Rose Esquenazi
Em
uma época do politicamente correto, em que até as marchinhas de Carnaval estão
sendo retiradas dos blocos porque são consideradas preconceituosas, gostaria de
falar sobre um grande ator cômico que talvez não tivesse espaço no rádio hoje –
e também no cinema e na TV – porque tinha um discurso muito machista, mas bem
engraçado. Zé Trindade é o nosso assunto de hoje. Ele estava entre um grupo de comediantes
da Rádio Mayrink Veiga, celeiro de tanta gente competente e profissional na
área do humor. O leitor pode ouvir a música O Chevrolet do Papai, do filme Mulheres
à Vista, rodado em 1959. Estou
usando esse recurso – a música no cinema - porque, infelizmente, a Rádio
Mayrink Veiga foi fechada no dia 1º de abril de 1964, a pedido do alto comando
militar que deu o Golpe de 1964. Seu acervo foi todo destruído.
Fundada no Rio, no dia 21 de janeiro de
1926, fez um grande sucesso nos anos 30, antes da inauguração da Rádio
Nacional, que se deu em 1936. Fizeram parte da Mayrink: Noel Rosa, Gastão Formenti, João Petra
de Barros, Victor Barcelar, Eriberto Muraro, José Maria de Abreu, Romualdo
Peixoto, o Nonô, Silvinha Melo, Mário Reis, Moreira da Silva, Barbosa Júnior,
Madelou de Assis. Além de inquestionáveis qualidades como diretor artístico, Cesar Ladeira também era ótimo para
criar os slogans dos artistas. Carmem Miranda era “A pequena notável”,
Francisco Alves, “O rei da voz”, Carlos Galhardo, “O cantor que dispensa
adjetivos” etc. Mais tarde, nos anos 60, a Mayrink, especialista em
programas humorísticos, se transformou
em veículo político por excelência.
Três anos antes do golpe militar, em
1961, a Mayrink participou da Cadeia da Legalidade, uma rede nacional de
estações organizada por Leonel Brizola, em Porto Alegre. Ele queria defender a
democracia e fazer com que o vice-presidente, Jango Goulart, que estava na
China, assumisse o poder quando o presidente Jânio Quadros decidiu renunciar.
Mas vamos falar de Zé Trindade. O nome
dele era Milton da Silva Bittencourt. O baiano nasceu em 18 de abril de 1915, em
Salvador. Ele vinha de uma família rica de comerciantes de tecidos. Mas seu pai
se casou com uma moça pobre e os parentes não gostaram, tirando-lhe as posses.
Na juventude, Milton trabalhou como contínuo e ascensorista do Hotel Meridional
em Salvador. O pai havia morrido e ele precisava trabalhar para sobreviver. Em 1935, entrou para a Rádio Sociedade da Bahia e ficou amigo de
Dorival Caymmi e Jorge Amado.
Usei como base
para escrever esse texto, citações do livro Este
mundo é um pandeiro. A chanchada de Getulio a JK, do jornalista Sérgio
Augusto. Trabalhei em outras pesquisas também. O sonho de Zé Trindade era ser poeta e um de
seus versos ganhou música de Antônio Maltez, parceiro de Dorival Caymmi. Foi
assim, com essa música, que Milton chegou à Rádio Mayrink Veiga, no Rio. O
apelido Zé Trindade foi retirado de uma poesia nordestina e passou a ser usado
porque o rapaz ficou hospedado na casa de uma tia rica no Rio de Janeiro e não
quis irritá-la. Naquela época, não era um bom sinal um jovem trabalhar no
rádio. Pois bem: a música de Zé Trindade não era grande coisa, mas ele sabia
contar como ninguém piadas de baiano. O melhor de tudo: a voz dele era
espetacular para o rádio.
Foi
em um papel de bêbado que ele foi contratado pela PRF-9, Mayrink Veiga, no
programa Teatro pelos ares. Começou a
ser convocado para participar de outras atrações humorísticas como a Vai da Valsa e A Cidade se diverte. Os redatores eram sensacionais. Podemos citar
o Haroldo Barbosa, Antonio Maria, o iniciante e talentoso Chico Anysio. Os
bordões caíram como luva na voz de Zé Trindade e hoje seriam provavelmente
execrados. Eram assim: “Meu negócio é mulher”, “Mulheres, cheguei”, “É chato a gente ser
gostoso”, entre outros que vou citar aqui. Era um cafajeste, de certo, mas tinha algo de
inocente também.
Consegui falar com a filha de Haroldo
Barbosa, Lucena Barbosa, que está escrevendo com os irmãos um livro sobre a
riquíssima trajetória do pai. Segundo Lucena, não há nenhuma bibliografia sobre
o assunto, apenas citações sobre Zé Trindade, com quem o pai trabalhou muito.
Ela lembrou de outros parceiros, como Sérgio Porto e J. Ruy, Além de
programas da Mayrink: o Levertimentos e Pensão da Dona Isaura
Assisti recentemente ao filme Mulher à vista e fiquei impressionada com
o primarismo do roteiro, as falhas técnicas, os cenários precários. Não é à toa
que a imprensa da época se queixava tanto das chanchadas. Mas, curiosamente, essas
“comédias popularescas, em geral apressadas e desleixadas”, segundo o crítico
Alex Viany, tinham uma grande aceitação. E faziam dobradinha com alguns
programas da Rádio Nacional. Eram divertimento para o povo, feito no Brasil
para brasileiros. Vale a pena rever o
Rio dos anos 50 e Zé Trindade com suas caretas! Para quem estiver com saudades
vai encontrar farto material no Youtube. Há muitos filmes em que Zé Trindade
aparece como protagonista. Além de Mulher
à vista, podem ser vistos Pega
ladrão, O camelô da rua Larga, Rico ri à toa. Ouça a música Pega ladrão, do filme
do mesmo nome rodado em 1956.
Nos
esquetes, Zé Trindade tinha mania de interromper o interlocutor e dizer: “Hem,
hem, hem”. Isso logo virou mania entre a garotada que vivia repetindo nas
conversas dos adultos os “hens, hens, hens”. Foram famosos seus outros bordões: “Papelão”,
“Meu pudim, como vai?”, “O negócio é experimentar”, “Tô mais por fora do que
água de coco”. E quando o questionavam sobre isso, afinal, a água de coco fica
dentro da fruta, Zé Trindade respondia, sério: O coco é meu e eu coloco a água
onde quiser!” Outro bordão era: “Com o perdão pela má palavra”, sempre restando
um sotaque baiano no fundo de sua fala.
Segundo o jornalista Sérgio Augusto, os
personagens de Zé Trindade viviam em um estado de autismo, mas um autista
tarado. Geralmente seus Zeferinos, Isidoros, Joões Flores e Januários eram
pobretões, fãs de mulheres de grande porte. Ele dizia: “Sou louco por mulher
avantajada. Mulher, pra mim, tem que ter 2m80 pra cima”. Como muito de suas
companheiras oficiais nas telas e nos programas de rádio eram autoritárias e
metiam medo, ele vivia dando em cima de outras mulheres, de qualquer uma. Podiam ser altas ou baixas, gordas ou magras:
cantava todas elas. Para descrever a sua mulher que ficava em casa, ele repetia:
“Ela é uma cascavel de chocalho grande” ou “Minha casa não é o Butantã, mas eu
tenho lá uma jararaca”.
Zé
Trindade trabalhou em muitos
outros filmes, como Massagista de madame,
em 1958, dirigido por Victor Lima. Em 1959, gravou de sua autoria e Elias
Soares a marcha O negócio é perguntar
pela Maria. Zé Trindade tinha uma teoria que não falhava: todas as pessoas
conhecem pelo menos uma Maria e se ele começasse uma conversa com uma mulher
perguntando como vai a Maria, a pessoa iria responder qualquer coisa.
Zé Trindade tinha um grande fã clube. Apesar
de ser machista, as mulheres gostavam muito dele. Achavam engraçadas as caretas
e seu jeito de andar. Talvez também se divertiam com sua petulância ao cantar
todas elas, sem vergonha. Ele não se achava sexista, mas sim, ousado. Um
devasso com certeza.
O comediante da
Mayrink Veiga gravou
25 discos de música nordestina e, apesar de parecer tão machista, foi casado
com Cleusa durante toda a sua vida e
teve quatro filhos: Anayra, Regina, Ricardo e Christina. Quando o rádio e as
chanchadas perderam a sua importância, ele chegou a trabalhar na TV, com Chico
Anysio, no Chico Anysio Show. Talvez
as pessoas ainda se lembrem dele no humorístico Balança mas não cai , na TV, em 1982, e na minissérie Memórias de um gigolô, de 1986. Para manter a família, Zé Trindade decidiu entrar para a indústria de
alimentos e se mudou para Iguaba Grande, no Estado do Rio. Ele morreu aos 75
anos, em 1º de maio de 1990.
Em 2013,
o jornalista Artur Xexéo escreveu o musical Zé
Trindade: A última chanchada, dirigido por João Fonseca e estrelada por
Paulo Mathias Jr. Vamos terminar ouvindo uma comparação que o comediante fazia
entre o homem e o burro. Quem é mais inteligente?
Nenhum comentário:
Postar um comentário