domingo, 24 de dezembro de 2017

Severino Araújo: pai da Orquestra Tabajara


Rose Esquenazi



            A música instrumental brasileira tem grandes qualidades e ganhou muito espaço nas rádios, a partir dos anos 30. Conhecida Época de Ouro, além de incluir cantores e compositores, apresentaram instrumentistas de primeira. Um deles, podemos citar aqui, é o clarinetista e maestro Severino Araújo. Nascido em Limoeiro, Pernambuco, em 23 de abril de 1917, Severino Araújo de Oliveira começou a conhecer músicaa partir das aulas do pai, o Mestre Cazuzinha, mestre da Banda Militar. Ele tinha seis anos quando foi apresentado ao clarinete. Dois anos depois, aos oito, já sabia de cor as técnicas do solfejo. Passou a tomar as lições dos alunos do Mestre Cazuzinha e, com eles – que eram bem mais velhos - passou a aprender outras técnicas e ritmos.
           Aos 12 anos, Severino compôs o primeiro arranjo para a Banda Municipal de Chã de Rocha, que ficava no interior da Paraíba. Daí, foi um pulo para as criações carnavalescas. Severino passou, em 1936, para a Banda da Polícia Militar da Paraíba, como primeiro clarinetista. Sentia-se um profissional de verdade: compôs o choro "Espinha de Bacalhau", que ouvimos no início do quadro. Esse choro se tornou a mais famosa obra de Severino Araújo e uma das mais tocadas no Brasil e no exterior.
           Como era corriqueiro naquele tempo, os jovens do interior tinham que ir para uma capital se quisessem fazer sucesso. Severino decidiu por João Pessoa e logo convidado para fazer parte da Orquestra Tabajara. O lugar tinha destaque: seria o primeiro clarinetista. Ele era tão bom músico que se tornou regente em 1938. Aos 21 anos, depois da morte do maestro Olegário de Luna Freire, assumiu o comando.

         No dia 6 de agosto de 1944, Severino aceitou o convite de Assis Chateaubriand, que também era paraibano, para vir para o Rio de Janeiro. E adivinhe onde ele foi trabalhar? Na Rádio Tupi!   O contrato foi assinado no dia 20 de janeiro de 1945. Imediatamente a Orquestra Tabajara ganhava repercussão no país, já que a atração era transmitida para toda cadeia "associada", composta de várias emissoras de rádio. Eles tocavam jazz, música brasileira, standards, de tudo um pouco. Ouça, no YouTube, Gafanhoto Manco, escrita em 1937 por Severino Araújo. 

         O rádio precisava de orquestras e as orquestras precisavam do rádio. Atualmente, não existe nenhuma emissora com uma orquestra contratada. Mas no auge da Rádio Nacional, havia três orquestras completas, diversos maestros, sem falar nos conjuntos regionais. Desafio os ouvintes nessa afirmação: será que os ouvidos dos brasileiroseram mais exigentes no passado? Acho que sim, porque ouvíamos todos os tipos de música, do samba ao chorinho, do clássico aos sucessos carnavalescos e atrações internacionais, de todas as partes do mundo.

          Durante 10 anos, a Orquestra Tabajara se apresentou na Rádio Tupi, tendo à frente o maestro Severino Araújo. Ao contrário de muitas orquestras, essa era formada apenas com instrumentos de sopro. Como disse, o próprio Severino era um excelente clarinetista.  Havia uma outra orquestra com a qual a Tabajara rivalizava: a Pan American, de Simon Bountman, que chegou a gravar 180 discos. Na Boate Drink, Severino se apresentava com os músicos que ganharam o nome de Românticos de Cuba. Foram gravados pelo selo Drink.
       
         Depois da Rádio Tupi, Severino e a sua orquestra passaram cinco anos na Rádio Mayrink Veiga e outros dez anos na Rádio Nacional. Como era de se esperar, do rádio à televisão, todos os músicos, atores, diretores faziam o mesmo percurso. Assim, ele foi contratado pela TV Tupi do Rio e fez parte do programa inaugural no dia 20 de janeiro de 1951. Como havia prometido Assis Chateaubriand, quatro meses depois da estreia da TV Difusora de São Paulo, a primeira da América Latina, nascia a afiliada carioca.
         A imprensa ainda chamava a TV de “a maravilha da tecnologia”. Cheguei a ver o contrato profissional de Severino na Tupi. Ele ganhava 2.300 mil-réis, enquanto Ary Barroso, a grande estrela, recebia 5 mil réis.  Depois da inauguração, a Orquestra Tabajara ficava com o horário nobre: domingo, às 20h45. Ia ao ar ao vivo porque não havia videotape. Curiosamente, a atração vinha depois do programete Aprenda a sintonizar. O engenheiro Luis Malheiros ensinava ao público como deveria ajustar o som e a imagem daquele estranho aparelho, o televisor, que ficou no lugar do rádio, na sala.

         Severino foi considerado um pioneiro ao unir elementos do jazz e do choro na música brasileira. Ele também era um mestre dos arranjos para Big Band. Depois da Época de Ouro, Severino continuou a trabalhar na fase chamada de “transição”, de 1946 a 1957, antes da Bossa Nova. Os músicos viviam viajando pelo país e para o exterior também. Os franceses e os portugueses dançaram ao som dos arranjos dos sopros de Severino Araújo e sua orquestra.
        Depois da Tupi, a Orquestra Tabajara se transferiu para a TV Rio. Os arranjos de Severino foram elogiadíssimos na abertura do 1º Festival Internacional da Canção.
A música escolhida não era nada fácil: Guarani, de Carlos Gomes. Em 1953, o jornal O Globo fez uma enquete para saber quais foram os melhores discos gravados naquele ano e o público escolheu a Tabajara como a mais destacada orquestra popular. Ouça a música Pensando em você, de 1953, mais uma obra assinada pelo maestro.

        Em 1945, o empresário Eduardo Tapajós, dono do Hotel Glória, que atualmente está em ruínas à espera de um empresário para colocá-lo funcionando novamente, inventou uma atração à beira da piscina. Segundo Rui Castro no livro A noite do meu bem, a festa tinha o nome de aqua-society. Ali, os melhores músicos tocavam na atração Jazz aftermidnight, ou Jazz depois da meia-noite. Para os íntimos, apenas jam. Ao lado do maestro Cipó, Dick Farney, Johnny Alf, apresentava-se Severino Araújo tocando clarinete.
        Severino Araújo e a Orquestra Tabajara animaram muitos bailes: foram 10 anos na Domingueira Voadora, no Circo Voador, e 20 anos na festa anual chamada “Parece que Foi Hontem”, escrito com H. Organizada pela cooperativa dos jornalistas do Rio de Janeiro, era nostalgia pura.  Os homens usavam trajes antigos, fraques e cartolas, e as mulheres vestidos longos e luvas. Era muito engraçado esse evento feito para dançar. Todos se sentiam nos anos 40!
       Felizmente, Severino foi reconhecido em vida. Entre 1983 e 1985, recebeu os títulos de "Cidadão Carioca" e "Cidadão Paraibano", pela contribuição dada através da música aos estados do Rio de Janeiro e Paraíba.  Em 1988, registrou-se um fato muito raro no mundo: ele regeu uma orquestra por cinquenta anos ininterruptos. Foram mais de 14 mil apresentações, tendo sempre na liderança desse pernambucano que acabou superando a sua própria marca. Em 2012, pôde festejar 70 anos de Orquestra Tabajara. Ao morrer, deixou o lugar para o irmão Jayme Araújosaxofonista e flautista, que ainda comanda apresentações nas cidades brasileiras.

          Em 2014, a Lei 3194 declarou a Orquestra Tabajara como Patrimônio Imaterial do Rio de Janeiro. Severino foi fiel a sua gravadora, Continental, durante 35 anos. Lá, ele gravou 300 discos. Já na gravadora CID, a Orquestra conseguiu grande sucesso com Anos dourados, que também foi famoso seriado da TV Globo. Segundo os críticos, “Severino trouxe a modernidade para a nossa música. Seu arranjo, mais agressivo, mudou a sonoridade arredondada que dominou o final dos anos 40”. Severino morreu em 3 de agosto de 2012, aos 95 anos, até o fim da vida regeu a Orquestra Tabajara. Ouça, no YouTube, o chorinho Paraquedista. Vale a pena!

o final dos anos 40.

Alberto Ribeiro, um compositor genial


Rose Esquenazi





         Alberto Ribeiro, compositor de mão de cheia, foi fiel parceiro de João de Barro, o Braguinha, que todo mundo sabe quem é. Alberto conheceu João de Barro em 1935, através do editor Mangione e juntos criaram uma grande amizade e sintonia musical.  A música Yes, nós temos banana, que acabamos de ouvir é dessa dupla criativa e afinada que compôs grandes sucessos na MPB. Ao morrer em 10 de novembro de 1971, aos 69 anos, Alberto deixou para nós nada menos do que 400 composições.

          Vou começar contando como nasceu a marchinha de carnaval Yes, nós temos banana. Em 1923, nos Estados Unidos, os compositores Frank Silver e Irving Cohn morreram de rir ao ouvir um grego, dono de uma quitanda, dizer para um freguês:  “Yes, we have no bananas”. Ou seja, “Sim, não temos bananas”. Criaram a musica Yes, we have no bananas que estourou por lá. Segundo o pesquisador Jairo Severiano, que contou essa história no livro A canção no tempo, volume 1, 15 anos depois, Braguinha e Alberto Ribeiro lançaram a versão nacional da música, um pouco para criticar a postura dos americanos que costumavam chamar o Brasil de República das Bananas. A voz que interpreta esse grande sucesso já foi de Almirante e tantos outros cantores, mas ouvimos aqui a versão de Ney Matogrosso. Aliás, temos que tirar o chapéu para Ney que comemora 40 anos de carreira artística.

           Vamos começar pelo início. Alberto Ribeiro da Vinha nasceu no bairro da Cidade Nova, no Rio de Janeiro, em 27 de agosto de 1902. O carioca começou a compor músicas para o bloco carnavalesco Só de Tanga. A primeira criação de que se tem notícias é Água de coco, com Antônio Vertulo, em 1923. Ou seja, tinha apenas 21 anos. Depois, foi morar no bairro do Estácio e lá conheceu um grande compositor, o Bide, Alcebíades Barcelos, e passou a compor com ele. Chegou a gravar dois discos em 1930 com o Grupo dos Enfezados, do qual fez parte.

         Como muitos jovens ainda hoje, Alberto ficou na dúvida que carreira seguir. Tentou engenharia, passou para a medicina, formando-se em 1931. Escolheu a homeopatia como especialização. O consultório ficava na Rua Senador Dantas, 20, e ele não costumava cobrar muito alto. Sabia que nem sempre o povo podia pagar.

          Apesar de seguir a carreira médica e, muitas vezes, tratar das pessoas gratuitamente, era na música que ele dedicava a sua criatividade.  Vamos ouvir alguns sucessos que ele criou sozinho, como Casar não é comigo, com a cantora Zezé Fonseca, gravada em 1933. Prestem atenção na letra que diz “casar não é pra mim”, apesar de o compositor ter se casado em 1926. Ouça a marcha no Youtube.

         O encontro com João de Barros foi decisivo. Os anos 30, considerados a Época de Ouro da Música Popular Brasileira, foi também o tempo de crescimento das emissoras de rádio, principalmente no Rio de Janeiro. Estavam em pleno vapor a Rádio Philips, a Mayrink Veiga, a Rádio Clube do Brasil, a Rádio Educadora, só para citar as principais. A Nacional só iria se tornar verdadeiramente popular a partir de 1940. O rádio atraía todas as atenções e, pensando nisso, o americano Wallace Downey chegou ao Brasil querendo investir em filmes musicais. Já que não havia televisão ainda, o cinema seria a maneira de ver os ídolos dos rádios na tela grande.

          Perspicaz, Wallace convidou dois grandes compositores, João de Barro e Alberto Ribeiro para argumentistas e também responsáveis pela trilha sonora, dos filmes Alô, alô, Brasil!, Estudantes, os dois de 1935, e Alô, alô carnaval!, de 1936. Foram grandes sucessos, mas, infelizmente, sobrou pouco dessas três produções geradas na Cinédia de Ademar Gonzaga que tentava industrializar o nosso cinema. É possível assistir a alguns trechos no YouTube.
Divertido e crítico, o médico Alberto Ribeiro, sozinho, decidiu puxar a orelha dos poetas e compositores que viviam falando da lua no momento em que escreviam versos apaixonados. Assim, criou Deixa a lua sossegada, que vamos ouvir na voz de Almirante. Na letra, ele diz:
 “Se não houvesse lua eu asseguro// O mundo no escuro// Seria muito bom// Um beijo começava em Realengo// Esquentava no Flamengo// E acabava no Leblon//,

          Alberto Ribeiro se referia ao namoro recatado que começava no subúrbio, em Realengo, passava para o Flamengo, na Zona Sul, e, já mais quente, acabava no Leblon, onde existia o único motel da cidade. Interessante, não é? Como já disse, João de Barro e Alberto Ribeiro combinavam muito bem no momento de compor. Em 1936, para mostrar a presença marcante do rádio em todas as casas, os dois compositores e mais Lamartine Babo lançaram Os cantores do rádio, interpretada  pelas irmãs Aurora e Carmem Miranda no filme Alô, alô, Carnaval.

          Em 1938, eles se inscreveram em um concurso da Prefeitura com a música Touradas em Madri. A marcha ganhou em primeiro lugar, na frente de Pastorinhas, Sereia e Camisa Listrada. Só que os organizadores do concurso implicaram com Touradas em Madri, alegando que era em ritmo estrangeiro chamado paso doble, e desclassificaram a música. Venceu, então, o segundo lugar Pastorinhas, que também era de Braguinha e de Noel Rosa, que já havia morrido. A história dessa música também é curiosa. Escrita em meia hora, em um bar da cidade, chamava-se Linda morena, que não fez sucesso. Braguinha trocou a palavra moreninhas por pastorinhas e inscreveu também no concurso. Até hoje as duas músicas fazem grande sucesso no Carnaval. Ouça Touradas em Madri, com Almirante, gravada em 1938.

          Gosto muito da marcha As brabuletas, interpretada pelo próprio Alberto Ribeiro e gravada em 1933. Mas existem pequenas obras-primas do compositor como a clássica das festas juninas, Noites de Junho. Tem uma linda interpretação de Emilinha Borba, de 1958. A música Sonho de papel, também com João de Barro, fazia parte dessa lista de canções do meio do ano. Podemos citar muitos outros sucessos, como Pirulito, Onde o céu é mais azul, considerada samba de exaltação, de um tempo em que os compositores decidiram puxar a sardinha para o governo brasileiro. 

          Alberto Ribeiro e Braguinha lançaram em 1946, Copacabana, interpretada com brilhantismo pelo cantor Dick Farney. A música estourou no mundo todo e foi considerada a precursora da Bossa Nova. O trabalho talentoso e tão brasileiro de Alberto Ribeiro, sozinho ou ao lado de Braguinha, faz muita falta no cenário brasileiro. 

Dona Ivone Lara: a Rainha do Samba *

A grande artista morreu aos 97 anos, no dia 16/4/2018
        Rose Esquenazi


           A doce voz de Dona Ivone Lara combina muito bem com a excelente compositora e instrumentista que ela é. Ainda hoje, aos 96 anos, Dona Ivone adora ouvir música e cantar. Não faz mais shows porque, segundo sua secretária e anjo da guarda, Miriam Souza, que trabalha com ela há 23 anos, a sambista teme esquecer as letras. Avessa às entrevistas, mandou as respostas para as nossas perguntas por email. Olha que legal!
         Ela disse que já participou de vários programas de rádio, mas não se lembra dos nomes. Citou a MEC, a Globo,  a Tupi e a Nacional, “entre muitas outras”.
           Dona Ivone diz que sempre admirou o trabalho dos cantores e cantoras de rádio de antigamente, “todos eram fenomenais”, contou. Quase sem rugas, com cabelo em parte branco, em parte negro, a sambista ainda é reverenciada pelos seus admiradores. Um curta metragem será lançado em 2018 e uma coletânea de sua obra, com CDs, partitura e livro, está à venda: é o Sambabook Music quekia. Atualmente, Dona Ivone mora com o filho Alfredo Lara, no bairro de Oswaldo Cruz. Um de seus maiores orgulhos é ver o neto, André Lara, dar continuidade a sua trajetória musical.
           Desde os sete anos, Dona Ivone Lara tocava violão de sete cordas. Filha da costureira Emerentina Bento da Silva e do carregador de caminhão José da Silva Lara, ela nasceu no dia 13 de abril de 1921, no bairro de Botafogo. Yvonne da Silva Lara – seu nome completo - perdeu o pai aos 3 anos e a mãe aos 12.  Assim, foi criada pelos tios que a levavam a frequentar ranchos carnavalescos que ficaram famosos no Rio, como a Flor do Abacate e o Ameno Resedá. Foram esses parentes que a ensinaram a tocar cavaquinho e a ter o costume de ouvir o samba ao lado do primo Mestre Fuleiro.
          Dona Ivone teve muita sorte:  aprendeu canto com Lucília Villa-Lobos, nada menos do que mulher do maestro Villa-Lobos. Lucília chegou e elogiar a sua aluna para a família.
         Muito ligada às tradições africanas, Dona Ivone Lara costumava desfilar no Bloco dos Africanos. Daí à identificação com o jongo e com o partido alto, onde reinava outra mulher excepcional, Clementina de Jesus. Aliás, é bom lembrar que Dona Ivone compôs um lindo samba para homenagear a Clementina, chamada de Rainha Quelé.  Ouça a música no YouTube.  
         Dona Ivone foi responsável pela renovação do samba, ao lado de Anescarzinho do Salgueiro, Nelson Sargento, Candeia, Martinho da Vila. Mas ela não quis viver só da música.  Formou-se em enfermagem e chegou a se aposentar nessa profissão, em 1977.
Na trajetória na área da saúde, especializou-se em Terapia Ocupacional e foi assistente social em hospitais psiquiátricos. No Engenho de Dentro, ela trabalhou com a excepcional médica Nise da Silveira que revolucionou o tratamento psiquiátrico no Brasil.
          Conhecida como Rainha do Samba e também Matriarca do Samba, as composições de Dona Ivone ainda são muito tocadas pelas novas gerações. Integrante do Império Serrano, ela foi a primeira mulher a compor um samba-enredo e a fazer parte da ala dos compositores da agremiação. Quem faz essa afirmação é o pesquisador Jairo Severiano, no livro Uma história da música popular brasileira.
           O fato é que Dona Ivone se impôs em um ambiente machista dos carnavalescos. Nas palavras dela na entrevista que nos concedeu: “Se não tivesse talento, nem ousaria entrar nesse meio. Mas tive coragem e a ajuda de meus primos que faziam parte da ala de compositores do Império Serrano”.
           A sambista teve dois filhos, Alfredo e Odir, frutos de seu casamento, aos 25 anos, com Oscar Costa. Oscar era ilustrador e consertava instrumentos musicais. Filho de Alfredo Costa, presidente da Escola de Samba Prazer da Serrinha.  Oscar não gostava de samba, mas deixava em paz a carreira da mulher.  Na escola, Dona Ivone conheceu os compositores que seriam seus futuros parceiros, como Mano Décio da Viola e Silas de Oliveira. Não havia como não reconhecer o talento dela. São de sua autoria sambas como Não me perguntes, Os cinco bailes da história do Rio, título do samba-enredo da Império de 1965.

         Ouça no YouTube a música Acreditar, que Dona Ivone Lara compôs com Délcio Carvalho. É ela também quem interpreta o samba.

          Em 1975, o filho de dona Ivone Lara, Odir, sofreu um grave acidente de carro. O  marido Oscar Costa morreu logo depois. Desde que se aposentou da área de enfermagem, em 1977, passou a se dedicar à vida de sambista. Chegou a trabalhar no cinema, no filme A força de Xangô,  de Iberê Cavalcanti, de 1978. Na TV, participou como Tia Nastácia em alguns especiais do programa Sítio do Pica-Pau Amarelo.
          Dona Ivone compôs Nasci para sonhar e cantar, que se tornou o hino da escola Império Serrano, fundada em 1947, e onde passou a desfilar na ala das baianas. A letra é linda e a interpretação também. Ouçam os versos:
          O que trago dentro de mim/ preciso revelar / E o Sol do mundo de tristeza que a vida me dá / Me exponho a tanta emoção / Nasci pra sonhar e cantar / Na busca incessante do amor / Que desejo encontrar...
Tanta gente por aí / Que não terá / A metade do prazer que sei gastar / Do amor sou madrugada / Que padece não esquece /  E que há sempre um amanhã / Para o seu pranto secar.
          Dona Ivone Lara, ainda bem, vem sendo reconhecida em vida. Em 2008, ela interpretou a canção Mas Quem Disse Que Eu Te Esqueço,  no projeto Samba Social Clube. Foi uma das melhores performances de todo o projeto. Em 2012, finalmente, ela se tornou enredo da Império Serrano, no Grupo de Acesso. A homenagem tinha o seguinte título: "Dona Ivone Lara: O enredo do meu samba". Há dois anos, em 2015, entrou para a lista das “10 Grandes Mulheres que Marcaram a História do Rio”. Suas músicas já foram gravadas por Clara Nunes, Maria Bethânia, Caetano Velloso, Gilberto Gil, Paulinho da Viola, Marisa Monte e muitos outros intérpretes.
           Ainda hoje as suas músicas são lembradas nas rodas de samba de todo o país. O neto André Lara segue a tradição de compositor herdada da avó sendo que  gravou com ela e Diogo Nogueira. Na entrevista, Dona Ivone nos disse que se sente honrada, feliz e gratificada de ver o neto continuando o que ela plantou.

           “Vejo que ele se dedica, estuda, está fazendo shows pelo Brasil e está esperando convites para fazer seu primeiro disco”.  Não é fofo, Marcus Aurélio? Gravadoras, façam os seus convites para o neto de Dona Ivone!

          Na 21ª edição do Prêmio da Música Brasileira, a sambista foi a principal homenageada. Dois anos depois, teve outro reconhecimento na 19ª edição do Trem do Samba.  Mesmo aos 96 anos, Dona Ivone Lara não se esquece dos nomes dos compositores de que mais gosta: “Paulinho da Viola, Délcio Carvalho, Gilberto Gil e Caetano Veloso”.  
“Eu vim de lá, eu vim de lá pequenininho / Mas eu vim de lá pequenininho / Alguém me avisou / Pra pisar nesse chão devagarinho / Alguém me avisou / Pra pisar nesse chão devagarinho / Sempre fui obediente / Mas não pude resistir / Foi numa roda de samba / Que eu juntei-me aos bambas / Pra me distrair / Quando eu voltar à Bahia / Terei muito que contar...



Ema e Walter D’Avila: os irmãos do riso


Rose Esquenazi




         Os irmãos Ema e Walter D’Avila foram dois comediantes geniais do rádio brasileiro. Nascidos em Porto Alegre, Ema, no começo da carreira, queria ser atriz. Chegou ao Rio de Janeiro, a convite do diretor de teatro Jardel Jercolis,  nos anos 30. Ela trabalhou nas companhias de teatro de revista e chegou a contracenar com atores importantes, como Alda Garrido. Depois, passou a frequentar o rádio onde a sua veia cômica apareceu fortemente.

        Nascida em 10 de abril de 1916, Ema era cinco anos mais nova do que o irmão Walter D’Avila, que nasceu em 19 de abril de 1911. Infelizmente, o acervo sonoro dos atores se perdeu, mas, para quem tem mais de 60 anos, é impossível esquecer as expressões de Ema e de Walter. Ele interpretava o personagem Baltazar da Rocha, na Escolinha do Professor Raimundo. Ema fez vários papéis nos humorísticos.
           Walter estreou na Rádio Sociedade Gaúcha, em 1952. Mas logo estava no Rio de Janeiro onde surgiam as melhores ofertas profissionais. Depois de passar pela Rádio Mayrink Veiga, Walter estreou na TV Rio, em 1956, no programa Praça da Alegria. Ele fazia o papel de O Sabichão, um ignorante total que lia os livros dando uma entonação totalmente diferente e, dessa maneira, deturpava o conteúdo. Ele contracenava com Manuel da Nóbrega, que fazia um senhor idoso e barrigudinho, que era o conversador na praça. Muitas vezes, Walter dizia que estava adorando o livro. Na TV,  o público via que o volume estava de cabeça para baixo. E quando Manuel perguntava como era o livro, o Sabichão, com cara de inteligente, dizia: “É de papel mesmo”. Ficaram na lembrança também o personagem Seu Obturado, um sujeito que só entendia a piada muito tempo depois de ser contada. Do nada, começava a rir sem parar. Era interessante e divertido.
           As expressões faciais de Walter D’Avila eram muito curiosas porque ele parecia seríssimo. Ao mesmo tempo, era do tipo bonachão com voz forte. Podia ser confundido com algum parente da gente que ficou perdido no interior. De repente, essa pessoa aparece na cidade grande só pra gente passar vergonha. Vamos ouvir Walter contracenando com Chico Anysio, o professor Raimundo. Chico Anysio começou a trabalhar em 1947, na Rádio Guanabara. Bem que ele merece um quadro no Rádio faz história só para ele.  Chico e os irmãos D’Avila se encontraram nessa mesma estação. Nos programas de auditório, o público morria de rir. Em casa, também a família gargalhava em torno do único rádio, que ficava na sala.

         Para ilustrar, vamos apelar para o som da TV. Walter contracenava com Chico Anysio que, na TV Globo, salvou a vida de muitos humoristas antigos. Ele contratava todo o mundo para a Escolinha para que eles pudessem, ao menos, ter um plano de saúde. Era tão explícita essa admiração aos irmãos D’Avila que Chico chegou a montar um programa da concorrente, A Praça da Alegria, para receber os talentos do rádio.  Seu Baltazar confunde tudo, troca tudo, é um sem noção total. Ingênuo, mas divertido. No quadro, o avô é interpretado por Renato Aragão. O programa especial foi ao ar em 1990.
         Ema D’Avila era magrinha e tinha uma cara ótima, engraçada. Apesar de não ser uma mulher bonita, tinha seu charme. O rádio também prometia, assim, ela foi deixando o teatro passando a se dedicar à Rádio Mayrink Veiga e depois à  Nacional. Identificada com timing de humor, Ema participou de alguns filmes, como o Meia canha, de 1960, realizado pela Atlântida, que ouvimos no começo do quadro. Na boate com a filha, ela é convidada para dançar com um sujeito esquisito, e, de repente, começa a cantar com uma voz muito estranha.
        No site Memória Globo, sabemos que o programa Professor Raimundo, na Mayrink começou em 1952. Ema estava lá, mas logo aceitou o convite da TV Rio. Chico Anysio fazia a escada para comediante no programa Aí vem dona Isaura, em 1957. Mais tarde, na TV Globo, convidou Ema para a atração Estados Anysios de Chico City, de 1991. Além disso, ela participou também de do humorístico Humor Livre e de algumas novelas, como Marron Glacé, os Garçons, como Dona Bea,  em 1979. Antes de estrear como Dona Biloca, em A Gata Comeu, a atriz sofreu um derrame cerebral e, no dia 16 de março de 1985, morreu, deixando dois filhos. Dona Biloca acabou sendo interpretada pela atriz Norma Geraldy. Vamos ouvir a música Transviados, de João Roberto Kelly, com Ema D’Ávila e Waldir Maia. O programa se chamava Times Square, da TV Excelsior, que foi ao ar em 1960.

         O humor da TV nasceu no rádio, principalmente na Mayrink Veiga, Tupi e Nacional. Os candidatos que queriam entrar para o mundo radiofônico e ganhar um dinheirinho passavam, primeiramente, pelos programas de calouros. Podiam tentar uma vaga de imitadores, contadores de piadas, atores ou autores histriônicos. Era o começo de uma vida profissional que podia ou não dar certo. Às vezes, um amigo ou conhecido da família indicava um jovem talento. Para evitar canastrões, tão comuns no início do rádio no Brasil, nos anos 20, era necessário fazer testes ao vivo. Os diretores queriam sentir como a voz soava nas ondas misteriosas do rádio. Outro fenômeno acontecia no rádio e depois na TV da época. Oferecia-se uma maior cachê ao artista que estava agradando mais o público. 

         Na Rádio Nacional, fizeram sucesso os programas Piadas do Manduca, Tancredo e Trancado, Hotel do Pimpinela e, o maior de todos, PRK-20 que depois se tornou PRK-30, emissora clandestina que, supostamente, interrompia as transmissões da Nacional. Havia também o Levertimento, a Turma da Maré Manda e A Cidade se Diverte.

          Segundo a autora Miriam Goldfeder, no livro Por trás das ondas da Rádio Nacional, o humor nos anos 50 era diferente no Rio e em São Paulo. No Rio, segundo Miriam, havia as “chamadas fórmulas cômicas, isto é, modelos de incitação ao riso baseados em macetes conhecidos pelos autores que deles se utilizavam para obter os efeitos pretendidos”. Havia a repetição dos bordões que grudavam no ouvido do público.

        Já em São Paulo, em programas como Marmelândia, de Max Nunes e Haroldo Barbosa, que também escreviam o Balança mas não cai carioca, e no programa História das Malocas e A Rua do Sossego, havia mais sátira política. Talvez pela distância da Capital Federal e da censura mais efetiva.
        O humor dos irmãos D’Avila não era politizado ou satírico. Tal como a irmã, Walter trabalhou no cinema, nos filmes Família Lero-lero, de 1953, onde fez o papel de Aquiles Taveira. Esteve no elenco de Na corda bamba, Os dois ladrões e Pintando o sete, nos anos 60. Foram muitos os programas de rádio e de TV, mas Walter só trabalhou em uma novela, o  Feijão maravilha, no papel do Scarface.
      Vamos nos lembrar de Walter D’Avila, no papel de Arnaldo, que contracenava com Jô Soares, um médico sem noção. Arnaldo estava nervoso porque ia se operar mas, antes disso, decidiu conversar com o amigo. Quando dizia o nome do médico, do hospital e do anestesista, o amigo se traía e mostrava que eles não eram nada confiáveis. Coitado do Arnaldo! Walter morreu no dia 19 de abril de 1996, de insuficiência cardíaca, mas não foi por culpa dos médicos.. Vamos ouvir o diálogo no YouTube?


Paulo Vanzolini, um erudito popular


Rose Esquenazi




         Paulo Vanzolini foi o poeta do samba paulista. Ao contrário de muitos sambistas que nasceram e viveram apenas no ambiente musical, no Rio de Janeiro, Vanzolini tinha outra profissão e morava em São Paulo. Ele estudou medicina e durante muitos anos trabalhou como zoologista. Mas ele possuía um dom especial para a poesia, assim, são dele alguns dos mais lindos versos da Música Popular Brasileira. Segundo o blog Esquina Musical, entre aspas, “o essencial estava na sua pequena, porém, qualitativa, produção de sambas”, que se tornaram clássicos.  A letra de Ronda, por exemplo, que ouvimos na voz de Nelson Gonçalves, diz assim:

         “De noite eu rondo a cidade/A te procurar sem encontrar/No meio de olhares espio/ Em todos os bares/Você não está.../Volto pra casa abatida/ Desencantada da vida/O sonho alegria me dá: Nele você está”.

          Paulo nasceu no dia 25 de abril de 1924. Morou no Rio de Janeiro ainda criança e voltou para São Paulo, em 1930. Ao entrar para a faculdade de medicina, passou a participar das rodas de música dos colegas e, lógico, acompanhava a turma bebendo, identificado com a boemia. Recitava também os versos nos regionais da universidade. A música Ronda nasceu por acaso. A cantora Inezita Barroso, amiga da família, simplesmente não sabia que um disco tinha um lado B. Para agradar Inezita, Paulo compôs Ronda,  lançando-se sem saber como compositor-cientista.No início da carreira, não chamou muita atenção. Aos poucos, os boêmios, que não são poucos, passaram a cantar e a ser identificar com as situações da música. Gravada apenas em 1977, pela cantora Márcia, a letra de Ronda tinha um final trágico. É a história de uma prostituta que mata seu gigolô. Depois de Márcia, Ronda teve mais de 30 gravações.

        Porém, com perfeita paciência/Volto a te buscar/Hei de encontrar/Bebendo com outras mulheres/Rolando um dadinho/Jogando bilhar/E neste dia, então/Vai dar na primeira edição/Cena de sangue num bar/Da Avenida São João

      Triste, não é? Estamos em uma época em que prevalecia o samba-canção na música romântica. No início dos anos 40, havia 14 lançamentos de samba canção por ano. Paulo tinha em que se mirar: Ary Barroso, Lamartine Babo, Custódio Mesquita, Mário Reis, Ismael Silva. Ótimos compositores que seguiram os passos de um dos primeiros sambas-canções brasileiros, o Mulato bamba, de Noel Rosa, lançada em 1932. Da mistura do erudito com o popular, nasceu a música e a poesia de Paulo Vanzolini.  

        Em 1951, Paulo Vanzolini quis que a cantora Inezita Barroso cantasse seu samba Volta por cima. Mas ela não quis. Já o cantor Noite Ilustrada, apelido de Mário Sousa Marques Filho, lançou a música pela Philips, em 1962, com muito sucesso. A canção ficou três semanas em primeiro lugar nas paradas de sucesso. Elza Soares também gravou, com grande repercussão. Em minha opinião, é uma das bonitas obras da MPB. Nesse mesmo ano de 1962, Paulo Vanzolini tornou-se diretor do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo. Seu objetivo nunca foi viver de música ou gravar discos. Mas tinha prazer em escrever e assim continuava a compor poemas para os ouvidos por seu grupo de amigos que eram frequentadores da boate Jogral.

          Muita gente gravou Volta por cima. Uma das mais belas interpretações foi a da Maria Bethania. Crítico, Paulo implicava até com ela: costumava dizer que Bethania não era cantora, mas uma declamadora. Na letra, a parte mais importante para o compositor era a que dizia: “reconhece a queda, mas não desanima”. Vamos ler a letra agora e depois ouvir a Bethania cantando, OK?
Chorei, não procurei esconder/Todos viram, fingiram/Pena de mim, não precisava/Ali onde eu chorei/Qualquer um chorava
Dar a volta por cima que eu dei/Quero ver quem dava/Um homem de moral não fica no chão/Nem quer que mulher/Venha lhe dar a mão/Reconhece a queda e não desanima/Levanta, sacode a poeira/E dá a volta por cima.
Ouça a maravilhosa declamadora Maria Bethania no YouTube.

       Os pesquisadores musicais fazem um estranho perfil de Paulo Vanzolini. Às vezes, descrevem a sua música como samba sem diplomacia. Em Praça Clóvis, de 1967,talvez isso seja verdade. Na letra, o compositor que um homem é assaltado.  Ao contrário do que muitos poderiam supor, ele não fica chateado em perder seu dinheirinho. Na verdade, fica feliz porque o ladrão levou o retrato da mulher ingrata. Ouçam a letra irônica, que também é uma marca de Paulo Vanzolini.

Na praça Clóvis/Minha carteira foi batida/Tinha vinte e cinco cruzeiros/E o teu retrato/vinte e cinco/Eu, francamente, achei barato/Pra me livrarem/Do meu atraso de vida/Eu já devia ter rasgado/E não podia/Esse retrato cujo olhar/Me maltratava e perseguia/Um dia veio o lanceiro/Naquele aperto da praça/vinte e cinco/Francamente foi de graça

        Chico Buarque gravou a música e parecia se divertir muito com essa situação inusitada. As músicas de Paulo Vanzolini tocavam no rádio, mas ele também trabalhou no programa  Consultório Sentimental, apresentado por Cacilda Becker, na Rádio América. Lá, ele lia poemas. Em São Paulo, em 1951, Paulo Vanzolini publicou o livro de versos chamado Lira. E do rádio foi para a antiga TV Record, de São Paulo. Ele fazia um show com Aracy de Almeida e conseguia domar a alma rebelde da cantora.

        No programa Festival da Velha Guarda, trouxe para um novo público grandes músicos que estavam sendo esquecidos. Nos shows, apareceram , por exemplo, Donga e João da Baiana. Só em 1974, Vanzolini conseguiu gravar seu primeiro disco, Onze Sambas e uma Capoeira, graças um convite de Marcus Pereira, dono da gravadora com o mesmo nome. Vamos ouvir Maria que ninguém queria, de 1974, com Nelson Gonçalves


         Paulo Lanzolini estudou também na Columbia University e, durante toda a vida, se dedicou à zoologia. A decisão de seguir essa carreira teve início quando foi passear de bicicleta, pela primeira vez, no Instituto Butantã. Suas letras mostravam o cotidiano de homens e mulheres que sofrem por amor e que, às vezes, querem se vingar de uma traição. Na música Mente, interpretada por Clara Nunes, ele dizia:

        “Mente, ainda é uma saída, é uma hipótese de vida, mente, sai dizendo que me ama. Pois na mentira, meu amor, crer eu não creio, só pretendo que de tanto mentir, repetir que me ama, você mesma acabe crendo!.”

          Amigo de Adoniran Barbosa, Paulo Lanzolini é considerado um dos mais famosos compositores de São Paulo. Ele morreu em 2013, aos 89 anos. Chegou a ser reconhecido e ganhou o Prêmio da  Associação Paulista de Críticos de Artes, pelo conjunto da obra que refletia a sintaxe do paulistano. E para os que o imaginam como sofredor, ele esclareceu ainda em vida. Nunca sofreu de dor de cotovelo! Ouça no YouTube Cravo branco, de 1967.

Curso de inglês na Rádio MEC





 Rose Esquenazi


Atualmente, temos muitas maneiras de estudar um idioma. Além de vários cursinhos que aparecem em diferentes cidades, pode-se aprender inglês, francês ou espanhol em cursos a distância, em aulas pela internet, via Skype,  até em mensagens que podemos receber no nosso iPhone. Mas imaginem isso nos anos 30 e 40. Tudo era muito mais difícil. Antes de celulares, internet e TV, só o rádio reunia as condições de ser o grande professor. Aliás, esse era o maior objetivo de Edgar Roquette-Pinto ao criar a Rádio Sociedade, em 1923. Ser a escola dos que não tinham escola.

Graças à ajuda do pessoal  do departamento de pesquisa do Acervo da  EBC, sob a coordenação de Michelle Tito, Luiz Antonio Cruz Albuquerque e equipe, consegui alguns exemplares de programas da British Broadcasting Corporation, conhecida como BBC. Preparados especialmente para nós, brasileiros, e enviados de Londres, Vamos falar inglês, ou Let’s speak English, tinha duração de 14. É uma delícia ouvir a interpretação dos atores, a voz elegante e gentil do apresentador, descobrir as lições mais básicas dessas aulas radiofônicas. As aulas eram muito bem dirigidas e, depois de cada ensinamento, a produção dava um tempo para que o ouvinte treinasse em sua casa a pronúncia e a dicção.  Ninguém corrigia o aluno como se faz hoje em dia ao vivo, pelo Skype, mas já era alguma coisa.  Além disso, era tudo de graça!

Não conseguimos identificar a data precisa desses programas, mas acredito que tenham sido gravados no final dos anos 60. Digo isso porque as referências e brincadeiras de adivinhação se referem a atores dessa época, como Lawrence Olivier e Cary Grant e Omar Shariff.  

Vamos voltar ainda mais no tempo. Em 1938, os especialistas da BBC  notaram que não havia mensagens inglesas no Brasil e na América Latina. Não se falava em cultura, política, economia da Grã-Bretanha. Mas havia uma grande propagação de ideais alemães, russos e italianos a partir da Rádio Berlim, a Rádio Russa e Rádio Italiana nos aparelhos dos brasileiros. Durante a transmissão musical através de ondas curtas, esses regimes faziam propaganda política e ideológica. Assim, a fim de se posicionar em uma época tão conflituosa e perigosa,  a BBC inaugurou o Serviço Latino-Americano em dois idiomas, espanhol e português, direto de Londres. No mesmo ano, foi criado o serviço em árabe. Em 1941, a BBC lançou um canal exclusivo para o Brasil.

Muitos programas foram produzidos para os brasileiros nesse serviço, que foi além da Segunda Guerra.  Além do semanal Rádio-Magazine, de Bento Fabião, pseudônimo de Geraldo Cavalcanti, havia radioteatro, assinado por Vladimir Herzog, o Vlado; os que falavam sobre literatura, como Crônica Londrina, escrita por Antonio Callado.

Lya Cavalcanti era responsável pela Hora Feminina. A BBC também preparava muitas atrações musicais, como Orquestras Sinfônicas Europeias, A Vida de Chopin, Anedotas musicais. Muitos outros brasileiros, como Bento Fabião, Rachel Braune, Dulce Jay, Aymberê, José Veiga, Sérgio Viotti entre outros -  foram convidados para morar na Inglaterra para escrever e irradiar a vasta programação, que incluía notícias diárias em Big Ben - noticiário. Desde 1948, teve início Inglês pelo rádio.


O modelo do rádio inglês era diferente dos outros na Europa, desde os anos 20. Enquanto os programas de rádio na União Soviética eram maçantes e cheios de “estatísticas dúbias”, segundo os escritores Asa Briggs e Peter Burke, os britânicos tinham o interesse de “fornecer informação, entretenimento e educação”. Eram conteúdos feitos por pessoas do meio e não por ideólogos ou políticos.  O objetivo era esclarecer a população para torná-la consciente na hora de votar por seus representantes políticos.  Foi uma escola de ética para muitas outras emissoras que viriam a seguir.

Havia uma postura formal e, ao mesmo tempo, íntegra dos locutores. Um padrão de qualidade que ainda era rara no Brasil. Mais tarde, a Rádio Jornal do Brasil se aproximou desse estilo elegante e sóbrio. Durante a guerra, era preciso ouvir os discursos de Winston Churchill, o primeiro-ministro britânico para saber o que estava acontecendo na guerra. Acompanhar o dia a dia do conflito mundial, saber que se combatia contra o nazismo e o fascista  na Europa. Ainda mais que nossos soldados estavam na Itália:  o que estaria acontecendo do outro lado do mundo? Acompanhar a BBC, de Londres, além do Repórter Esso, da Rádio Nacional e do Grande Jornal Falado Tupi, era fundamental.

Depois da guerra, como já disse, a BBC lançou programas para ensinar inglês, passando as lições e as noções básicas do idioma. Os brasileiros tinham fome de saber. O inglês já dominava como segunda língua, passando na frente do francês que prevalecia no Brasil desde o século XIX. Naquela época e até hoje, falar inglês é se expressar em uma língua universal, entendida por todos.

Liana Milanez, autora do livro Rádio MEC: Herança de um sonho na Rádio Sociedade, ,  de 1923 a 1936, havia  “aulas com grandes mestres, saraus artísticos, apresentações musicais, notícias comentadas” na rádio educativa. Imaginem que 70% da nossa população era analfabeta. O rádio não exigia nada, apensas o ouvido atento. Depois que a  Rádio Sociedade se tornou Rádio MEC, em 1936, os intelectuais continuaram se interessando pelo conteúdo da programação.  Os professores do Colégio Pedro II ensinavam pelo rádio, aceitando o convite , primeiramente de Roquette-Pinto e depois da direção da MEC. Além da programação educativa, havia sinfonias, quartetos musicais, grandes maestros e peças teatrais.  
00A partir de 1970, o Serviço de Radiodifusão Educativa produziu e veiculou o Projeto Minerva, responsável pela expansão do ensino em todo o país.

Mas vamos voltar às aulas de inglês. A programação musical de língua inglesa cresceu muito a partir dos anos 60. Podemos citar o surgimento dos Beatles, os Rolling Stones, dezenas de bandas de rock. Isso sem contar com os americanos Elvis Presley, o jazz e também o rock americano que revolucionava uma era e que tinham as letras em inglês. Mas como entender o que eles estavam cantando? Era preciso aprender o idioma começando pelo beabá. Havia também a expansão econômica e cada vez precisávamos mais do idioma de Shakespeare.

Vamos ouvir mais um trecho do programa Vamos falar inglês. Agora, a edição 94.  Vocês vão perceber como as aulas já estavam com conteúdo bem mais complexo.  Nesse trecho, o caso do empréstimo das dez libras. 


De uma maneira agradável, com o melhor sotaque possível, os brasileiros passavam a falar um pouco do inglês.  Na produção da BBC, há ambientação, efeitos sonoros e sempre uma música no final do programa. Uma viagem deliciosa no túnel do tempo através da BBC e da Rádio MEC. Let’s speak English, Marco Aurélio?