quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Zé Trindade, em estado de autismo

Rose Esquenazi

         Em uma época do politicamente correto, em que até as marchinhas de Carnaval estão sendo retiradas dos blocos porque são consideradas preconceituosas, gostaria de falar sobre um grande ator cômico que talvez não tivesse espaço no rádio hoje – e também no cinema e na TV – porque tinha um discurso muito machista, mas bem engraçado. Zé Trindade é o nosso assunto de hoje. Ele estava entre um grupo de comediantes da Rádio Mayrink Veiga, celeiro de tanta gente competente e profissional na área do humor. O leitor pode ouvir a música O Chevrolet do Papai, do filme Mulheres à Vista, rodado em 1959.  Estou usando esse recurso – a música no cinema - porque, infelizmente, a Rádio Mayrink Veiga foi fechada no dia 1º de abril de 1964, a pedido do alto comando militar que deu o Golpe de 1964. Seu acervo foi todo destruído.

         Fundada no Rio, no dia 21 de janeiro de 1926, fez um grande sucesso nos anos 30, antes da inauguração da Rádio Nacional, que se deu em 1936.   Fizeram parte da Mayrink: Noel Rosa, Gastão Formenti, João Petra de Barros, Victor Barcelar, Eriberto Muraro, José Maria de Abreu, Romualdo Peixoto, o Nonô, Silvinha Melo, Mário Reis, Moreira da Silva, Barbosa Júnior, Madelou de Assis. Além de inquestionáveis qualidades como diretor artístico, Cesar Ladeira também era ótimo para criar os slogans dos artistas. Carmem Miranda era “A pequena notável”, Francisco Alves, “O rei da voz”, Carlos Galhardo, “O cantor que dispensa adjetivos” etc. Mais tarde, nos anos 60, a Mayrink, especialista em programas humorísticos,  se transformou em veículo político por excelência.
        
         Três anos antes do golpe militar, em 1961, a Mayrink participou da Cadeia da Legalidade, uma rede nacional de estações organizada por Leonel Brizola, em Porto Alegre. Ele queria defender a democracia e fazer com que o vice-presidente, Jango Goulart, que estava na China, assumisse o poder quando o presidente Jânio Quadros decidiu renunciar.

         Mas vamos falar de Zé Trindade. O nome dele era Milton da Silva Bittencourt. O baiano nasceu em 18 de abril de 1915, em Salvador. Ele vinha de uma família rica de comerciantes de tecidos. Mas seu pai se casou com uma moça pobre e os parentes não gostaram, tirando-lhe as posses. Na juventude, Milton trabalhou como contínuo e ascensorista do Hotel Meridional em Salvador. O pai havia morrido e ele precisava trabalhar para sobreviver. Em 1935, entrou para a Rádio Sociedade da Bahia e ficou amigo de Dorival Caymmi e Jorge Amado. 

         Usei como base para escrever esse texto, citações do livro Este mundo é um pandeiro. A chanchada de Getulio a JK, do jornalista Sérgio Augusto. Trabalhei em outras pesquisas também.  O sonho de Zé Trindade era ser poeta e um de seus versos ganhou música de Antônio Maltez, parceiro de Dorival Caymmi. Foi assim, com essa música, que Milton chegou à Rádio Mayrink Veiga, no Rio. O apelido Zé Trindade foi retirado de uma poesia nordestina e passou a ser usado porque o rapaz ficou hospedado na casa de uma tia rica no Rio de Janeiro e não quis irritá-la. Naquela época, não era um bom sinal um jovem trabalhar no rádio. Pois bem: a música de Zé Trindade não era grande coisa, mas ele sabia contar como ninguém piadas de baiano. O melhor de tudo: a voz dele era espetacular para o rádio.

         Foi em um papel de bêbado que ele foi contratado pela PRF-9, Mayrink Veiga, no programa Teatro pelos ares. Começou a ser convocado para participar de outras atrações humorísticas como a Vai da Valsa e A Cidade se diverte. Os redatores eram sensacionais. Podemos citar o Haroldo Barbosa, Antonio Maria, o iniciante e talentoso Chico Anysio. Os bordões caíram como luva na voz de Zé Trindade e hoje seriam provavelmente execrados. Eram assim: “Meu negócio é mulher”,  “Mulheres, cheguei”, “É chato a gente ser gostoso”, entre outros que vou citar aqui.  Era um cafajeste, de certo, mas tinha algo de inocente também.
        
         Consegui falar com a filha de Haroldo Barbosa, Lucena Barbosa, que está escrevendo com os irmãos um livro sobre a riquíssima trajetória do pai. Segundo Lucena, não há nenhuma bibliografia sobre o assunto, apenas citações sobre Zé Trindade, com quem o pai trabalhou muito. Ela lembrou de outros parceiros, como Sérgio Porto e J. Ruy, Além de programas da Mayrink: o Levertimentos e Pensão da Dona Isaura
                       
          As pessoas atualmente não têm ideia de que o rádio foi grande celeiro para o cinema, principalmente para as chanchadas, as comédias da Atlândida. Quando apareceu no primeiro filme – O malandro e a grã-fina - o público descobriu que Zé Trindade, muito baixinho, era de fato muito engraçado, mas careteiro demais. Nesse filme, ele fez uma ponta apenas. Fazia um presidiário que dizia uma piada entre as grades de uma delegacia. Ao todo, participou de 26 filmes produzidos por Herbert Richers que faziam sucesso apesar de muitas falhas de produção. Era costume das produtoras lançarem filmes antes do Carnaval, apostando em novas marchinhas. Mas nem sempre isso dava certo, muitas delas não fizeram sucesso.

         Assisti recentemente ao filme Mulher à vista e fiquei impressionada com o primarismo do roteiro, as falhas técnicas, os cenários precários. Não é à toa que a imprensa da época se queixava tanto das chanchadas. Mas, curiosamente, essas “comédias popularescas, em geral apressadas e desleixadas”, segundo o crítico Alex Viany, tinham uma grande aceitação. E faziam dobradinha com alguns programas da Rádio Nacional. Eram divertimento para o povo, feito no Brasil para brasileiros.  Vale a pena rever o Rio dos anos 50 e Zé Trindade com suas caretas! Para quem estiver com saudades vai encontrar farto material no Youtube. Há muitos filmes em que Zé Trindade aparece como protagonista. Além de Mulher à vista, podem ser vistos Pega ladrão, O camelô da rua Larga, Rico ri à toa. Ouça a música Pega ladrão, do filme do mesmo nome rodado em 1956.

         Nos esquetes, Zé Trindade tinha mania de interromper o interlocutor e dizer: “Hem, hem, hem”. Isso logo virou mania entre a garotada que vivia repetindo nas conversas dos adultos os “hens, hens, hens”.  Foram famosos seus outros bordões: “Papelão”, “Meu pudim, como vai?”, “O negócio é experimentar”, “Tô mais por fora do que água de coco”. E quando o questionavam sobre isso, afinal, a água de coco fica dentro da fruta, Zé Trindade respondia, sério: O coco é meu e eu coloco a água onde quiser!” Outro bordão era: “Com o perdão pela má palavra”, sempre restando um sotaque baiano no fundo de sua fala.

         Segundo o jornalista Sérgio Augusto, os personagens de Zé Trindade viviam em um estado de autismo, mas um autista tarado. Geralmente seus Zeferinos, Isidoros, Joões Flores e Januários eram pobretões, fãs de mulheres de grande porte. Ele dizia: “Sou louco por mulher avantajada. Mulher, pra mim, tem que ter 2m80 pra cima”. Como muito de suas companheiras oficiais nas telas e nos programas de rádio eram autoritárias e metiam medo, ele vivia dando em cima de outras mulheres, de qualquer uma.  Podiam ser altas ou baixas, gordas ou magras: cantava todas elas. Para descrever a sua mulher que ficava em casa, ele repetia: “Ela é uma cascavel de chocalho grande” ou “Minha casa não é o Butantã, mas eu tenho lá uma jararaca”.

         Zé Trindade  trabalhou em muitos outros filmes, como Massagista de madame, em 1958, dirigido por Victor Lima. Em 1959, gravou de sua autoria e Elias Soares a marcha O negócio é perguntar pela Maria. Zé Trindade tinha uma teoria que não falhava: todas as pessoas conhecem pelo menos uma Maria e se ele começasse uma conversa com uma mulher perguntando como vai a Maria, a pessoa iria responder qualquer coisa.

         Zé Trindade tinha um grande fã clube. Apesar de ser machista, as mulheres gostavam muito dele. Achavam engraçadas as caretas e seu jeito de andar. Talvez também se divertiam com sua petulância ao cantar todas elas, sem vergonha. Ele não se achava sexista, mas sim, ousado. Um devasso com certeza.

         O comediante da Mayrink Veiga gravou 25 discos de música nordestina e, apesar de parecer tão machista, foi casado com  Cleusa durante toda a sua vida e teve quatro filhos: Anayra, Regina, Ricardo e Christina. Quando o rádio e as chanchadas perderam a sua importância, ele chegou a trabalhar na TV, com Chico Anysio, no Chico Anysio Show. Talvez as pessoas ainda se lembrem dele no humorístico Balança mas não cai , na TV, em 1982, e na minissérie Memórias de um gigolô, de 1986.  Para manter a família,  Zé Trindade decidiu entrar para a indústria de alimentos e se mudou para Iguaba Grande, no Estado do Rio. Ele morreu aos 75 anos, em 1º de maio de 1990.
         Em 2013, o jornalista Artur Xexéo escreveu o musical Zé Trindade: A última chanchada, dirigido por João Fonseca e estrelada por Paulo Mathias Jr. Vamos terminar ouvindo uma comparação que o comediante fazia entre o homem e o burro. Quem é mais inteligente?

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