quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Carlos Galhardo: “O cantor que dispensa adjetivos”


Rose Esquenazi






Fascinação, de 1957



No quadro O Rádio Faz História, do seu programa Todas as Vozes, já apresentamos grandes cantores que fizeram parte da Época de Ouro da Música Brasileira: Francisco Alves, “O Rei da Voz”; Orlando Silva, “O Cantor das Multidões”; Sílvio Caldas, “O Caboclinho Querido”. Ficou faltando um: Carlos Galhardo, “O cantor que dispensa adjetivos”. Vamos tentar lembrar a obra que ele nos deixou, que costuma ser tão esquecida. Chega a ser uma injustiça.
        
Como os outros cantores de grandes vozes, Galhardo frequentou a Rádio Nacional e conquistou milhares de fãs. Foi um importante intérprete de valsas, mas também cantou boleros e sambas. Ouvimos, na abertura do quadro, uma das mais lindas canções gravadas até hoje, Fascinação. Na voz de Carlos Galhardo, a música arrancava suspiros, principalmente das mulheres apaixonadas e românticas, loucas para se casar.

Vamos contar a história do começo. O nome verdadeiro de Carlos Galhardo era Catello Carlos Guagliardi. Ele nasceu em 26 de abril de 1913, em Buenos Aires. Os pais italianos emigraram para a capital argentina  depois de uma rápida passagem pelo Brasil. Mas a família voltou e, aos quatro meses, Catello passou a viver no Rio de Janeiro.

Para sobreviver, ele trabalhou em algumas alfaiatarias. Em uma delas, conheceu o barítono Salvador Grimaldi. Os dois faziam duetos de ópera já que os eram apaixonados pela música italiana. Depois, trabalhou em uma tabacaria.  Informalmente, a carreira começou durante uma festa na casa de um irmão de Carlos Galhardo, onde estavam Mário Reis e Lamartine Babo. Cantou Deusa, de Freire Junior, do repertório do Rei da Voz, e agradou bastante os convidados. Foi aconselhado a fazer um teste no rádio. E foi o que ele fez.

O sonho de todos os jovens, na época, é claro, era cantar no rádio. Assim fez o primeiro teste na Rádio Educadora do Brasil, com o compositor e violonista Bororó. Adivinhe onde foi que isso aconteceu? No banheiro da estação! Devia ter uma boa acústica, acredito. A música que abriu as portas para a carreira de Carlos Galhardo no rádio foi Destino, de Nonô e Luís Iglesias. E não é que parece que foi o destino que ajudou muito na carreira? No dia seguinte, Galhardo foi convidado para fazer o primeiro teste para o diretor da gravadora RCA Victor, Mr. Evans. Ele cantou a música de Noel Rosa: Até amanhã. Mas foi com uma canção dos Irmãos Valença, Você não gosta de mim, que ele gravou o primeiro disco. A carreira na indústria fonográfica foi longa e rica. Depois de Francisco Alves, não houve quem gravasse tanto.  Ganhou também o apelido de O Rei do Disco.

Baseada nas informações do programa Musicograma, da Rádio Nacional, que fez um especial com Carlos Galhardo, descobri que o cantor fazia de tudo nos coros das gravadoras.  Assim conseguiu aprender todos os ritmos: fox, valsa, bolero, marcha e samba. Em tudo que cantava, ele imprimia a sua linda voz e personalidade. Soube também que ele gostava muito da música, ainda sem letra, que abria o programa Cidade Maravilhosa, de César Ladeira. Era Fascinação, de Fermo Dante Marchetti.  Por isso, pediu a Armando Louzada que compusesse a letra dessa música que iria se tornar um clássico da MPB e um dos carros-chefes de sua carreira.

Carlos Galhardo gravou um dos grandes sucessos criados por Nássara:  Allah-lá-ó. Até hoje, ela é cantada nos bailes de Carnaval. Segundo o próprio compositor, o sucesso da música se deve a 78% à interpretação de Galhardo.  Vamos ouvir Allah-lá-ó:

https://www.youtube.com/watch?v=6rXzTxcIpOo

O compositor Custódio Mesquita fez uma aposta com Galhardo. Entre as duas novas músicas que ele compôs, Mesquita disse que Rosa de Maio faria mais sucesso na voz de Galhardo. O cantor achou que seria Gira Gira, com a co-autoria de Evaldo Ruy. Quem ganhou a gravata da aposta?  Custódio Mesquita. Vamos ouvir Rosa de Maio?


https://www.youtube.com/watch?v=rUHnbJjAH9E

Tal como Orlando Silva, Carlos Galhardo apareceu em filmes. Ele participou do elenco dos filmes Banana da terra, dirigido por J. Ruy (1938), Vamos cantar, de Leo Martins (1940), Entra na farra, de Luís de Barros (1941), Carnaval em lá maior, de Ademar Gonzaga (1955) e Metido a bacana, de J. B. Tanko (1957). Com seu bigodinho e belo porte, era seguido pelas fãs do cinema também.
Ganhou muito espaço nos cassinos e nos shows pelo país.  Depois, com o fim dos cassinos, passou incólume pelos movimentos que modernizaram a música brasileira, tais como Bossa Nova, Jovem Guarda e Tropicalismo. Não se interessou por nenhum deles e nem mesmo pela TV, que começou no Brasil em 1950.  Mas, com o tempo, as coisas foram mudando. Assisti pelo You Tube a uns trechos de alguns programas musicais dos quais o cantor, bem mais velho, se apresentou contando a sua história. Ele apareceu na Cidade de Conservatória, distrito de Valença, que cultiva a seresta até hoje. O ambiente musical combinava com o cantor. Por isso, ele compôs Conservatória, Apoteose da Felicidade.


Em 1941, gravou Boas Festas de Assis Valente. Mais um grande sucesso de Carlos Galhardo. Vamos ouvir a marcha natalina.




Como outros grandes cantores da música brasileira, Galhardo gravou, em 1945, um disco infantil. Ao lado de Dalva de Oliveira, gravou a música Os Trovadores, uma adaptação de João de Barro para a história infantil Branca de Neve e os sete anões, com canções de Radamés Gnattali.

Eu disse que ele mudou com o tempo e, em 1970, Galhardo gravou um disco no estilo Bossa Nova. O último álbum foi feito em 1979, em que misturou Ary Barroso e Chico Buarque. Diferentemente de outros artistas que morreram muito cedo, tiveram vários problemas com a bebida e outras drogas, Carlos Galhardo se manteve saudável e morreu aos 72 anos, em julho de 1985. Sempre foi casado com a mesma mulher. Até o final da vida, manteve a agenda cheia de compromissos.


Vamos ouvir, para terminar,  Eu sonhei que estavas tão linda, de Lamartine Babo e Francisco Matoso. Emocionante até hoje, grande interpretação de Carlos Galhardo.


Eu sonhei que estavas tão linda https://www.youtube.com/watch?v=5hHoRXzd8PI

Rádio Blog : o Rádio nas ondas curtas

Rose Esquenazi


Mil corações, a valsa de 1938, com Nuno Roland.


No dia 31 de dezembro de 1942, a Rádio Nacional passou a falar várias línguas. No governo do Estado Novo de Getúlio Vargas, durante a Segunda Guerra, o Departamento de Imprensa e Propaganda decidiu investir na radiodifusão através das ondas curtas. Programas da Rádio Nacional eram traduzidos para os idiomas inglês, francês e espanhol. Com essa primeira estação de ondas curtas, das quatro que vão existir nos anos seguintes, a Nacional se torna uma das potentes rádios do mundo.  Eram estações de ondas curtas: a PRE-8, a PRL-7, a PRL-8 e a PRL-9.

Imaginem um mundo sem internet, computadores e antenas parabólicas. É difícil, mas era assim nos anos 40. Para as novas gerações entenderem do que estamos falando, segundo o texto da Rádio France, as ondas curtas são quase um milagre porque as frequências por onde passam essas ondas dependem de três fatores para sintonia: a hora do dia, a estação do ano e a atividade do Sol. “Esta dificuldade que muitos encontravam para sintonizar uma rádio internacional é o que acabava transformando a atividade em um hobby.”
O professor João Batista de Abreu Junior, doutor em Comunicação na UFF, ensina que, enquanto o sal é um ótimo propagador de som,  a luz solar é péssima. De preferência, escolhe-se uma área junto ao mar para instalar as antenas porque é preciso de 10 mil metros quadrados de área para que a onda possa propagar. Segundo João, uma das primeiras experiências em ondas curtas foi durante a Guerra Civil Espanhola. Havia a rádio falangista, de Franco, e a rádio republicana, as duas em Barcelona. Perto do Mar Mediterrâneo, as ondas chegavam ao norte da África, e, em árabe, os locutores arregimentavam pessoas para lutar na guerra.
No início dos anos 40, o investimento em ondas curtas mobilizou a Rádio Nacional. E isso aparece nas páginas extras do Boletim da emissora. Três meses depois, passaram a ser publicados boletins específicos da emissora intitulados Rádio Nacional – do Brasil para o Mundo: Boletim Informativo de Serviços de transmissões. Bimensais, eram editadas em português, inglês e espanhol.

A partir de 1943, são muitas as pessoas do Alasca, Inglaterra, África do Sul, África Francesa, Índia, Nova Zelândia, Suíça, Japão que mandam cartas para a Nacional pedindo um cartão-postal da emissora. Dessa maneira, elas confirmavam o recebimento da mensagem. Pediam também discos de cantores brasileiros e faziam muitos elogios.

O senhor Higham Hill, de Northbanks, Inglaterra, por exemplo, escreveu a seguinte carta, publicada na última semana de dezembro de 1944, na Revista da Rádio Nacional. Vocês vão ver que é muito curiosa a linguagem formal e estranha que o senhor Higham se comunicava em português.

“Prezados senhores – Tenho o prazer em dar-vos os parabéns pelos ótimos programas que levais a afeito. Sou um ouvinte costumeiro da Rádio Nacional e acho os novos programas (são) muito interessantes. Os ouvintes daqui das Ilhas Britânicas sentem-se mais próximos dos seus aliados brasileiros devido a vossos broadcastings. Desejaria apenas que a duração de vossos programas fosse maior, uma vez que é recebido aqui com notável clareza e bastante forte.”

Em outubro de 1944, J.B. Cooper, um ouvinte do Canadá, disse que captou as transmissões em Vancouver. Sabia que estavam dirigidas aos Estados Unidos, mas afirmou que elas eram bem-vindas por lá. Acabava assim a carta: “O transmissor do qual temos ouvido as irradiações tem por prefixo PRL8 – 11,720 kcs, 25 metros”.

É bom esclarecer: a estação de 50 quilowatts de potência da Nacional tinha oito antenas, sendo duas dirigidas aos Estados Unidos, duas à Europa e para a  Ásia.  Com a grande extensão do território brasileiro, outras antenas enviam as ondas curtas onde não havia rádio e, assim,  acabaram unindo o país. As antenas estavam instaladas no bairro de Lucas, ao lado das antenas de onda média. Até hoje, a Rádio Nacional da Amazônia tem uma importância muito grande na comunicação.


De acordo com o livro Rádio Nacional, o Brasil em sintonia, de Luiz Carlos Saroldi e Sonia Virgínia, o diretor Gilberto de Andrade, em 1941,  escreveu um texto dizendo que, a partir daquele momento, era “a voz do Brasil que vai falar ao mundo, para dizer aos poucos civilizados do universo que o que aqui se faz em prol dessa civilização. É a música brasileira que será difundida através dos recantos mais distantes do globo, exibindo toda a sua beleza e todo o seu esplendor”.

Nós ouvimos, no início do quadro, a valsa Mil corações, de 1938, com Nuno Roland. O cantor catarinense que estreou na Rádio Nacional no primeiro dia de funcionamento da estação, 12/9/1936, era uma das atrações dessa programação internacional. Fazia parte da época de ouro, ao lado de Francisco Alves e Orlando Silva. Todos estavam começando a fazer sucesso também em outros países já que a Argentina já tinha sido conquistada.

 Nas revistas divulgadas pela Rádio Nacional, havia toda a grade de programação e, marcadas com asteriscos, as atrações dirigidas especialmente para os estrangeiros. Não era apenas a música e o Repórter Esso que iam para o exterior. Havia propaganda maciça de produtos nacionais. Falava-se do café, da borracha, do algodão e da madeira.

O baião de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, interpretado pelo grupo Quatro Azes e um Coringa, deve ter surpreendido muita gente em diversas partes do mundo, nos anos 40. Era um som diferente e bem brasileiro. Vamos ouvir?

https://www.youtube.com/watch?v=AaCntPYVNx8


Grandes nomes também escreviam crônicas que eram lidas em várias línguas. Manuel Bandeira assinava algumas delas, sempre tratando assuntos do cotidiano. Anos mais tarde, essas crônicas se transferem para a Rádio MEC, onde ganham a voz de Paulo Autran e o nome de Quadrante.

Além de Manuel Bandeira, assinavam textos exclusivos para a Nacional o poeta Cassiano Ricardo, que também era diretor do jornal A Manhã, do governo, e era diretor também do Departamento de Divulgação Político-Cultural da PRE-8.  Seus colaboradores – Roquete Pinto,  Raul Machado. Vieira de Melo, Gilson Amado, Andrade Muricy e Silvio Froes de Abreu - se reuniam e, diariamente escreviam crônicas de caráter cultural e político e transmitidas nas frequências de 9.520 e 11.720 quilociclos.

Além de viajar para o exterior, esse material também era apresentado na Rádio Nacional, em ondas médias.  A expansão tinha um caráter ideológico e político. O mesmo projeto era praticado pela Rússia, e, depois, pela Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos. Fazer a cabeça das pessoas usando a música e o sotaque local era sucesso garantido.

Na última semana de dezembro de 1944, a Revista da Rádio Nacional publicou a programação de ondas curtas que incluíam as atrações exclusivas para os soldados da FEB na Itália, às 11h da manhã. Às 15h30, havia as mensagens aos expedicionários, mandados pelas mães, noivas e mulheres dos pracinhas.

Os anos 50 foram o auge das ondas curtas. O professor João Batista lembra do noticiário diário Llamando a América, em espanhol, feito por José Payá.  Vamos ouvir agora um fado brasileiro que estreou no Um milhão de melodias na Nacional, em 1953. Nora Ney foi acompanhada pela Orquestra Brasileira, sob a direção de Radamés Gnattali. Deve ter agradado muito os portugueses. Em 1944, Um milhão de melodias já aparece na grade da Nacional.

                 Canção de Portugal Garoto e José Vasconcelos



Além do noticiário para o Uruguai, e outro geral, para a América Latina, havia um especial para Portugal, o Canadá e os Estados Unidos, com Rocky Wood. Já o programa para a Inglaterra e Irlanda, era apresentado por C. Corder.

A Hora do Brasil ganhou uma versão mais enxuta porque os ideólogos do Estado Novo imaginaram, com razão, que os estrangeiros não suportariam muito sobre os feitos do governo brasileiro.  Vamos ouvir Rosina Pagã, outra atração para os estrangeiros. Só para lembrar, a paulista Rosina era irmã de Elvira Pagã e juntas formaram a dupla Irmãs Pagãs. Em 1940, ela foi contratada pela Nacional. Rosina morreu aos 94 anos, em Los Angeles, no ano passado.

                   Rosina Pagã e Germán Valdés (Tin-Tan), "Por que será?"





Rádio Blog – O horário das crianças

Rose Esquenazi




O rádio foi e ainda é um espaço muito importante para as crianças. No passado, sem muita concorrência, antes de a TV existir, preenchia muito a imaginação infantil. E não só isso. A garotada também tinha programas dedicados a ela e alguns feitos por elas, com a ajuda de alguns radialistas.

O Clube do Papai Noel, por exemplo, foi muito importante para divulgar os talentos infantis desde 1937, na Rádio Difusora de São Paulo. Idealizado por Fernando Getúlio Costa, a atração é foi inicialmente apresentada por  Itá Ferraz. Alguns dias depois, Homero Silva passa ao comando do show.
Homero Silva se tornou grande sucesso principalmente aos domingos, às 16h15, quando as crianças se apresentavam cantando, tocando algum instrumento ou recitando versos. Durante a semana o Clube do Papai Noel tocava as músicas escolhidas pelo seu público que tinha até carteirinha e assistência médica.

Mais tarde, esse programa vai migrar para a TV Difusora, Tupi. As duas empresas de Assis Chateaubriand ficavam no mesmo prédio, no Alto do Sumaré, em São Paulo. Algumas crianças cresceram e ficaram famosas. Tornaram-se funcionários da primeira geração de atores e locutores da primeira emissora brasileira,  em 1950. São eles, Walter Avancini, que vai se tornar um grande diretor de TV. Erlon Chaves, ainda muito menino, que vai ser maestro conhecido. Hebe Camargo, Cely Campelo, Wanderley Cardoso,  são alguns desses artistas mirins que seguiram a carreira artística.

Consegui o depoimento de Vida Alves que contou como foi participar do programa Clube do Papai Noel, em São Paulo. Muito jovem, Vida Alves foi contratada pela Difusora Tupi e protagonizou o primeiro beijo da TV brasileira,na novela Sua vida me pertence, de 1951. Muita gente em São Paulo ficou horrorizada ao ver uma atriz beijando um ator na TV e reclamaram com a direção da estação.

Marcelo Abud, na Rádio Bandeirantes, Vida Alves, conta como era o programa.

http://interferenciaradiobandeirantes.blogspot.com.br/2013/12/vida-alves-relembra-e-filhos-dos.html
O que acabamos de escutar foi uma recriação do programa Você é curioso? Em que os radialistas convidam crianças para cantar e lembrar um pouco aqueles tempos.  Os dois meninos,mesmo sem ensaio, cantam ao microfone. Um melhor do que o outro. Então, também era assim: uns desafinavam, esqueciam a letra enquanto outros pareciam superprofissionais.
Vamos ouvir um trechinho do Lucas Teodoro cantando One Direction, e Eduardo interpretando Jingle Bell sendo entrevistado por Silvania Alves e Marcelo Alves, da Rádio Band.

http://interferenciaradiobandeirantes.blogspot.com.br/2013/12/vida-alves-relembra-e-filhos-dos.html


Outro programa infantil muito conhecido foi o Club do Guri, que também nasceu na Rádio Tupi, do Rio, e depois migrou para a TV, com o nome de Gurilândia. Dirigido por Samuel Rosemberg , estreou em 1949, sendo transmitido até 1955. Tal como o Clube do Papai Noel, o Club do Guri revelou grandes talentos. Vamos ouvir uma recriação desse programa e o hino um tanto ufanista que tocava no início da atração.


No You tube: ELIS REGINA - FALSO BRILHANTE AO VIVO - CLUBE DO GURI E NO DIA EM QUE EU VIM ME EMBORA

 

Todas as crianças queriam cantar ou tocar no rádio. E os pais incentivavam os talentos mirins. A cantora Sonia Delfino apareceu no Club do Guri e fez muito sucesso. Entrevistei-a para a minha coluna No túnel do tempo, no Jornal do Brasil, nos anos 90, e ela me disse que gostava tanto de se apresentar que acabou apertando os pequenos seios para que não parecesse que ela tinha crescido. Os participantes quando chegavam aos 13 anos não podiam mais frequentar o Club do Guri.  Sonia Delfino ganhou o concurso de 1955 e começou a carreira profissional com a versão de Jingle Bells, ou seja, Sinos de Belém. Em 1960, recebeu do governador Carlos Lacerda o prêmio de cantora revelação. Dois grandes sucesso de Sonia foram "O barquinho" (Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli) e, principalmente, "Bolinha de sabão" (Orlandivo), que estourou na época.

 

No Rio, a lista de jovens talentos também era grande. Além de Sonia Delfino, foram reveladas no Clube do Guri, Wanderlea, Rosemary, Neide Aparecida, Neuci José da Cruz, Leni Andrade, Elizângela e o radialista Hélio Tys.

 

 

Mas a maior de todas  as revelações foi certamente foi Elis Regina que se apresentou na versão do Sul do mesmo programa.  Ainda chamada de Elizabeth, a menina ganhava todos os prêmios. Nessa recriação, ouvimos a música Mamãe, tal como Elis cantou e registrou para a posteridade:

 


No You tube: ELIS REGINA - FALSO BRILHANTE AO VIVO - CLUBE DO GURI E NO DIA EM QUE EU VIM ME EMBORA

 De 5:00 a 6:40

Segundo o diretor Maurício Sherman, que eu também entrevistei nos anos 90, o programa tinha tudo para dar errado. Mas, segundo ele, “era muito bom porque não trazia calouros, mas jovens talentos”. É bom lembrar que Sherman lançou na TV duas grandes estrelas que começaram muito jovens: Xuxa e Angélica. Acho que ele sabia o que estava falando.

 

 

No próximo programa vamos falar de outros infantis e um especial que existe até hoje na Rádio Nacional: a Rádio Maluca, que era apresentada, dede 2004, por Zé Zuca, que faleceu em maior desse ano. Além da apresentação, ele fazia a direção, produção, roteiro e trilha sonora. Há cerca de um ano, o programa também era transmitido pelas rádios Nacional de Brasília, da Amazônia e do Alto Solimões.

 


 

Rádio Blog – O programa mais famoso do mundo

                                      
 Rose Esquenazi



Você sabe qual foi o programa de rádio mais impactante, o mais falado no mundo? Os estudiosos dizem que foi Guerra dos Mundos, veiculado no dia 30 de outubro de 1938, um domingo, criação do genial Orson Welles. Welles (1915-1985) tinha apenas 23 anos quando passou a dirigir o programa de teatro radiofônico chamado Mercury Teatre on the Air, da emissora americana CBS. Naquela data, ele decidiu adaptar o romance clássico de ficção científica, de 1897, com o mesmo título, do autor inglês H.G. Welles. Muito ligado ao teatro, Welles tentou dar veracidade à história de invasão de marcianos na terra.

Hoje, para comemorar os 100 anos de nascimento de Welles, vamos apresentar uma versão brasileira do famoso programa. Em 1998, uma equipe da Rádio de Pernambuco encenou a Guerra dos Mundos, sob a liderança de Luiz Maranhão Filho. O CD foi encartado no livro Rádio e Pânico. A Guerra dos Mundos, 60 anos depois, organizado por Eduardo Meditsch.  No livro, vários professores analisaram o impacto do programa que mais marcou a mídia no século XX.

Vamos tentar entender porque uma simples atração de rádio levou à população de Nova Jersey  e Nova York ao verdadeiro pânico nos anos 30. Em primeiro lugar, o mundo vivia o prenúncio da Segunda Guerra. Havia medo do ar. O nazismo estava crescendo na Europa e ninguém sabia se os Estados Unidos iriam ou não participar da guerra, o que de fato aconteceu em 1941. Em 1938, já havia no rádio uma divisão entre o noticiário e o entretenimento. Mas o jovem Orson Welles resolveu misturar as duas coisas sem dizer ao público que estava fazendo isso. As técnicas radiofônicas nos Estados Unidos estavam muito mais avançadas do que no Brasil. Traduzindo. Desde o início da atividade, em 1920, três antes do Brasil, os EUA já tinham dinheiro vindo do comércio e indústria. Coisa que só vai acontecer aqui em 1932. Com dinheiro, eles investem, contratam, ousam fazer programas diferentes.

O público que estava ouvindo o programa Mercury Teatre on the Air desde o início sabia que aquele horário era do teatro. Mas as pessoas que sintonizaram o rádio depois e, por acaso, não ouviram a apresentação do locutor, pensaram que as notícias eram reais porque interrompiam o programa musical. Acharam que realmente estava acontecendo uma tragédia. Isso porque o diretor Welles ensaiou com a sua grande equipe todos os detalhes. Os atores interpretaram os papéis de cientistas, prefeito, vítimas e jornalistas com muito realismo. Além disso, a decoração sonora, ou melhor, a sonoplastia, foi estudada minuciosamente para reproduzir sons de sirenes, supostas naves espaciais aterrissando na terra e por aí vai. Em um filme de TV a que assisti, certa vez, apareceu uma técnica da CBS gravando – ah, já existiam gravadores de fita, na época, e não de acetatos como os daqui – gravando bem de perto uma descarga de banheiro. Amplificada ao extremo, o barulho ficou parecendo o mais dramático som jamais ouvido na Terra!

Vamos ao começo do programa com música agradável e descontraída ao último boletim. Um suposto repórter vai ao Observatório, conversar com um cientista sobre o Planeta Marte. Isso até que a notícia de uma explosão chega ao rádio. É tudo muito estranho. O que caiu na fazenda, que círculos de fogo são aqueles?  Vamos ouvir mais um trecho.


A situação de pânico foi tomando conta da população de Nova Jersey. Muitos acreditaram nos depoimentos das autoridades. Pegaram as crianças, as joias e o dinheiro e fugiram sem rumo. Não queriam dar de cara com marcianos. OK, as pessoas eram mais ingênuas naquele tempo. Mas nunca havia acontecido algo semelhante. Logo se formou um grande engarrafamento nas estradas. Pessoas buzinavam alucinadamente, algumas tentaram o suicídio. Não há confirmação de que alguém tenha realmente se matado.

Quando a direção da rádio viu que estava acontecendo essa confusão toda, pediu para Orson Welles parar o programa e anunciar que era tudo mentirinha. Mas o diretor não parou. Ele quis ver o circo pegar fogo. E pegou mesmo. No dia seguinte, ele deu uma entrevista coletiva explicando que foi um erro dele, que não sabia o que estava acontecendo. O que foi uma grande mentira. Welles não era bobo nem nada. Logo depois dessa confusão, ficou tão famoso que a produtora de cinema RKO o convidou para entrar para a indústria. Isso sem Welles ter feito um único filme na vida. Com carta branca do estúdio, ele – o gênio – decidiu filmar Cidadão Kane, filme considerado um dos mais impressionantes realizados até hoje.



Segundo levantamento de Adriana Ruschel Duval, jornalista da PUC do RS, no livro de Eduardo Meditsch, havia 200 aparelhos por mil habitantes. Os carros saíam das fábricas já com rádios. Seis milhões de pessoas ouviram a voz de Orson Welles e dos atores naquele programa de 1938. “A imaginação fez o resto”, escreveu Adriana.

  A figura do locutor sumiu nos primeiros minutos do programa. “Travado no solo sagrado do imaginário, não teria nem um começo nem um fim”, nas palavras da jornalista.  “Permaneceria entre os meridianos da vida e da morte, da realidade e da fantasia.”

No texto da professora Ana Baumworcel, Orson Welles soube usar o silêncio no rádio como ninguém. O silêncio deu lugar à imaginação, ao suspense e ao medo. Ana cita Bruneau quando ele escreveu, em 1973, que “o silêncio é a língua de todas as fortes paixões, como o amor, a surpresa, o medo, a cólera”. Foram apenas seis segundos de silêncio até que a transmissão de Guerra dos Mundos voltasse com o boletim informativo e uma música. Mas que impacto... Esses segundos mudaram a vida do ouvinte daquela época!

No texto do saudoso Luiz Carlos Saroldi, um dos radialistas que mais entendia de rádio no nosso país, Orson Welles sabia que os fatos políticos no fim dos anos 30 levavam a uma situação dramática.  Ele não era um alienado. Segundo Saroldi, Orson Welles disse que “seis minutos depois de entrar no ar, os painéis telefônicos das estações de rádio do país inteiro piscavam como árvores de Natal”. Welles declarou que “vinte minutos depois estávamos com um estúdio repleto de policiais atônitos. Eles não sabiam quem prender nem por que, mas sem dúvida emprestaram um certo tom ao restante da transmissão”. Ainda nas palavras de Welles: “Fomos percebendo, enquanto prosseguíamos com a destruição de Nova Jersey, que o número de lunáticos existente no país tinha sido subestimado”.  

Durante 45 minutos, a população ficou hipnotizada com o que ouvia. O diretor Woody Allen chegou a incluir uma cena em seu filme A Era do Rádio, de 1987.  O rapaz está com uma mocinha e, ao ouvir que os marcianos tinham chegado, sai alucinado do carro e deixa a garota sozinha. Vamos ouvir mais um trecho.

O impacto das transmissões foi tamanho que houve um acordo nas emissoras para que, no futuro, as coisas nunca mais poderiam ser misturadas, Se fosse um programa de ficção, seria preciso lembrar, de tempos em tempos, que a transmissão se tratava de um peça teatral.E que não é possível enganar o público misturando dois tipos de comunicação, falar de jornalismo junto com ficção.  Na Alemanha e nos territórios ocupados, Hitler usou muito essa mistura durante a guerra e levou muita gente a acreditar em fatos não verdadeiros. A confiança e credibilidade se quebraram entre os ouvintes que confiavam tanto na voz do rádio.

Na análise de Sônia Virgínia Moreira, jornalista e professora da UERJ, “ao transmitir um texto de ficção com fortes componentes de realidade, o rádio conseguiu mostrar boa dose da sua capacidade de convencimento e de seu poder de mobilização. Duas características que seriam exploradas nos anos seguintes nos campos de batalha reais da Segunda Guerra Mundial”.  Vamos terminar com mais um trecho de A Guerra dos Mundos, na versão da Rádio de Pernambuco. 

sábado, 17 de outubro de 2015

Dalva de Oliveira: o Rouxinol Brasileiro


Rose Esquenazi




A música Tudo acabado, de J. Piedade e Oswaldo Martins, interpretada por Dalva de Oliveira pode ser ouvida em https://www.youtube.com/watch?v=696uD2GaxBw. A cantora teve seu apogeu artístico durante os anos  30 e 50.  Vicentina de Paula Oliveira nasceu na cidade de Rio Claro, SP, no dia 5 de maio de 1917 e foi uma das maiores cantoras brasileiras. Mas a linda voz não foi usada para cantar sambas ou marchas de Carnaval. Nem para alegrar o público feminino que passou a lotar os auditórios da Rádio Nacional, nos anos 50. No tempo de Marlene e Emilinha, Dalva, que também tinha fã-clube, cantava a tristeza, a desilusão.

No livro Por trás das ondas da Rádio Nacional, de Miriam Goldfeder, a autora explica que no repertório de Dalva não há lugar para o mito da felicidade, para o happy end. As letras podem ser redundantes, mas a aceitação pelo público foi imediata. Depois da guerra, havia no país uma  “situação de insegurança e insatisfação latente nos setores médios e baixos da população, já desiludidos com as perspectivas que a sociedade parecia lhes oferecer”. Isso no entendimento da autora Goldfeder.

Filha de uma portuguesa e de um brasileiro, que era pintor, Vicentina foi muito pobre. Desde cedo aprendeu música, e, como tinha uma bela e potente voz, de contralto ao soprano, estudou canto lírico. Em 1935, conheceu o compositor e cantor Herivelto Martins, com quem iria se casar mais tarde. Ao lado de Francisco Sena, Herivelto formava o dueto Preto e Branco. Com a entrada de Dalva, passaram a se chamar Trio de Ouro.

Foi assim que estrearam na Rádio Mayrink Veiga, no Rio, a convite de César Ladeira. Modernos para a época, Herivelto e Dalva, antes de se casarem, foram morar juntos para horror da classe média conservadora. Finalmente, oficializaram a união em 1937. Foram dois rituais: na igreja católica e no ritual de umbanda, na praia. Tiveram dois filhos, que também seriam cantores: Peri Oliveira Martins, o Pery Ribeiro, e Ubiratan Oliveira Martins. Depois de dez anos, o casamento acabou. Naquele tempo, não era permitido o divórcio no Brasil.

As brigas foram piorando com o tempo. Agressões físicas, temperadas com álcool e muita raiva, só pioravam a situação. Segundo Peri Ribeiro, que lançou o livro Minhas duas estrelas, em 2006, Herivelto não suportou o fato de Dalva conseguir viver sem ele. Mesmo tendo sido do pai a decisão da separação e já estar com uma segunda mulher, costumava dizer que foi ele quem criou a Dalva. Como se a fama fosse de sua autoria e responsabilidade. O que não era verdade, apesar de Herivelto ser um ótimo compositor.

Dalva fazia muito sucesso na Rádio Nacional, mas começou a ser difamada. Ela passou a ter outros namorados, o que pareceu uma atitude escandalosa para uma determinada fatia do público. O problema é que começou na imprensa uma campanha de difamação a pedido de Herivelto Martins. Foram publicadas várias reportagens assinadas pelo jornalista David Nasser no Diário da Noite. As palavras acabaram com a moral de Dalva. Como consequência, o conselho tutelar mandou Pery e Ubiratan para um internato. A alegação era de que a cantora não tinha boa conduta moral para criar os filhos. Dalva entrou em desespero.

Começou nas estações de rádio a apresentação de uma série de músicas que revelavam a tensão entre os dois. As roupas sujas do ex-casal estavam sendo lavadas em público.  Por exemplo, Segredo, de 1947, música de Herivelto Martins e Marino Pinto, falava sobre essa situação constrangedora. Pronto, começava ali a incrível disputa musical entre dois artistas de peso. O pior, o público acompanhava tudo, ora apoiando um, ora apoiando o outro.

Os versos de Segredo  dizem o seguinte:.

O peixe é pro fundo das redes,
Segredo é pra quatro paredes,
Não deixe de que males pequeninos,
Venham transtornar os nossos destinos,
Primeiro é preciso julgar,
Pra depois condenar.

Seu mal é comentar o passado,
Ninguém precisa saber o que houve

Entre nós dois,
O peixe é pro fundo das redes,
Segredo é pra quatro paredes,
Não deixe de que males pequeninos,
Venham transtornar os nossos destinos.


Os filhos ficaram afastados e só podiam visitar os pais em datas festivas e fins de semana. Aos 18 anos, Peri e Ubiratan ganharam o direito de sair do internato. Em 1952, Dalva se consagrou na música mundial, cantou em Paris e Buenos Aires, e ganhou o título de Rainha do Rádio. Outras músicas fizeram parte da polêmica musical radiofônico: Tudo acabado, Que será, Errei sim, Falso amigo, Calúnia, Palhaço. Vamos ouvir Saia do meu caminho.

Dalva conheceu o argentino Tito Climent,  que foi seu amigo, empresário e, finalmente,  seu segundo marido. Dalva se mudou para Buenos Aires, e também não apressou no casamento. Decidiram adotar uma menina, grande sonho de Dalva, que não quis mais ter filhos. Achava que n]ao tinha tempo devido ao sucesso de sua Carrera. O casal adotou uma criança em um orfanato de Buenos Aires.  Ela ganhou o nome de Lúcia Oliveira Climent.
Dalva e Tito acabam se casando. Depois de quatro anos, o casamento acabou e, mais uma vez, Dalva viveu uma turbulência de brigas. Tito Climent queria uma mulher fina e elegante, coisa que Dalva não era. Mulher simples e de fácil relacionamento, a cantora sofreu um choque ao saber que o marido queria tirar a filha de sua convivência.  Entre o Brasil e Argentina, Dalva decide ficar em Buenos Aires para cuidar da filha.  Curiosamente, Tito fez como Herivelto: inventou mentiras sobre Dalva e usou os jornais para fazer intrigas.

Ao retormar a carreira em 1963, Dalva experimentou novo sucesso e mais um amor. Manuel Nuno Carpinteiro, 20 anos mais novo, casou-se com a cantora. Como não podia deixar de ser, muita gente achou a diferença de idade, um verdadeiro absurdo. Mas Dalva assumiu o casamento e passou ao largo das intrigas. Conseguiu ser feliz durante um tempo até que, dois anos Manuel, que estava dirigindo bêbado, teve um acidente que matou quatro pessoas. Foi condenado e preso. Enfrentando a imprensa corajosamente, Dalva costumava visitá-lo na prisão. No Carnaval, costumava interpretar um grande sucesso: Bandeira branca, de Max Nunes e Laércio Alves.

Chamada de Rouxinol Brasileiro, Dalva realizou mais de 400 gravações. Sua voz está registrada também em vários coros de discos de Carmen Miranda, Orlando Silva e Francisco Alves. Na primeira versão do filme Branca de Neve e os Sete Anõe , produzida pelos estúdios Disney, em 1938, Dalva de Oliveira dublou os diálogos da personagem Branca de Neve. 

Dalva morreu no Rio de Janeiro, no dia 30 de agosto de 1972, aos 55 anos. Mais de 2 mil pessoas foram se despedir dela no Teatro João Caetano. No ano de 2010, a Rede Globo reviveu essa história na minissérie Dalva e Herivelto, uma canção de amor, de Maria Adelaide Amaral. No elenco, estavam Adriana Esteves e Fábio Assunção. Vamos ouvir mais uma canção que fez muito sucesso no repertório de Carmem, Folha morta, de Ary Barroso. Os versos dizem assim:

Sei que falam de mim
Sei que zombam de mim
Oh, Deus
Como sou infeliz

Vivo à margem da vida
Sem amparo ou guarida
Oh, Deus
Como sou infeliz

Já tive amores
Tive carinhos
Já tive sonhos
Os dissabores

Levaram minh'alma
Por caminhos tristonhos
Hoje sou folha morta
Que a corrente transporta
Oh, Deus
Como sou infeliz, Infeliz


Eu queria um minuto apenas
Pra matar minhas penas
Oh, Deus
Como sou infeliz

Agora, a interpretação de Dalva.

https://www.youtube.com/watch?v=16EDVXcqzZ0

Vicente Celestino: O Cantor Orgulho do Brasil”

Rose Esquenazi





Antônio Vicente Filipe Celestino nasceu no dia 12/9/1894. Foi um dos mais importantes cantores brasileiros do século XX. Pertenceu à Época de Ouro da música brasileira, ao lado de outros grandes cantores como Mário Reis e Francisco Alves, por exemplo. Vicente tinha uma voz tão potente, que tinha que cantar e gravar de costas a cinco metros do microfone. De outra maneira, o cristal que servia para reproduzir o som se partiria.  Nessa etapa mecânica, ele gravou 28 discos com 52 músicas. Com a gravação elétrica, não precisava mais cantar de costas. O novo sistema melhorou muito a qualidade do som. Ao todo, gravou 137 discos em 78 rpm, ao todo 274 músicas, 10 compactos e 31 elepês.

Consegui com meu amigo Luiz Antonio de Almeida, grande expert em Ernesto Nazareth e que trabalha no MIS, um áudio sensacional. Trata-se de um programa da Rádio Nacional, de 5 de fevereiro de 1949. Foi oferecido pela neta de Vicente Celestino, Daise Celestino. Chama-se Caricaturas Figacol, um remédio para o fígado daquela época. Escrito por Fernando Lobo, com a orquestra de Lírio Panicalli e narração de Roberto Faissol, o programa dramatizou a vida do grande cantor. 

Mas vamos começar com a infância. Vicente nasceu em Santa Teresa, na Rua do Paraíso, 11.  Teve 11 irmãos, sendo que cinco dedicaram-se ao canto e um ao teatro (Amadeu Celestino).  Os pais italianos vieram da Calábria, ainda muito jovens. Por ser mais velho, Vicente teve que arcar com o sustento dos irmãos quando o pai, que era guarda-livros, morreu.

Vicente gostava do teatro e fez parte do grupo Pastorinhas da Ladeira do Viana, entrou para o coral infantil da ópera Carmen, de Bizet, no Teatro Lírico.  Para ganhar dinheiro, teve que trabalhar em uma loja que vendia chapéus de palha na Rua Sete de Setembro. Depois, foi aprendiz de sapateiro e servente de pedreiro.

A iniciação musical se deu em 1913, como amador. Cantando em um chope-berrante, à noite, ganhava apenas um pro labore simbólico. Se o público gostasse, podia alcançar mais um pequeno degrau rumo à fama. Às vezes, cantava em italiano, idioma dos pais. Certo dia, em 1914, ao sair com os amigos, já adulto, cantou em um bar e foi convidado por um empresário se apresentar profissionalmente.  Primeiro, no Teatro São José, em São Paulo, depois, na Cia Paschoal Segreto, como corista, também em São Paulo. Começou a gravar na Casa Édison, no Rio.

Vicente participou de várias companhias de teatro, óperas e burletas, e passou a estudar canto lírico.  Faz temporadas pelo país e logo conquistou muito sucesso. Gravou, em1926, Linda Flor e Luar de Paquetá.  Conheceu  a cantora Gilda de Abreu e se casou com ela em 1933. Gilda era muito talentosa. Além de cantora lírica e de operetas, era atriz de teatro e cinema, roteirista, autora de livros, de roteiros de cinema e peças de teatro, de rádio novelas,  além de ter dirigido vários filmes. Segundo os fãs, jamais o Brasil conseguiu juntar no mundo artístico, um casal tão versátil como este. Isso porque Vicente também compunha e se tornou ator de teatro e cinema.


Em 1935, VC cantou O Ébrio pela primeira vez na Rádio Guanabara. A Rádio Guanabara ficava na Rua Primeiro de Março e foi fundada em 1932. Muitos profissionais começaram ali, como Elizete Cardoso, Chico Anysio, Fernanda Montenegro.  A música fez tanto sucesso que foi gravada em 1936, pela RCA Victor. Em 1942, estreou como peça teatral . Mais sucesso. Até que, em 1946, um dos discos mais vendidos naquele ano, virou filme com direção de Gilda de Abreu. Vamos ouvir trecho do maior sucesso do cantor: O Ébrio.  Primeiro, há um preâmbulo e depois, ele começa a cantar.

Tornou-se uma das maiores bilheterias brasileira de todos os tempos. Teve nada menos do que mil cópias, algo raro e surpreendente. Vicente fazia o papel do bêbado, homem triste, traído pela mulher. Foi  abandonado pela família e amigos. Desesperado, o personagem tentou uma chance em um programa de calouros do rádio, que imitava Calouros em desfile, de Ary Barroso, famoso no rádio brasileiro. E o bêbado começa a ganhar notoriedade e algum dinheiro para terminar seu curso de medicina.


Ao cantar Mia Gioconda, Vicente contava a história de um pracinha que foi lutar na Itália e lá se apaixonou por uma mulher, que ele apelidou de minha Gioconda. A letra mistura ufanismo, FEB, paixão e tristeza. No fim da guerra, não deixaram o soldado trazer a mulher ao Brasil. A italiana ficou no cais cantando para o brasileiro.  Algumas frases dessa música são ditas em italiano, língua dos pais de Vicente.  “Tu sarai mia Gioconda”, e ela respondia. “Brasiliano, minha vida hoje é você”. 


Chorar a traição da mulher, sofrer por amor, beber até cair, todo esse dramalhão que fez tanto sucesso acabou cansando o público que mudava de gosto. Vicente passou a se sentir discriminado. A voz era ótima, mas o cantor era rejeitado no Teatro Municipal. O cantor Orlando Silva chamou-o de “bebê chorão do rádio”.

Em 1964, a 12 de setembro, a Rádio Nacional comemorou os 70 anos de Vicente Celestino em um programa de auditório. Curiosamente, viveu o personagem de O Ébrio na telenovela da TV Excelsior de São Paulo. Reconhecido ele foi pelo júri do Festival Internacional da Canção que lhe concedeu o diploma de A Expressão Máxima da Canção, pela TV Globo. Essas informações estão no livro O hóspede das tempestades, de Guido Guerra (Record).

O meu amigo Luiz Antonio de Almeida, biógrafo de Vicente Celestino, contou que ficou impressionado com a reação do cantor Gilberto Gil, ao gravar seu depoimento no MIS. O cantor baiano lembrou-se de que ele e Caetano Veloso tinham um programa na TV Record, que fazia homenagem aos antigos artistas, nos anos 60. O primeiro convidado foi Vicente Celestino. Para a neta de Vicente, Gil contou: “Celestino nos deu uma tremenda bronca... Nós estávamos ensaiando a cena da Santa Ceia (uma versão “tropicalista” que seria levada no programa) e o Vicente, com o dedo em riste, praticamente gritando, disse: ‘Eu posso entender um Cristo negro (personagem do Gil), mas a sagrada hóstia substituída por uma banana, ah..., isso eu não aceitarei jamais!’”

         Segundo Luiz, que também é biógrafo de Vicente Celestino, “ele não cantava em público há meses... Estava doente. Um câncer já começava a espalhar pelo corpo, da próstata aos pulmões... Perdera vinte quilos... Sua esposa, Gilda de Abreu, o incentivara a viajar... Achava que lhe faria bem... Vicente interpretou uma de suas, então, mais recentes canções: "Obrigado, meu Brasil", e durante o ensaio ficara emocionadíssimo por ter alcançado notas que há muito sua voz já não chegava. Na mesma noite de 23 de agosto de 1968, no Hotel Normandie,  aguardando a hora do programa, Vicente morria. Estava vestido com seu smoking, tinha 74 anos e sofreu um infarto fulminante.
  

É do mesmo filme a música Porta Aberta, em que, mais uma vez, a religiosidade aparece fortemente. A porta aberta era o acolhimento que recebeu da religião católica, depois de tantas portas fechadas.  No YouTube, pode-se ouvir um padre falando com o personagem achando que ele está cantando em casa, mas está, na verdade, em um programa de rádio.