quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

A música brasileira no front da Segunda Guerra

Rose Esquenazi

Circuito da Gávea - Primeira Parte


segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Teatro de Mistério: Hélio de Soveral




Rose Esquenazi

   Dos anos 50 aos 70, a Rádio Nacional transmitiu um programa policial que fez muito sucesso. Escrito por Hélio do Soveral, chamava-se Teatro de Mistério. Hélio do Soveral Rodrigues de Oliveira Trigo nasceu em Setúbal, Portugal, em 30 de setembro de 1918. Hélio foi um radialista muito produtivo e criativo. Assinou 20 novelas, em diferentes estações de rádio, e adaptou inúmeros textos. Trabalhou também na TV e no cinema, além de ser bem-sucedido escritor infanto-juvenil. Ficou famoso e usou vários pseudônimos imponentes. Ele foi Alexeya Slovenskaia Rubenitch, Allan Doyle, Clarence Mason, EllSov, Frank Rougler, Gedeão Maureira, Irani de Castro, John Key, por aí vai.

 Ouça o episódio O estrangulador de Laranjeiras, do Teatro de Mistério, recuperado pelo Tropix, Núcleo de Computação Eletrônica (NCE). O endereço é: outras bossas.blogspot.com.br.  Com muitos efeitos especiais, como vocês poderão constatar, e uma direção eficiente, o programa atraía um enorme público aos sábados pela manhã, às 9h, e nas noites de segunda-feira, em horário alternativo. 

    A atriz Carmem Dolores interpretou o papel da empregada Guiomar. Geraldo Avelar, o papel do comissário. Neida Regina, o de Alba e Cauê Filho, Djalma. O herói era o inspetor Marques, do Departamento de Polícia Judiciária do Rio de Janeiro. Em outras edições do Teatro de Mistério, o inspetor Marques foi interpretado pelo famoso ator Rodolfo Mayer e o detetive Zito por Gerdal dos Santos, que ainda hoje trabalha na Rádio Nacional. Com a demissão de Gerdal e Rodolfo Mayer, no golpe de 64, entraram no elenco Domício Costa, como inspetor, e Cauê Filho, como o japonês Minôro.

     A trilha sonora era muito interessante e aflitiva. O clima criado era perfeito para mais um crime recém descoberto em um bairro da Zona Sul. No caso, o estrangulamento de uma senhora muito rica. A sonoplastia, que ficava no fundo do estúdio, sempre foi ponto de honra da Nacional que caprichava nos detalhes. O contrarregra estudava o roteiro como todos os atores e diretores. Ele comandava o som dos objetos e instrumentos criados especialmente para a “decoração sonora”, como se dizia na época. Não havia computadores ainda, é claro.

     A música também era pensada com antecedência e entrava ao vivo. Os músicos ficavam na parte superior do estúdio. O diretor regia tudo: músicos e atores. A um sinal, começava a música e cada intérprete saía de seu assento no semicírculo, e se dirigia ao microfone conforme era solicitado pelo script. Não havia plateia no estúdio. No auge da Nacional, a Divisão de Radioteatro contava com 106 atores e atrizes, sendo seis vozes infantis. Até meados dos anos 50, foram transmitidas 861 novelas, sendo que a primeira foi Em busca da felicidade, em 1941.

    Vamos voltar ao Teatro de Mistério. Nessa edição, no bairro de Laranjeiras, três crimes seguidos deixaram os moradores apavorados. Na história radiofônica, uma mulher rica foi assassinada com um fio de nylon. A empregada Guiomar foi a primeira suspeita e foi investigada, logo no começo da transmissão. Mas a trama vai apresentando outros possíveis assassinos, como uma trama bem montada de Sherlock Holmes ouobra  escrita por Agatha Christie. O autor Hélio do Soveral conseguia misturar a narrativa britânica com locais e personagens tipicamente cariocas. Muito original.

    Hélio do Soveral escreveu 316 capítulos do Teatro de Mistério. Cada episódio tinha duração aproximada de 45 minutos. Os títulos sugeriam sempre a tensão que acompanha um caso policial. Um corpo na banheira, Armadilhas, Assassinos de Mulheres, Onde está Marisa, Morre um milionário, Quem matou Madame Blanchard, Retrato de um fantasma, são alguns deles.

    Nesse episódio, eram muitos os suspeitos. Podia ser o rapaz da farmácia, a dona da vendinha, o guarda-livros Djalma, ou talvez um total desconhecido. Podemos notar pelos diálogos, as expressões e frases da época. “Causar espécie, joias que são tentação para os ladrões, álibis perfeitos etc. “Você tem certeza de que não matou ninguém?”, perguntou a nova patroa de Guiomar para o marido deprimido. Djalma já tinha passado um tempo no manicômio. Sofrendo de frequentes casos de amnésia, ficava nervoso à toa e, muitas vezes, não dava conta de seus atos. O público apontava para ele: era claro que foi o autor do crime.

     Ao acompanhar o raciocínio do inspetor, que fazia uma minuciosa análise das investigações, as pessoas de casa iam mudando de opinião. O policial mostrava a falsidade dos personagens, suas  reações estranhas, os métodos de trabalho, desconfianças. Um dos truques foi procurar notas do dinheiro roubado que tinha numeração sequenciada. Era fundamental descobrir como o ladrão entrou na casa, usou da violência ou não?

     Os comentários dos internautas no site também são muito interessantes. Teve gente que gravou tudo para ficar ouvindo todas as noites e se lembrar do passado e aproveitar para matar a insônia. Outras pessoas são fãs do mistério, suspense e do clima de investigação dos mais estranhos crimes. No Memorial Soveral, cada episódio é acompanhado de sinopse e ficha técnica. 

     Hélio do Soveral chegou ao Brasil aos 7 anos e não fez curso superior. Segundo Renato Murce, no livro Bastidores do rádio (Ed. Imago), o único diploma que possuía era o PRE-Neno, como Amigo dos Cantores Novos.  Casa Neno vendia eletrodomésticos e patrocinava vários artistas do rádio. A vida profissional do radialista começou na Rádio Tupi, onde escreveu a primeira história seriada Aventuras de Lewis Durban. Era uma espécie de novela com capítulos semanais dirigidos por Olavo de Barros.

     Hélio entrou para o elenco do mais famoso programa de rádio dos anos 40, o
Programa Casé, na Rádio Mayrink Veiga.Depois,se mudou para São Paulo. Fez
sucesso escrevendo episódios do Teatro de Romance, na PRA-5, dirigido por
Oduvaldo Viana. Em 1941, a emissora tinha 95% da audiência no horário das
21h.

     A experiência em São Paulo foi muito rica, mas logo Hélio do Soveral estava de
volta ao Rio. Primeiramente, em 1941, foi free-lancer da Rádio Nacional e
produtor da Rádio Mauá. Em 1946, foi contratado pela Rádio Tupi do Rio, onde
escreveu a série humorística Neguinho e Juracy. Tratavam-se de esquetes que
fizeram muito sucesso, na Rádio-Sequência G-3, da Tupi.

     Hélio do Soveral era tão eclético que chegou a escrever as primeiras novelas
musicadas. Na Tupi, em Meu amor, escalou a Dircinha Batista, que interpretou
uma cigana. Em Pequetita, com Mildred dos Santos, o público pôde ouvir a voz
de Carlos Galhardo e músicas de Geraldo Mendonça. Como era costume, a
Tupi atrasava os salários. Por isso, Hélio do Soveral se transferiu
definitivamente para a Nacional, em 1949.

     Não é que, naquele tempo, atrasaram o salário de Hélio na Nacional?
Logo no primeiro mês, ele foi reclamar com o famoso diretor Victor Costa. A
briga foi pesada e por pouco os dois não saíram rolando pelas escadas da
emissora, na Praça Mauá. Acertado o salário, Hélio do Soveral se transferiu
para o programa César de Alencar, que quase que imediatamente se tornou
líder dos auditórios. E também maior ibope em todo o país. Durante 14 anos,
ele foi produtor de César de Alencar e seu nome era anunciado todos os
sábados para o auditório superlotado.

     Mais tarde, na Rádio Mauá, Hélio do Soveral apostou no Teatro experimental do
trabalhador.  Foi redator nos programas Haroldo de Andrade, na Rádio Globo. É
pouco? Pois, então, veja: ele também escreveu o primeiro policial na história do
cinema, O Dominó Negro, quetinha no elenco Elvira Pagã e Moacyr Fenelon.
Assinou comédias, entre elas, Milagre de amor, com Fada Santoro e Paulo
Porto, em 1951.

    Criativo e trabalhador, Hélio do Soveral escreveu livros de bolso para a Editora
Tecnoprint, hoje Ediouro, nos anos 70. As coleções se tornaram febre no país,
principalmente as infanto-juvenis. Preferiu usar o pseudônimo de Irani de
Castro. Hélio chegou a trabalhar na televisão. Na TV Tupi, em 1964, assinou o
programa Clube dos Mortos. Realizou shows para a TV Rio e uma novela sobre
vampiros para a TV Excelsior, dirigida por Jacy Campos.



Zezé Gonzaga: a Moreninha do Ritmo





Rose Esquenazi

      Zezé Gonzaga, nome artístico de Maria José Gonzaga, nasceu em Manhuaçu, Minas Gerais, no dia 3 de setembro de 1926. Zezé tinha uma linda voz. Não era tão popular quanto Marlene e Emilinha, mas se tornou uma das maiores cantoras e atrizes brasileiras da Rádio Nacional. Participou da dupla 'As Moreninhas do Ritmo' e do trio 'As Moreninhas', os dois grupos com Odaléia Sodré. Ouvimos no início a interpretação de Zezé para 'Ai, iô, iô' (Linda Flor), de Henrique Vogeler e Luiz Peixoto. A música fez parte do filme Chico Fumaça, com arranjo de Radamés Gnatalli.

    Zezé contou um pouco de sua vida no programa Ensaio, da TV Cultura, com apresentação de Fernando Faro, que morreu esse ano. A cantora disse que a família sempre foi muito musical. O pai, Sr. Rodolpho, era luthier, consertava instrumentos de corda, como ninguém. A mãe, Oraide, era flautista. O ouvido de Zezé era ótimo e sua voz de soprano ligeiro se tornou um exemplo de afinação. Já cantava em família desde os 13 anos e foi preparada para estudar canto e ler partitura. Em troca de pequenos serviços, o pai pôde pagar as aulas na cidade vizinha, Porto Novo. No Brasil, tudo é difícil no campo artístico, no clássico, então, é bem mais problemático.

    Aos 16 anos de idade, Zezé veio passar as férias no Rio de Janeiro e foi incentivada por um vizinho de Além Paraíba, segundo lugar de residência da cantora. Ela deveria participar de um programa de calouros. E o mais difícil da época era o de Ary Barroso, em 1942. Foi ao programa com a mãe, que tocou flauta, e ela cantou. Zezé ganhou nota máxima no Calouros em desfile, na Rádio Tupi.

    Voltou para Além Paraíba onde sofreu preconceito na escola. Como uma jovem se atrevia a dar canjas em um clube de jazz?  Em 1945, estava de volta ao Rio, onde participou do programa Pescando estrelas. Esse também era de calouros, na Rádio Clube do Brasil, com Arnaldo Amaral. Zezé ganhava os concorrentes em todas competições. Durante três meses, ficou cantando como caloura. Ganhou um contrato de três anos até se transferir para a Rádio Jornal do Brasil, onde integrava o conjunto do pianista Laerte.

     Só um pouco mais de história do rádio. Os programas de calouros começaram em São Paulo e logo se multiplicaram no Rio de Janeiro. O Pescando estrelas, da Rádio Clube, sucedeu o Papel Carbono, de Renato Murce.  A característica dessas duas atrações era a seguinte: os apresentadores não humilhavam os candidatos, como era frequente. O público costumava rir do fracassado candidato que desafinava ou se esquecia da letra e dos autores da música que iria cantar. Murce e Arnaldo Amaral respeitavam os novatos. 

    A título de curiosidade, conviveram no dial daquela época outros programas de calouro que eram a porta de entrada dos novatos em uma emissora: Aí vem o pato, na Rádio Nacional, Calouros do Ar, na Rádio Tupi e, mais tarde, Buzina do Chacrinha, na Rádio Clube de Niterói.

    Em 1948, Zezé Fonseca foi convidada pelo diretor Victor Costa e por Renato Tapajós a entrar para o elenco da Rádio Nacional. Além de cantora solo, fez parte de muitos conjuntos vocais.  Em 1951, pela gravadora Sinter, gravou o samba-canção Foi você, de Paulo César e Ênio Santos.  Com as Moreninhas, interpretouo baião 'É sempre o papai', de Miguel Gustavo, gravada em 1953. A letra é curiosa:

Papai, papai, papai // Quem é que atura // A cara feia da titia // Que vem cá pra casa // Pra ficar um dia // E a semana passa // E a tia não vai / É o papai / É sempre o papai ///// Quem é que ganha // Palmadinha de carinho // E agrado do filhinho // Que já tem um carro // Mas não tem cigarro // E anda sem nenhum // E sempre quer algum // Quando de noite // É o papai // Que é que luta // Trabalhando como um louco // E o dinheiro é sempre pouco // Porque sempre tem modista // Tem jantares na cidade // Tem festa de caridade // Onde a mamãe vai, ai, ai...É o papai.

    Zezé chegou a ser a cantora mais tocada da Nacional e uma das mais famosas locutoras e intérpretes do rádio teatro. Ela gravou um disco em 1949, que levou o seu nome, na Gravadora Columbia. Na Rádio Nacional, Zezé tinha um grande fã: nada menos do que grande maestro Radamés Gnatalli.

     Constantemente, a cantora era escalada para os shows noturnos da Nacional.
Radamés costumava fazer os arranjos para as obras de Villa-Lobos. Como o mercado não estava tão interessado nisso, Zezé baixava o tom de voz e cantava músicas populares, incluindo samba-canção, baladas e boleros. Vamos ouvir Cansei de ilusões, de Tito Madi.
    Zezé Gonzaga gravou boleros e até samba-jongo. Em 1959, lançou duas músicas da dupla Tom Jobim e Vinícius de Moraes, o samba 'A felicidade' e o fox 'Eu sei que vou te amar'. Em 1960, abriu uma agência de jingles, vinhetas e trilhas para o rádio e TV, ao lado do maestro Cipó e Jorge Abicalil.  Em parceria com o radialista e professor Luiz Carlos Saroldi, Zezé compôs o tema de abertura do Projeto Minerva.
   Apesar de ser tão querida, aos poucos, como aconteceu com muitos cantoras da Rádio Nacional, Zezé achou difícil manter a carreira em um momento de grandes mudanças. O poder da televisão crescia cada vez mais e tirava o público do mundo radiofônico. Não era mais preciso imaginar o rosto do ídolo ou lutar por um ingresso no auditório da Nacional. A partir dos 50, bastava ligar o botão da TV. Aos 45 anos de idade, em 1971, Zezé ficou desencantada com o lado muito comercial da gravadora Columbia (atual Sony Music). Decidiu parar, foi para Curitiba, para trabalhar em uma creche.

   Mas Hermínio Bello de Carvalho, compositor, agente cultural e grande conhecedor de música brasileira – além de padrinho das cantoras, como Elizeth Cardoso e Aracy de Almeida -, decidiu convidar Zezé para voltar a cantar. Isso aconteceu em 1979. Era uma ótima oportunidade porque  Zezé voltaria para o Rio de Janeiro para gravar um LP com repertório de primeira. Eram ascanções do velho amigo Valzinho, acompanhadas pelo sexteto de Radamés. Chamava-se Valzinho – Um doce veneno.

   Escolhido como um dos melhores discos de 1979, o disco divulgou as composições do artista que morreu poucos meses depois. O fato maravilhoso era que a voz de Zezé Gonzaga continuava afinada, mesmo depois de ficar tantos anos sem gravar. E o público reconheceu isso. Não voltou mais para Curitiba e aceitou os convites para shows e recitais.

   Mais uma vez Hermínio decidiu tomar a iniciativa de produzir o  CD Clássicos, em que Zezé cantou com Jane Duboc. Curiosamente, o primeiro CD solo só foi realizado em 2002. E o público aplaudiu a cantora do rádio em várias apresentações no Paço Imperial, no Rio de Janeiro.

    Assim nasceu o CD 'Sou apenas uma senhora que ainda canta', um convite da cantora Olivia Hime, dona da gravadora Biscoito Fino. Nos dois CDs, foram registradas canções de várias épocas costuradas e assim conseguiu-se um repertório magnífico. Vamos ouvir Zezé acompanhada de Maurício Carrilho, em Valsinha, de Chico Buarque e Vinicius de Moraes. Ela morreu em 24 de julho de 2008, no Rio, aos 81 anos.

Maria Muniz: a Sherazade do Rádio





Rose Esquenazi


     Grande personagem feminina do rádio brasileiro, a Maria Muniz ainda é desconhecida do público. No radioteatro, ela deixou de lado as tramas ficcionais, às vezes, exageradamente delirantes, e partiu para a ficção ligada aos temas da vida, de pessoas reais. Era roteirista e radioatriz. Além disso, Maria Muniz se dedicou aos programas voltados à literatura e à mulher. Foi pioneira e surgiu antes de Edna Savaget, Martha Suplicy, Hebe Camargo e Ana Maria Braga. Maria também foi produtora de uma das mais famosas criações da Rádio MEC, o programa Quadrante. Às 8h da manhã, com reprise no dia seguinte, ao meio-dia, Quadrante trazia uma crônica por dia. A seleção era de primeira: Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meirelles, Paulo Mendes Campos eram alguns deles. O mais famoso locutor desse programa foi o ator Paulo Autran. Não encontrei nenhuma crônica do Paulo Autran gravada para mostrar para vocês. Mas vamos ouvir, na voz de Garcia Xavier, a crônica de Paulo Mendes Campos, “O clube dos asmáticos”,  que foi irradiada na Rádio MEC, em 1963.  

      Nascida em 1905, no Espírito Santo do Pinhal, interior do Estado de S. Paulo, Maria Muniz sempre foi ousada e destemida. Ela gostava das brincadeiras dos meninos, seus irmãos, mais do que as das meninas. “Eu não tinha medo de coisa nenhuma”, revelou Maria Muniz na biografia assinada por Ricardo Cravo Albin, Luiz Antonio Aguiar e Mayra Jucá, lançada em 2005. Assim foi que passou a andar de motocicleta, algo incomum em 1927.  Ia à escola de patins e se apresentou sozinha para fazer as provas do Instituto de Educação.  Ou seja, uma feminista nata.

     No Rio de Janeiro, se aproximou do rádio, onde começou a pensar nos programas educativos e feministas. Ela se perguntava: “Por que a mulher há de ser burra? Tudo o que um homem pode aprender a fazer, a mulher também pode. Se eu fosse ouvir os conselhos das mulheres do meu tempo, tinha ficado uma carola, sem audácia, sem perseverança”.

    Um dos primeiros programas que Maria Muniz participou foi Tesouros imortais, com Teófilo de Barros Filho, na Rádio Jornal do Brasil. Nesse programa, intuitivamente, os produtores inseriram a publicidade no corpo do projeto, adiantando a ideia de merchandising. Quem patrocinava o programa era Eduardo Guinle, integrante da família brasileira mais rica na época. Um ano depois, a Rádio Guanabara ofereceu a Maria o dobro do que ganhava.

    Nesse tempo, Maria estava separada, tinha um filho e morava com uma amiga. Em 1948, na Rádio Guanabara, estreou A felicidade é quase nada. Nas palavras de Cravo Albin, “eram crônicas sobre “situações do cotidiano feminino, nas quais ela expõe diretamente sua opinião e se coloca no lugar de conselheira”. Tanto era novidade quanto uma histórica contribuição.  A felicidade é quase nada ia ao ar às segundas e quartas-feiras, às 14h30. Às segundas, Maria escrevia uma crônica de 15 minutos chamada “Vale a pena ser bela”. Como fez muito sucesso, o quadro passou a ser Hora feminina, às terças, quintas e sextas. Em todos os programas, havia um número musical.  Terminavam com dicas culturais na seção Divertimentos. Às quartas, Maria fazia o quadro Louras ou morenas.

    Segundo o biógrafo Ricardo Cravo Albin, a maior importância de Maria Muniz foi desenvolver uma linguagem nova. Conversava diretamente com as ouvintes, usando a fala usual das donas de casa e das empregadas do comércio. E como fazia sucesso! Quando os ouvintes imaginavam que ela daria conselhos de como cuidar da beleza feminina, ela esclarecia: “Quero fixar bem que Louras ou morenas  visa principalmente à educação espiritual da mulher. Importo-me muito mais com o que pensam as mulheres do que com a aparência que ostentam. Quero assim esclarecer que viso, nesses poucos minutos, dedicar-me exclusivamente à sua alma, minhas queridas amigas”.

     Não é interessante esse conceito? É claro que Maria Muniz sabia que se podia e se devia corrigir os defeitos físicos e desenvolver a beleza exterior. Mas ouçam o que ela escreveu para  A felicidade é quase nada: “Podemos também – e talvez com mais facilidade ainda – destruir em nós as fealdades da alma e aumentar o poder do espírito. Pode-se, portanto, adquirir uma beleza moral. Basta para isso elevar os pensamentos, aprimorar os sentimentos e cultivar os dons intelectuais...”

    Maria escrevia pequenos esquetes de radioteatro em A felicidade é quase nada. Geralmente, eram dois personagens que contracenavam. Situações simples que duravam cinco minutos e acabavam com uma mensagem que Albin dizia ser “a moral da história”.  Havia também a leitura de cartas dos ouvintes.

    Maria Muniz passou da Rádio Guanabara para a Rádio Tamoio. Em uma autoavaliação, ela reconheceu “não haver quem escrevesse roteiros como ela. Suas histórias também eram ótimas”.  Isso é, até que surgiu uma colega muito talentosa. Adivinhem quem era? Nada menos do que Janete Clair. Maria admitiu que a colega era genial.

     Havia outro programa muito popular assinado pela radialista: Eu acredito em milagres. Enorme sucesso da Rádio Tamoio, ficou em primeiro lugar na audiência e teve a duração de 11 anos. Maria contava casos extraordinários relatados por ouvintes que escreviam para a emissora. Eventualmente, inventava histórias quando os casos não eram tão bons.  Acabou ganhando  o reconhecimento e uma Láurea da Cúria Metropolitana, em 1954. O cardeal D. Jaime de Barros Câmara disse assim à Maria: “A senhora é a responsável pela maior campanha de apostolado laico que este país já viu. Sua Santidade o Papa está lhe concedendo uma Láurea. A senhora será condecorada e sua família será abençoada até a terceira geração”. Maria levou um susto. Não imaginava que um programa de rádio teria tanta repercussão.

    Vamos ouvir um trecho com Encontro com a literatura, que ia ao ar na Rádio MEC, às sextas, às 20h30. Nessa edição que tem um som baixo, que não resistiu ao tempo, Maria entrevistou o escritor, poeta e jornalista Álvaro Moreyra. A entrevistadora do programa Maria Muniz descreve biblioteca da casa de Álvaro, “uma floresta de livros”. Ela faz perguntas diretas e um tanto formais. Ainda ressalta os erres e os esses, como se fazia antigamente.  Em 30 minutos, o ouvinte se aproximava e se apaixonava pela obra e vida de vários escritores. Quantos programas de literatura existem hoje nas rádios brasileiras?  

    Maria Muniz perguntava qual foi o primeiro amor da vida do entrevistado, como era a mãe, pedia para descrever a casa da infância, qual foi o primeiro desejo, por aí vai. É bom lembrar que o próprio entrevistado, Álvaro Moreira, que vamos ouvir aqui, era  imortal da Academia Brasileira de Letras, e também atuou no rádio. Primeiramente, na Rádio Cruzeiro do Sul e depois na Rádio Globo, onde escrevia e apresentava Bom dia, amigos, uma crônica diária de cinco minutos de duração. Gostaria de agradecer a Michelle Tito, da Central de Pesquisa da Empresa Brasil de Comunicação e Aline Brettas, da Rádio MEC, que conseguiram esses programas para o quadro O Rádio Faz História.

    Mas por que   Sherazade do Rádio. Segundo Mayra Jucá, que escreveu uma tese sobre a radialista,  o apelido foi dado por Manoel Bandeira, ou à sua máquina de escrever, por Nelson Rodrigues. O livro em homenagem à radialista foi publicado quando ela fez 100 anos, em 2005, Segundo, Mayra Jucá, ela ainda tinha “histórias dignas de encantar o Sultão Shariar por mil e uma noites”.

    Maria Muniz era também inspetora de ensino, radialista  e, durante um tempo, chefe da divulgação da Rádio MEC. O programa Poesia necessária, na Rádio MEC, durou muitos anos. Era dedicado aos grandes poetas nacionais e internacionais. Amiga de Arminda, Villa-Lobos, escreveu também Villa-Lobos, sua vida e sua obra. Infelizmente, procurei por trechos desses dois programas e não encontrei. Vamos ouvir mais uma edição do programa Quadrante, que ficou no ar muitos anos na Rádio MEC e foi produzido por Maria Muniz. Um dos locutores mais famosos do Quadrante, como já contei,  foi o ator Paulo Autran. 

     Paulo Autran disse, em entrevista, que foi “contratado em 1957 por Murilo Miranda para ler as crônicas do programa Quadrante na Rádio Ministério da Educação”. Nesse tempo, Maria foi anjo bom. “Era quem me fazia companhia, aplainava dificuldades burocráticas, resolvia pequenas complicações”. O ator sentia orgulho de ler uma crônica a cada dia da semana principalmente porque eram grandes nomes, tais como Carlos Drummond de Andrade, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino e Dinah Silveira de Queiroz. Era um dos programas com maior audiência da emissora. Na época da ditadura, cortaram a participação de Paulo Autran. A censura achava a que havia liberdade artística demais no programa. Mais tarde voltou ao ar.