sou infeliz

Agora, a interpretação de Dalva.

https://www.youtube.com/watch?v=16EDVXcqzZ0

Vicente Celestino: O Cantor Orgulho do Brasil”

Rose Esquenazi





Antônio Vicente Filipe Celestino nasceu no dia 12/9/1894. Foi um dos mais importantes cantores brasileiros do século XX. Pertenceu à Época de Ouro da música brasileira, ao lado de outros grandes cantores como Mário Reis e Francisco Alves, por exemplo. Vicente tinha uma voz tão potente, que tinha que cantar e gravar de costas a cinco metros do microfone. De outra maneira, o cristal que servia para reproduzir o som se partiria.  Nessa etapa mecânica, ele gravou 28 discos com 52 músicas. Com a gravação elétrica, não precisava mais cantar de costas. O novo sistema melhorou muito a qualidade do som. Ao todo, gravou 137 discos em 78 rpm, ao todo 274 músicas, 10 compactos e 31 elepês.

Consegui com meu amigo Luiz Antonio de Almeida, grande expert em Ernesto Nazareth e que trabalha no MIS, um áudio sensacional. Trata-se de um programa da Rádio Nacional, de 5 de fevereiro de 1949. Foi oferecido pela neta de Vicente Celestino, Daise Celestino. Chama-se Caricaturas Figacol, um remédio para o fígado daquela época. Escrito por Fernando Lobo, com a orquestra de Lírio Panicalli e narração de Roberto Faissol, o programa dramatizou a vida do grande cantor. 

Mas vamos começar com a infância. Vicente nasceu em Santa Teresa, na Rua do Paraíso, 11.  Teve 11 irmãos, sendo que cinco dedicaram-se ao canto e um ao teatro (Amadeu Celestino).  Os pais italianos vieram da Calábria, ainda muito jovens. Por ser mais velho, Vicente teve que arcar com o sustento dos irmãos quando o pai, que era guarda-livros, morreu.

Vicente gostava do teatro e fez parte do grupo Pastorinhas da Ladeira do Viana, entrou para o coral infantil da ópera Carmen, de Bizet, no Teatro Lírico.  Para ganhar dinheiro, teve que trabalhar em uma loja que vendia chapéus de palha na Rua Sete de Setembro. Depois, foi aprendiz de sapateiro e servente de pedreiro.

A iniciação musical se deu em 1913, como amador. Cantando em um chope-berrante, à noite, ganhava apenas um pro labore simbólico. Se o público gostasse, podia alcançar mais um pequeno degrau rumo à fama. Às vezes, cantava em italiano, idioma dos pais. Certo dia, em 1914, ao sair com os amigos, já adulto, cantou em um bar e foi convidado por um empresário se apresentar profissionalmente.  Primeiro, no Teatro São José, em São Paulo, depois, na Cia Paschoal Segreto, como corista, também em São Paulo. Começou a gravar na Casa Édison, no Rio.

Vicente participou de várias companhias de teatro, óperas e burletas, e passou a estudar canto lírico.  Faz temporadas pelo país e logo conquistou muito sucesso. Gravou, em1926, Linda Flor e Luar de Paquetá.  Conheceu  a cantora Gilda de Abreu e se casou com ela em 1933. Gilda era muito talentosa. Além de cantora lírica e de operetas, era atriz de teatro e cinema, roteirista, autora de livros, de roteiros de cinema e peças de teatro, de rádio novelas,  além de ter dirigido vários filmes. Segundo os fãs, jamais o Brasil conseguiu juntar no mundo artístico, um casal tão versátil como este. Isso porque Vicente também compunha e se tornou ator de teatro e cinema.


Em 1935, VC cantou O Ébrio pela primeira vez na Rádio Guanabara. A Rádio Guanabara ficava na Rua Primeiro de Março e foi fundada em 1932. Muitos profissionais começaram ali, como Elizete Cardoso, Chico Anysio, Fernanda Montenegro.  A música fez tanto sucesso que foi gravada em 1936, pela RCA Victor. Em 1942, estreou como peça teatral . Mais sucesso. Até que, em 1946, um dos discos mais vendidos naquele ano, virou filme com direção de Gilda de Abreu. Vamos ouvir trecho do maior sucesso do cantor: O Ébrio.  Primeiro, há um preâmbulo e depois, ele começa a cantar.

Tornou-se uma das maiores bilheterias brasileira de todos os tempos. Teve nada menos do que mil cópias, algo raro e surpreendente. Vicente fazia o papel do bêbado, homem triste, traído pela mulher. Foi  abandonado pela família e amigos. Desesperado, o personagem tentou uma chance em um programa de calouros do rádio, que imitava Calouros em desfile, de Ary Barroso, famoso no rádio brasileiro. E o bêbado começa a ganhar notoriedade e algum dinheiro para terminar seu curso de medicina.


Ao cantar Mia Gioconda, Vicente contava a história de um pracinha que foi lutar na Itália e lá se apaixonou por uma mulher, que ele apelidou de minha Gioconda. A letra mistura ufanismo, FEB, paixão e tristeza. No fim da guerra, não deixaram o soldado trazer a mulher ao Brasil. A italiana ficou no cais cantando para o brasileiro.  Algumas frases dessa música são ditas em italiano, língua dos pais de Vicente.  “Tu sarai mia Gioconda”, e ela respondia. “Brasiliano, minha vida hoje é você”. 


Chorar a traição da mulher, sofrer por amor, beber até cair, todo esse dramalhão que fez tanto sucesso acabou cansando o público que mudava de gosto. Vicente passou a se sentir discriminado. A voz era ótima, mas o cantor era rejeitado no Teatro Municipal. O cantor Orlando Silva chamou-o de “bebê chorão do rádio”.

Em 1964, a 12 de setembro, a Rádio Nacional comemorou os 70 anos de Vicente Celestino em um programa de auditório. Curiosamente, viveu o personagem de O Ébrio na telenovela da TV Excelsior de São Paulo. Reconhecido ele foi pelo júri do Festival Internacional da Canção que lhe concedeu o diploma de A Expressão Máxima da Canção, pela TV Globo. Essas informações estão no livro O hóspede das tempestades, de Guido Guerra (Record).

O meu amigo Luiz Antonio de Almeida, biógrafo de Vicente Celestino, contou que ficou impressionado com a reação do cantor Gilberto Gil, ao gravar seu depoimento no MIS. O cantor baiano lembrou-se de que ele e Caetano Veloso tinham um programa na TV Record, que fazia homenagem aos antigos artistas, nos anos 60. O primeiro convidado foi Vicente Celestino. Para a neta de Vicente, Gil contou: “Celestino nos deu uma tremenda bronca... Nós estávamos ensaiando a cena da Santa Ceia (uma versão “tropicalista” que seria levada no programa) e o Vicente, com o dedo em riste, praticamente gritando, disse: ‘Eu posso entender um Cristo negro (personagem do Gil), mas a sagrada hóstia substituída por uma banana, ah..., isso eu não aceitarei jamais!’”

         Segundo Luiz, que também é biógrafo de Vicente Celestino, “ele não cantava em público há meses... Estava doente. Um câncer já começava a espalhar pelo corpo, da próstata aos pulmões... Perdera vinte quilos... Sua esposa, Gilda de Abreu, o incentivara a viajar... Achava que lhe faria bem... Vicente interpretou uma de suas, então, mais recentes canções: "Obrigado, meu Brasil", e durante o ensaio ficara emocionadíssimo por ter alcançado notas que há muito sua voz já não chegava. Na mesma noite de 23 de agosto de 1968, no Hotel Normandie,  aguardando a hora do programa, Vicente morria. Estava vestido com seu smoking, tinha 74 anos e sofreu um infarto fulminante.
  

É do mesmo filme a música Porta Aberta, em que, mais uma vez, a religiosidade aparece fortemente. A porta aberta era o acolhimento que recebeu da religião católica, depois de tantas portas fechadas.  No YouTube, pode-se ouvir um padre falando com o personagem achando que ele está cantando em casa, mas está, na verdade, em um programa de rádio.

Carmem não vai ser esquecida

Rose Esquenazi





Volto a escrever sobre a maior cantora brasileira de todos os tempos, em minha opinião, e claro, de muitos outros fãs: Carmem Miranda.

Maria do Carmo Miranda da Cunha nasceu em 1909, em Canavezes, área rural de Portugal, e morreu em 5 de agosto de 1955. Os 60 anos de sua morte não foram muito divulgados e as homenagens ficaram no meio do caminho. Onde está a estátua que iriam inaugurar no Centro ou em  Copacabana? Quando será aberto o novo Museu da Imagem do Som, data  tantas vezes adiada, e que promete uma ala grande com o acervo da cantora?  Isso porque já fecharam o Museu Carmem Miranda no Flamengo há muito tempo.  O museu foi inaugurado em 1976 com roupas, sapatos de plataforma, turbantes e bijuterias, algumas criadas pela própria Carmem.

Ano passado, morreu Doni Sacramento, um dos maiores admiradores de Carmem. Criador de uma página somente para a Pequena Notável, o professor Sacramento investia tudo que ganhava para alimentar o site de sua paixão absoluta.  Tentei checar essa página e está fora do ar.  Chamava-se: www.carmen.miranda.nom.br. Ainda bem que a família mantém um site ativo.

Hoje vou me concentrar na Carmem Miranda antes de ir para os Estados Unidos, em 1939, onde continuou a carreira com muito sucesso. Vamos falar sobre como o rádio e a cidade do Rio moldaram o astral e o jeito de ser da cantora. Os fãs podem repetir o trajeto de Carmem pela cidade. Podemos dizer que ela foi pioneira de sua geração ao crescer dentro do universo radiofônico brasileiro.
O primeiro endereço da família de Carmem no Brasil, chegada de Portugal, muito pobre, foi em São Cristóvão, mas não se tem o registro exato.  O segundo foi na Rua Senhor dos Passos, 59, no SAARA.  Depois, a família se mudou para a Rua da Candelária, 50, hoje, número 94.  Dos seis aos 16, Carmem morou na Rua Joaquim Silva, 53, casa 4, na Lapa. Não existe mais a casa na vila, mas foi ali, no meio da boemia, que ela conviveu com vários tipos de pessoas, de escritores a músicos, prostitutas, malandros e jornalistas.

     A família ainda morou na Travessa do Comércio, 13, Praça XV, de 1925 a 1932. Ali funcionava pensão de Dona Maria, mãe de Carmem, lugar frequentado por Pixinguinha, Donga e João da Baiana. Foram eles que  abriram o caminho do samba para ela.  O pai era barbeiro e não ganhava muito, todos tinha, que ajudar no orçamento.

    A família, muito musical, também ajudou nessa formação artística. Anos mais tarde, Carmem vai gravar uma  música do famoso Sinhô: a Burucuntum. Nas ruas do Passeio, Ouvidor e Gonçalves Dias, Centro da cidade, Carmen trabalhou na juventude em casas de artigos femininos, de chapéus, aprendendo a confeccioná-los. Depois, foi para uma loja de artigos masculinos, defronte à Confeitaria Colombo. Era muito admirada pelos clientes e cantava enquanto trabalhava, coisa que o proprietário não gostava muito. Enquanto isso, ela e sua irmã mais velha, Olinda, já começavam a cantar amadoramente nos bistrôs dos arredores. Carmem amava o samba e os novos compositores que estavam surgindo e que se reuniam na sua casa.
Em uma festa conheceu o seu mentor, o compositor e violonista baiano Josué de Barros. Foi o primeiro a reconhecer o seu talento e graça. Ele disse, anos mais tarde: “Havia uma luz intensa nos olhos de Carmem e algo de elétrico no seu sorriso”. Foi ele quem a levou para a Rádio Sociedade. Foi bom o seu teste.

   O primeiro disco foi gravado em 1929: o samba Não vá simbora e o choro Se o samba é moda, os dois de autoria de Josué de Barros.Vamos ouvir um trecho da música Ta-hi, de Joubert de Carvalho, gravada em 1930. O público, ainda incipiente, gostou da voz de Carmem, os erres e os esses tão característicos dos anos 30.  Gostou tanto que comprou 36 mil cópias dos discos com Ta-hi.  Um número marcante.

Engraçadinha, criativa, espontânea, meio moleque, Carmem não hesitava em falar um ou outro palavrão.  Foram 40 músicas gravadas somente neste ano de 29, quando recebeu os títulos de “Rainha do Disco” e a “A Maior Cantora Popular Brasileira”. Um verdadeiro recorde, sobretudo para uma cantora tão jovem.

Em 1931, f ez uma turnê internacional para a Argentina e teve tanto sucesso que voltou oito vezes. Na primeira vez, cantou ao lado de Francisco Alves, o Rei da Voz, Mário Reis, e o bandolinista Luperce Miranda. Carmem se tornou um ícone lá também, com o apelido de Carmencita. Cantou na Rádio El Mundo e era querida por todos.

     Em 1932, os anúncios foram permitidos para ocupar 20% e depois 25% da programação. Mas antes disso, nos anos 20, ninguém ganhava um centavo com o rádio que estava proibido de veicular anúncios. Cantava-se por gosto e na esperança de, um dia, ser reconhecido. Em 1933, Carmem gravou a música As Cinco Estações do Ano, de Lamartine Babo, ao lado dos músicos e amigos Lamartine Babo, Mário Reis, Almirante e o Grupo do Canhoto. Foi uma farra ao microfone para festejar as cinco maiores estações de rádio naquele ano: Rádio Club, Rádio Philips, Rádio Sociedade, Rádio Mayrink e Educadora.
     O sonho de entrar para o cinema se realizou a partir de 1926, quando foi extra no filme A esposa do solteiro. Depois, em 1930, em  Degraos da vida, quando ainda se escrevia degraus com o. Em 1932, participou de O Carnaval Cantado de 32 e, em 1933, Alô, alô, Carnaval. Ao lado da irmã Aurora Miranda, interpretou uma das músicas ícones do rádio brasileiro, Cantoras do rádio, de Alberto Ribeiro, João de Barro e Lamartine Babo.


Nós somos as cantoras do rádio, levamos a vida a cantar
De noite embalamos teu sono,
de manhã nós vamos te acordar
Nós somos as cantoras do rádio,
nossas canções cruzando o espaço azul
Vão reunindo num grande abraço corações de Norte a Sul.

Canto pelos espaços afora
Vou semeando cantigas, dando alegria a quem chora
(bum, bum, bum, bum, bum)

     Carmem estava subindo como um foguete e foi a primeira a ganhar um salário fixo no lugar dos cachês pequenos que os intérpretes gostavam ganhar, eventualmente, quando se apresentavam nas estações. Foi do elenco fixo da Mayrink Veiga, ao lado do diretor artístico que se tornou grande amigo, César Ladeira.

Todos os compositores queriam escrever músicas para Carmem porque era sucesso certo.  Foi o caso de Assis Valente, grande artista que deu para Carmem nada menos do que seis canções. Entre elas, Good-bye, Camisa Listada, Uva de caminhão. Com Mário Reis, em 1934, cantou para o Carnaval a música Alô, Alô. Outro sucesso. 


A família se mudou mais uma vez, agora para a Travessa do Comércio, no Arco dos Teles. A casa foi tombada pelo Patrimônio Cultural  e tem hoje o nome de Carmen Miranda House in Club,restaurante e videokê que faz homenagem à Pequena Notável. Com o tempo, a família já tinha dinheiro para se mudar para uma casa maior. Foram todos para a Rua André Cavalcanti, 229, no Curvelo, em Santa Tereza, Moraram ali de 1932 a 1934. Felizmente também foi tombada pelo Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro. De 1934 a 1936, se mudaram para a Rua Silveira Martins, 12, hoje, 20, no Catete.  Fica ali o Hotel Inglês, em frente ao Museu da República, Ainda não há qualquer referência ao fato de o lugar já ter sido residência da artista.

Em 1936, ao lançar a Rádio Tupi de São Paulo, Assis Chateaubriand resolveu fazer uma loucura. Ofereceu a Carmem Mniranda um cachê que superou ao da Mayrink. Ela aceitou e provocou uma tempestade na imprensa. Como uma cantora de sambas, uma música considerada vulgar, conseguia tanto dinheiro? Essa era a questão. De volta ao Rio, foi recontratada pela Mayrink Veiga. Carmem nunca trabalhou na Nacional, curiosamente.
     O último endereço de Carmem no Brasil antes de ir para os EUA foi na Avenida São Sebastião, 131, Urca. A proximidade com o Cassino da Urca facilitou a vida da cantora que se apresentava lá. Seu número O que e que a baiana tem?, vestida a caráter, fez parte do filme Banana na Terra, de Wallace Downey, de 1939. A música era e Dorival Caymmi, um jovem que vinha da Bahia em busca de um lugar na música na Capital.

Foi no Cassino da Urca que a vida de Carmem Miranda mudou mais uma vez, ao ser convidada para trabalhar nos Estados Unidos. Será que existe uma placa no prédio atualmente. É claro que não! Vamos ouvir um trecho de O que é que a baiana tem no YouTube?


                                                                                                                          

Rádio Relógio Federal - Você sabia?



Rose Esquenazi



“Você sabia que a mosca é um dos insetos mais ligeiros e que se pudesse voar em linha reta levaria 28 dias para atravessar o mundo todo? Você sabia?” É claro que não, qual é a importância de conhecer esse fato besta? Mas, há muitos anos, era o tipo de questão que ajudava acordar os neurônios dos estudantes, comerciantes e todos os trabalhadores do Brasil às 5, 6, 7 horas da matina. Era uma época em que ainda não existiam celulares, computadores e modernos despertadores digitais.  A Rádio Relógio Federal marcou o público de rádio por sua pontualidade e por suas informações tipo revista Seleções: cultura inútil e outras nem tanto assim. A Rádio Relógio foi, por décadas, uma das mais interessantes rádios que o Rio já teve.

Apesar do inconveniente de madrugar como os galos, muita gente morre de saudades da Rádio Relógio, até hoje. A emissora fornecia a hora certa minuto a minuto, acrescentando as curiosidades mais loucas durante todo o dia. O importante era que a rádio estava conectada ao Observatório Nacional, que enviava o áudio da hora certa oficial do Brasil. Um aparelho de rádio era o eletrodoméstico mais importante de uma casa antes da TV. Mesmo depois que a TV foi inaugurada no Brasil, em 1950, em São Paulo, nem todo o mundo teve dinheiro para comprar um aparelho de TV, que custava caro. Ou seja, o móvel grande, de madeira, levou um tempo para ocupar a sala, além disso, havia poucas estações disponíveis. O rádio dominou a comunicação ainda na década de 50.

Outro dia, perguntei ao publicitário Kiko Fernandes sobre a Rádio Relógio, e ele imediatamente recitou: “Você sabia que o caranguejo olha para trás achando que está olhando para frente?” Que coisa enigmática, hein? O jornalista Giovanni Faria também foi rápido ao se lembrar de outras perguntas: “Você sabia que a melancia tem 95% de água?” E que o “mosquito é capaz de voar um quilômetro em sete minutos?” É engraçado como essas pérolas não se perderam na nossa memória.

A Rádio Relógio Federal foi fundada em 1956 e marcou época na história do rádio brasileiro. O rádio na sintonia de AM 580 Khz apresentava primeiro um toc toc toc incessante dos segundos ao fundo e uma transmissão mais ou menos assim: "Você sabia? O primeiro cronômetro marítimo foi construído no ano de 1715 pelo inglês John Harrison?”

 Nessa época, muitas mães abriam a porta do quarto das crianças lá pelas 6h manhã ameaçando os filhos. “Vocês vão perder a hora!” É claro que a Rádio Relógio já estava ligada. O toc toc dos segundos continuava ao fundo desesperando os mais lentos ou os que não queriam mesmo ir para a escola. "Você sabia que a pulga consegue pular a uma distância correspondente a 350 vezes o comprimento do seu corpo. É como se um ser humano pulasse a distância de um campo de futebol. Cada minuto que passa, um milagre que não se repete, toc toc toc, seis horas, cinquenta e cinco minutos, zero segundo pim pim pim toc toc toc...”

O nome da rádio se justificava: durante as 24 horas de programação, ouvia-se o "tique-taque" de um relógio, e nas viradas de minuto a minuto, entrava uma voz feminina falando a hora certa. Vamos ouvir um trecho do Rádio Relógio? https://www.youtube.com/watch?v=0uVqMJmRAS8

              Você sabe de quem era essa voz feminina?  O pim pim pim mais fino entrava sempre depois que a hora certa era informada minuto a minuto, 24 horas por dia, pela voz da locutora Iris Lettieri. Conversei com ela na sexta-feira e constatei que ela mantém  a mesma voz, apesar de ter passado dos 70. Ela explicou que já era locutora quando foi convidada para gravar todos os minutos. Não precisava ir à estação de rádio todos os dias. Mas muita gente pensava, principalmente as crianças, que a pobre locutora Iris sofria em cárcere privado e ficava 24h sendo obrigada a dizer a hora certa a cada minuto. Ela só podia se alimentar ou ir ao banheiro no intervalo entre cada minuto que informava.  Já pensou?

E os cochilos da locutora, como seriam, se ela logo "tinha" que voltar correndo para dizer: "Seis horas, cinquenta e seis minutos, zero segundo?” Pim pim pim toc toc toc...." O engraçado é que Iris me contou que essa história de cárcere privado também existiu quando convidava os passageiros a embarcar nos principais aeroportos do Brasil. Muita gente achava que ela morava no Aeroporto Internacional!  A sua voz sensual amenizava o medo do avião. Tanto que a “Voz do Aeroporto”, como é chamada,  ainda está presente no Tom Jobim nos avisos especiais e no BRT. Reconhecida como Patrimônio do Rio, o prefeito Eduardo Paz fez questão de fazer esse novo convite. Você sabia, Marco Aurélio?

Ah, quem estiver com saudades da Iris Lettieri pode acessar o site todo sonorizado: http://www.irislettieri.com.br/ Ali, pode-se saber que ela foi a primeira locutora de telejornal da TV brasileira, gravou spots até em russo e que foi garota propaganda e atriz de várias emissoras de TV.

 É claro que as gravações das 24h reproduzidas minuto a minuto pela Rádio Relógio foram feitas aos poucos, em um antigo equipamento chamado Gerador de Hora Falada, fabricado pela firma alemã. Com o tempo, passou a ter mais notas jornalísticas, utilidade pública, e continuava com os textos gravados por locutores, com inúmeras curiosidades.

Voltando ao Rádio Relógio: há pouco tempo, o blog assinado por Cássio Ribeiro incluiu um trecho do programa. Uma enxurrada de antigos ouvintes decidiu comentar. As observações são muito divertidas. Há muita saudade e emoção envolvidas nesses depoimentos. As pessoas sentem falta dos conteúdos de informação por mais loucos que possam parecer. Um ouvinte afirma que aprendeu muita coisa ali. Isso incluía a ladainha dos anúncios repetitivos pelas mães, vovós e criancinhas: “Galeria Silvestre, a Galeria da Luz”. Outro anúncio: "Material elétrico, alta e baixa tensão, atacado e varejo, R. Pinto, que canta de galo com preço de milho picado. General Caldwell, 173, pertinho da Central. Pneu carecou? HM trocou”.

            Nem todo mundo tinha relógio de pulso naquele tempo. O despertador também não era infalível, funcionava com corda e podia se quebrar com facilidade. Nada melhor do que a Rádio Relógio para conferir a hora certa.  No começo, quase não havia notas jornalísticas na programação que ficava muitas horas no ar, ao vivo. Era mais utilidade pública, textos enciclopédicos com curiosidades diversas sempre precedidas ou sucedidas com a instigante pergunta-bordão:  Você sabia que a formiga pode levar 70 vezes o seu peso? A luz do sol demora aproximadamente 8 minutos e meio para chegar à Terra; o prezado ouvinte sabia? Toc toc toc, seis horas, cinquenta e quatro minutos, zero segundo, pim pim pim toc toc toc.”

             As pessoas começavam o dia com essas fabulosas informações repetidas no ônibus escolar para o coleguinha que se sentava ao lado. “Você sabia que “o coração da baleia da Groelândia pode pesar até cinco toneladas? E que a palavra maricá tem origem no Tupi, e significa capim de espinhos?”  O locutor principal, não consegui saber o nome dele de jeito nenhum, continuava infinitamente dizendo: “Rádio Relógio Federal: cultura, notícias e a hora certa do Observatório Nacional, 24 horas no ar, minuto a minuto.” E assim a programação fluía. No lugar de ponteiros girando, ou números digitais se sucedendo, as vozes, o toc toc toc e o pim pim pim incessantes ecoavam no rádio.

            A programação foi homenageada na abertura do filme A Hora da Estrela, de Suzana Amaral, lançado em 1985. A personagem Macabéa, moça solitária e pobre que Clarice Lispector criou, revelava, ao ouvir A Rádio Relógio, toda a sua pequenez e humildade.  

A Rádio Relógio Federal passou a pertencer, em 1966, à denominação evangélica Igreja Pentecostal de Nova Vida, do Bispo Roberto McCallister. À exceção dos domingos, quando transmitia os cultos da Igreja de Nova Vida das 7h da manhã às 23h, a programação diária da Rádio era a seguinte:

Do minuto zero ao minuto 10: Cinema no relógio
Do minuto 10 ao minuto 15: Agenda relógio
Do minuto 15 ao minuto 20: Relógio Notícias
Do minuto 20 ao minuto 30: Falando de Esportes
Do minuto 30 ao minuto 35: Café Espiritual com o bispo Roberto
Do minuto 35 ao minuto 45: Movimento cultural da relógio
Do minuto 45 ao minuto 50: Relógio Notícias
Do minuto 50 ao minuto 59: Você sabia?

No ano de 2000, depois da morte de Robert McAlister, a rádio foi vendida a Igreja Internacional da Graça de Deus, onde passou por diversas fases. A primeira que durou até 2006, onde a Rádio Relógio adotou uma programação com música gospel, mensagens do Missionário R.R. Soares, informações jornalísticas e participação de ouvintes. Em fevereiro de 2007, a emissora adotou uma linha jornalística, no estilo all news, sem música, mas com programas populares, de esportes e religiosos. Esta programação foi mantida até maio de 2009. A partir desta época, a emissora passou a repetir a programação da Nossa Rádio FM.

Em mais de 60 anos de história, a Rádio Relógio Federal oscilou nos primeiros lugares entre as emissoras de AM da capital fluminense. A emissora já ocupou entre o terceiro e oitavo lugar. Com base em dados de março de 2013, o Ibope garantiu que a emissora ocupava há dois anos a quinta colocação. Espero que os nossos ouvintes se lembrem de boas histórias ao ouvir novamente a Rádio Relógio.

O advogado Orias Borges Leal, de Vila Velha, do Espírito Santo, por exemplo, escreveu no site de Cássio Ribeiro que gostaria de ser criança novamente para se lembrar do tempo em que viveu no interior de Minas Gerais. Segundo ele, era uma época “em que o relógio de pulso era novidade e as pessoas sabiam a hora certa pela Rádio Relógio Federal. “Êta tempo bom!”, registrou o advogado que cresceu ouvindo a Rádio Relógio na frequência de 4.905 Khz,  na faixa de 60 metros.


A internauta Ilka também ficou muito emocionada ao ouvir novamente as pílulas da Rádio Relógio. Ela escreveu assim: “As emoções para mim são em dobro e de arrepiar, até chegar às lágrimas porque nasci em 1957, a menos de 100 metros de onde ficavam os transmissores da Rádio Relógio Federal. No topo do morro, que tinha nos fundos de minha casa, ficavam as três torres de transmissão. Eu passei minha infância ouvindo a Rádio Relógio.” Na casa de Ilka, na Rua Gerônimo Afonso, 287, no Fonseca, em Niterói, só pegava a Rádio Relógio. Coitada, né?