quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Waldir Azevedo: o mestre do cavaquinho


Rose Esquenazi






       Waldir Azevedo era um músico genial. Nascido em 27 de janeiro de 1923, vinha de uma família pobre, que morava no bairro da Piedade. Depois foi morar no Engenho Novo, outro bairro carioca. O interesse pela música começou cedo. Para comprar uma flauta transversal, aos 7 anos, o menino vendia os passarinhos que capturava no mato. Olhe que atitude mais politicamente incorreta: naquela época, não era tão malvista.  Três anos mais tarde, apresentou-se no Jardim do Meier, tocando Trem Blindado, de João de Barro, músico que ele foi conhecer anos mais tarde.

        Aos poucos, jovenzinho, Waldir se reunia para tocar com conhecidos. Passou para o bandolim e depois para o cavaquinho. Nunca ninguém tinha prestado atenção nesse instrumento relegado ao segundo plano. O violão elétrico havia se imposto naqueles tempos. Waldir começou a descobrir o potencial do cavaquinho e a conhecer a alma de suas cordas. Foi trabalhar na Light, companhia de iluminação do Rio, onde ganhava muito pouco. Era melhor do que nada.

         Conheceu Olinda, que seria a sua mulher, ainda sonhando em ser piloto de avião. O coração frágil não deixou que ele continuasse tentando. Nesse meio tempo, teve sorte de ser lembrado pela Rádio Clube do Brasil. O grupo do famoso músico Dilermando Reis precisava de um cavaquinista. O convite foi feito quando Waldir Azevedo tinha 22 anos, em 1945. Em plena lua de mel, ele decidiu voltar para o Rio. As portas foram abertas: o grupo de Dilermando era brilhante. O choro ganhava as ondas sonoras como autêntica e maravilhosa  música brasileira.

         Acabamos de ouvir na abertura a música Brasileirinho, que começou a ser composta em 1947. Tudo começou quando um sobrinho de Waldir pediu que o tio fizesse uma música para ele. Waldir disse que não podia porque o cavaquinho que tinha em casa só tinha uma nota: o ré. O instrumento bom estava na Rádio Clube. Tal foi a insistência, que o músico começou a compor uma música só com a nota ré. Ouça no YouTube um trecho desse mesmo choro Brasileirinho, que ganhou letra de Pereira da Costa, em 1950, interpretado por Ademilde Fonseca.

          Brasileirinho foi a primeira música de Waldir Azevedo e rendeu uma fortuna na época em direitos autorais. Coisa rara. Passou a ser tocada em vários países e se tornou popularmente conhecida.Segundo a revista Rolling Stones, Brasileirinho está em 53º lugar entre as 100 maiores canções brasileiras de todos os tempos. Incrível, não é? 

          Segundo Henrique Cazes, excelente músico e pesquisador, no seu livro Choro, do quintal ao Municipal, o grande mérito de Waldir Azevedo foi “tocar com a mão direita solta, de maneira a obter grande volume do instrumento”. Ainda segundo Cazes, Waldir  “usava as cordas bem altas para não estalar e, assim, manter seu padrão de sonoridade”. Havia outro segredo também: a grande simplicidade. Certa vez, Waldir tentou tornar mais complexas as composições achando que ultrapassaria seus próprios limites. Foi mostrar a obra ao talentoso Radamés Gnatalli e a resposta do maestro foi surpreendente: “Ô, Waldir, não mexe nisso, não. Tava tão bom como era...”

         O cavaquinho passou a ter vida própria nas mãos de Waldir. Com seu grupo musical, durante 11 anos, viajou pela Europa e América Latina. Na BBC londrina, apresentou-se em um programa transmitido para 52 países. Integrou as Caravanas da Música Brasileira, patrocinadas pelo Itamaraty. E continuou compondo maravilhas como Chiquita, Vê Se Gostas e Pedacinhos do Céu.

       O pesquisador Henrique Cazes contou que só em um aspecto o sucesso mudou a cabeça de Waldir. Ele perdeu todos os fios de cabelo. Inconformado, passou a usar peruca, que às vezes não combinava muito com seu visual.

          Uma tragédia, porém, tornou o músico muito deprimido. Mais velha das duas filhas, Miriam tinha 18 anos quando morreu em um acidente de carro. Waldir sofreu uma grave depressão. Vivia olhando para fora da janela como se estivesse esperando por uma pessoa que não aparecia. Com a mudança da outra filha , Marly, para Brasília, em 1971, Waldir foi junto. Passou a morar em uma casa grande, com jardim. Tornou-se presidente da União Brasileira de Compositores, a UBC. Já sabia ler e escrever música e assim seguiu compondo.

          Tudo foi bem na vida de Waldir até ocorreu outro acidente. O músico teve a ponta do dedo anular no cortador de grama. Ele foi socorrido na emergência. O médico pediu que a esposa de Waldir corresse em casa e encontrasse o pedaço do dedo para reimplante. A cirurgia foi bem sucedida, mas o  músico achou que jamais continuaria a tocar como antes.
Aos poucos, ele conseguiu superar mais esse trauma e voltou a tocar. Com o violonista Hamilton Costa e o cavaquinhista Assis, passou a frequentar o Clube do Choro. Nessa volta, achou que não teria público para prestigiá-lo, mas ele estava errado. O show marcado no Teatro Nacional de Brasília fez sucesso. O público não havia se esquecido do famoso instrumentista. Ouça no YouTube Delicado, outra composição de Waldir Azevedo, que fez enorme sucesso no rádio, vendendo milhares de discos.

         Waldir Azevedo morreu aos 57 anos, cedo ainda. Sofreu um aneurisma da aorta abdominal, em 1980, em São Paulo. Ele havia começado as gravações de um novo álbum, mas não concluiu. Em 2006, aconteceu uma história muito interessante. Quase trinta anos depois da morte de Waldir, Ronaldo da Conceição Junior, o Ronaldinho, que costumava fazer transporte alternativo e tocar cavaquinho na Cidade de Conservatória, recebeu um elogio de um turista que comparava o jeito do rapaz tocar com a de Waldir Azevedo. Certa vez, dona Olinda, viúva de Waldir, que nunca havia aberto a casa dela para ninguém, convidou Ronaldinho para conversar com ela. Isso porque aconteceu  uma incrível coincidência.

         Olinda ouviu o rapaz tocando em um consultório médico. Por instantes, ela achou que era o marido quem estava no cavaquinho. Trinta anos depois da morte, o jovem foi à casa de dona Olinda e os dois descobriram que era o dia 27 de janeiro, aniversário de Waldir. Segundo Marta Paes, em uma reportagem de O Globo, em abril de 2014, Ronaldinho recebeu o acervo de Waldir Azevedo e começou a sonhar em abrir um Instituto com o nome do músico.

          Graças à doação do presidente da Light, José Luiz Alquerés,  e do músico José Luiz Teixeira, Ronaldinho fundou o Instituto Waldir Azevedo, em Conservatória.  Dona Olinda morreu em 2011, mas propagou da melhor forma possível as obras do marido. De acordo com a reportagem de Marta Paes, a filha Marly revelou que o pai sempre tocava para os doentes e dependentes de drogas em Brasília. Nunca tinha contado isso para ninguém. O Instituto tem esse mesmo objetivo: levar a música para todos. 


Antônio Maria: o menino grande



Rose Esquenazi




            
         Antônio Maria era grande em muitos sentidos. Jornalista e compositor admirável, comentarista, narrador e roteirista de rádio, era também uma pessoa alta e forte, para não dizer “acima do peso”. Ele tinha um metro e oitenta e  pesava 120 quilos.  Considerado o rei do samba-canção na década de 50, foi autor dessa maravilha da qual acabamos de ouvir um trecho com Lúcio Alves: Valsa da Cidade. O gênero musical em questão foi detalhadamente estudado por Rui Castro  no livro A noite do meu bem. A história e as histórias do samba-canção”.

            Antônio Maria Araújo de Morais nasceu no Recife no dia 17 de março de 1921.  Segundo a pesquisadora Semira Adler Vainsencher, da Fundação Joaquim Nabuco, Antônio nasceu em um sobrado na Rua da União, no Recife, mas passou muito tempo no engenho do seu avô. Teve uma boa educação: estudou no Colégio Marista e recebeu aulas de piano e francês. Logo, ele se interessou pela música sendo amigo de Fernando Lobo, com quem mais tarde foi conviver no Rio de Janeiro. Além da música, o futuro compositor gostava muito da noite, tornando-se frequentador do Cabaré Imperial. Ao estudar agronomia, decidiu fazer estágio na usina do avô, como técnico de irrigação de cana-de-açúcar.  O que aconteceu com ele depois se repetiu em muitas outras famílias no Nordeste. Na divisão dos bens entre os familiares, com a morte do avô, a usina faliu.

 Certa vez, ele escreveu o seguinte: "Um dia amanhecemos pobres, nossos automóveis foram ser carros de praça, o veraneio da praia ficou para quando Deus desse bom tempo".

O rádio crescia em todas as capitais. Em 1934, Antônio Maria começou a trabalhar no Rádio Clube de Pernambuco. Era locutor e apresentador de programas musicais feitos com discos.  Logo se destacou entre os profissionais da época. Assim, em 1940, aos 19 anos, decidiu viajar para o Rio de Janeiro. Tornou-se locutor esportivo na Rádio Ipanema. Tinha um estilo diferente de irradiar os jogos, parece que os donos da emissora não gostaram e logo o dispensaram do emprego.  Mas ele narrou futebol em outra emissora, a Rádio Tupi do Rio de Janeiro, como explicaremos em seguida.

Inteligente, bom texto, se juntou ao grupo de outros recifenses que viviam no Rio: Fernando Lobo, Abelardo Barbosa, o Chacrinha, Theophilo de Vasconcellos e Augusto Rodrigues. Todos ainda sem dinheiro e buscando um lugar ao sol. Eles se ajudavam mutuamente e conseguiam empregos uns para os outros. Moravam no Edifício Souza, na Cinelândia. Dorival Caymmi, baiano ainda desconhecido, chegou ao Rio dois anos antes e também entrou para a turma. Antônio Maria começou a fazer sambinhas com Fernando Lobo e passou a conhecer os bares cariocas. Sua primeira composição foi Duas mãos, com parceria do pianista Fats Elpidio.

Na primeira vez em que viveu no Rio, a estada durou 10 meses. Não ganhava muito dinheiro mesmo trabalhando na Rádio Ipanema e depois Rádio Tupi. Como ele não conseguia um bom emprego no Rio, retornou ao Recife. Foi trabalhar em jornais, produzir músicas para publicidade sendo, inclusive, locutor esportivo.

Nessa época, Antônio Maria  casou-se com Maria Gonçalves Ferreira. Tentou a sorte em Fortaleza, na Rádio Clube do Ceará. Depois, foi para a Bahia, onde se tornou diretor das Emissoras Associadas. Maria voltou ao Rio de Janeiro em 1947,  já com dois filhos, contratado como diretor artístico na Rádio Tupi, onde ficou amigo de Ary Barroso. Os dois eram bem diferentes, mas, depois do trabalho, iam sempre jantar fora. Antonio Maria narrou os ataques uruguaios no jogo  Brasil versus Uruguai, e Ary ficou com os ataques brasileiros naquela derrota horrível da Copa do Mundo, em 1950. Era uma nova maneira de transmitir um jogo.

Antônio continuou compondo. Vamos ouvir Menino Grande. A letra é bonita:  ///  "Eu gosto tanto do carinho que ele me faz / Faz tanto bem o beijo que ele me traz / As horas passam / Ligeiras, felizes / Sem a gente sentir / Ele está ao meu lado / Com o corpo cansado ////  Precisa dormir / Dorme, menino grande / que eu estou perto de ti /// Sonha o que bem quiseres / que eu não sairei daqui / Oh, vento não faz barulho / meu amor está dormindo ///  E o mar não bata com força / porque ele está dormindo".
        
        Antônio Maria passou a escrever crônicas que foram muito bem recebidas. Foi contratado pelo diário O Jornal, de Assis Chateaubriand, e chegou a assinar duas colunas que vingaram pormais de 15 anos. Chamavam-se A Noite É Grande (até 1955) e O Jornal de Antônio Maria. Passou por outros jornais, como O Globo, onde assinou a coluna Mesa de Pista, em 1959, e depois para o jornal Última Hora, onde voltou com O Jornal de Antônio Maria e o Romance Policial de Copacabana, sobre a vida no Rio de Janeiro.
            A trajetória de Antônio Maria no rádio também foi rica e variada. Em 1952, estava na Mayrink Veiga, emissora que queria competir com a Tupi. Por isso, contratou o jornalista com o mais alto cachê do rádio brasileiro: 50 mil cruzeiros. O radialista acabou comprando um Cadillac que era um carrão na época.
Pessoa eclética, criava até jingles publicitário, como o  Auris Sedina, com a seguinte letra: "Se a criança acordou / Dorme, dorme filhinha / Tudo calmo ficou / Mamãe tem Auris Sedina"    

           Assis Chateaubriand convidou Antônio Maria para ser o primeiro diretor de produção da TV Tupi do Rio, inaugurada em 20 de janeiro de 1951.  Apesar de ser casado e ter dois filhos, Antônio Maria continuava gostando da noite, das bebidas e das mulheres bonitas. Chegou a escrever shows para a boate Casablanca e Night and Day e assinou espetáculos de revista com seu amigo Ary Barroso. Os dois também estiveram juntos no programa Rio, Eu Gosto de Você, na TV Rio, em 1957.

            No programa Preto no Branco, de Oswaldo Sargentelli, na TV Tupi, Antonio Maria sempre aparecia com uma pergunta difícil para o entrevistado. Certa vez perguntou à deputada  Sandra Cavalcanti se ela era mal-amada. A resposta de Sandra foi curta e grossa. Ela disse assim: “Posso até ser, senhor Maria, mas não fui eu que fiz aquela música Ninguém me ama. O samba-choro, escrito com Fernando Lobo era uma lamúria só e foi gravado pelo cantor americano Nat King Cole. Houve uma briga por conta dessa parceria: Maria brigou com Fernando Lobo e revelou que a música não era do amigo, mas só dele, Maria!
          
            Foram muitos sucessos assinados por Antônio Maria, como O Amor e a Rosa, com coautoria de Pernambuco, interpretado pelo cantor Miltinho. Se eu morresse amanhã, Canção da volta, Onde anda você. Ao todo, foram 62 composições, com parceiros importantes, como Vinícius de Moraes e Zé da Zilda.

            Antônio Maria trabalhava exaustivamente. Em uma semana, segundo Rui Castro, "escrevia, produzia e apresentava três programas na Rádio Mayrink Veiga e um na Nacional de São Paulo”. Escrevia ao todo 12 colunas para jornais e a revista Manchete. Sem falar nos shows das boates. Ele bebia, era obeso, um apaixonado por Danuza Leão e um tanto suicida. Sofria do coração desde criança. Ele gostava de dizer que era um "cardisplicente". Sofreu um enfarte do miocárdio fulminante, antes de completar 43 anos, no dia 15 de outubro de 1964, em Copacabana. Ouça no YouTube Manhã de Carnaval, de Antônio Maria e Luiz Bonfá, na voz de João Gilberto.

domingo, 7 de janeiro de 2018

Aracy Cortes: A Primeira Artista do Rádio

Rose Esquenazi






                Zilda de Carvalho Espíndola, conhecida como Aracy Cortes, foi, nos anos 20,  uma pioneira no rádio. Tornou-se a primeira voz feminina em uma era em que só os homens costumavam aparecer no novo meio de comunicação. As músicas que ela gravava começaram a ser tocadas nas estações quando elas ainda estavam se consolidando. A Rádio Sociedade foi primeira estação inaugurada, em 1923, no Rio. Depois vieram a Rádio Club do Brasil, a Philips e a Jornal do Brasil. A artista não trabalhava efetivamente em uma estação, mas estava presente com suas interpretações. Na parada de sucesso de 1932, ela estava lá com a música Que é que...? Em 1935, foi eleita a Melhor Artista do Rádio, em um concurso promovido pelo jornal Gazeta de Notícias.

            Mas quem foi Aracy Cortes? Nascida no bairro do Estácio, no Rio de Janeiro, em 31 de março de 1904, era filha de um chorão conhecido, Carlos Espíndola. Ficou órfã muito mocinha e se mudou para o Catumbi com a madrinha muito exigente. Era vizinha do músico Alfredo da Rocha Vianna Filho, o Pixinguinha, sete anos mais velho do que ela. Com seu grupo musical Oito Batutas, ele influenciou a jovem. Para se livrar do rigor, Aracy foi trabalhar no Circo Democrata, na Praça Tiradentes, em 1921. |Ali começava a carreira artística. Acabamos de ouvir a interpretação de Aracy Cortes para Linda flor (Ai, iô, iô). De autoria de Henrique Vogeler, Marques Porto e Luiz Peixoto, já havia sido gravada antes. Mas obteve atenção quando Aracy impôs certas mudanças na música.  Sem querer, ela inaugurava um tipo diferente de samba, o samba-canção, mais sentimental. Isso aconteceu em 1928, em uma revista chamada Miss Brasil, de Marques Porto e Luiz Peixoto. Tornou-se popular a letra:
Ai, Ioiô/Eu nasci pra sofrer/Fui olhar pra você, meus olhinhos fechou
E quando os olhos abri, quis gritar, quis fugir/Mas você, eu não sei por que/
Você me chamou
Ai, Ioiô/Tenha pena de mim/Meu Senhor do Bonfim pode inté se zangá/Se ele um dia souber/Que você é que é, o Ioiô de Iaiá
Chorei toda noite, pensei/Nos beijos de amor que te dei/Ioiô, meu benzinho do meu coração/Me leva pra casa, me deixa mais não/Ai, Ioiô/Tenha pena de mim/Meu Senhor do Bonfim pode inté se zangá/Se ele um dia souber/Que você é que é, o Ioiô de Iaiá
         Segundos os sites Itaú Cultural e Dicionário Cravo Albin de Música Popular Brasileira, Aracy conseguiu uma proeza naqueles anos 20 e 30. Deixou de lado a influência francesa do gênero teatral e passou a mostrar as características brasileiras no teatro de revista que estava florescendo na Praça Tiradentes. Revelando partes de seu lindo corpo, algo raríssimo nos anos 30, Aracy chegou a posar nua em uma capa de disco segurando um violão. O instrumento considerado marginal escondia os seios. Ela também não tinha vergonha de falar palavrões e de cantar músicas com duplo sentido. Isso, muito antes da comediante Dercy Gonçalves. O público gostava e lotava os vários teatros na Tiradentes para curtir Aracy. Ouça a música Moreno, de Custódio Mesquita, no YouTube.

        Essa interpretação aconteceu na Sala Funarte, em 1982. Na apresentação, a cantora Marília Batista apresentou Aracy Cortes, como “a Rainha dos Brilhantes”, “a Rainha dos Artistas”, “a Rainha das Atrizes”, “a Imperatriz absoluta da Praça Tiradentes”. Ela viria a falecer dois anos depois, aos 80 anos, no Rio de Janeiro. Vamos começar novamente. Depois do circo, Aracy estreou oficialmente no Teatro Recreio, em 1921, aos 17 anos. A revista se chamava Nós pelas costas, de J. Praxedes. A obra fazia uma crítica àqueles que têm opiniões diferentes, na frente e por trás das pessoas. Falava de falsidade, certamente.  A moça ainda se chamava Zilda e logo ganhou o rótulo de “figurinha brasileira petulante”. O jornalista Mário Magalhães achou que Zilda não combinava com a artista e sugeriu o pseudônimo de Aracy, no jornal A Noite. Pegou o apelido.

           Aracy passou a ser convidada para muitas outras revistas na Praça Tiradentes, na época, lugar muito movimento com seus dancings e teatros. A sua voz fininha e afinada agradava em cheio. Nas gravações mecânicas feitas em cera pela Casa Edison, em estúdio ao ar livre, antes das gravações elétricas, ela estourou antes mesmo de Carmem Miranda. Ouçam essa raridade, No toco da goiaba, de 1929, que ela interpretou junto com Francisco Alves, também jovem na época.

  
           Morena de cabelos crespos, Aracy sabia mexer com o corpo e com os olhos, sempre cheios de segundas intenções. O Rio de Janeiro era uma cidade bastante conservadora, os tempos eram outros.  E ela fazia a diferença. Certa vez, ela e as meninas, chamadas de girls, estavam cantando o fox-trot Febre azul, de Ary Barroso. A ordem da produção era borrifar água de colônia nos homens que se sentavam nas primeiras fileiras do teatro. Era uma espécie de merchandising da perfumaria. Eles costumavam ir sozinhos ao teatro deixando as mulheres em casa. Deu tanta confusão que o quadro foi proibido. Afinal, não dava para disfarçar aquele cheiro de perfume quando os maridos voltavam para casa. Onde eles tinham ido, afinal?
    
          Como disse antes, Aracy fez parte das primeiras vozes que cantaram no rádio. Além dela, estavam na lista Francisco Alves, Silvio Caldas, Carmem Miranda, que se tornaram  ídolos do público. Na programação dos anos 20, era comum colocar para tocar na vitrola os lançamentos ou mesmo receber os artistas que cantavam de graça. Aracy preferia o teatro e, pelo que pesquisei, não costumava ir pessoalmente às estações. A primeira a ganhar cachê fixo, e alto, foi Carmem Miranda porque todas queriam a Pequena Notável em seus programas musicais. Convivendo com os compositores populares, Aracy foi festejada ao interpretar Jura, o samba amaxixado, de Sinhô, e Tem francesa no morro, de Assis Valente.

        Valente era baiano e queria fazer carreira na música. Carmem já havia gravado o samba-choro Camisa listrada mas não quis saber da nova criação irreverente e divertida. Mas Aracy percebeu a brincadeira com a língua francesa aportuguesada. Em 1932, ela  gravou e apresentou a música do teatro, com muita repercussão.
  
Donnez-moi s'il vous plaît l'honneur de danser avec moi (Me dê a honra de dançar comigo)
Danse Ioiô/Danse Iaiá/Si vous frequentez macumbe entrez na virada e fini pour samba/Danse Ioiô/Danse Iaiá (Dance Ioiô; Danse iaiá. Se você frequenta a macumba e entra na virada e acaba dançando o samba)

Viens/Petite francesa/Dansez le classique/Em cime de mesa/Quand la danse commence on danse ici on danse aculá/Dance Ioiô/Dance Iaiá (Venha, pequena francesa, dance o clássico em cima da mesa). Si vous ne veux pas danser, pardon mon chéri, adieu, je me vais/Danse Ioiô
Danse Iaiá
(Se você não quer dançar, desculpe querida, adeus. Dance Ioiô; Danse iaiá).
           Em 1935, Aracy Cortes ganhou uma placa com os dizeres Rainha do Teatro, no Teatro Recreio. Nessa época, ela já tinha a sua própria companhia.  Era tão popular que se tornou "a melhor artista do Rádio", em um concurso promovido pelo jornal Gazeta de Notícias, em uma festa no Teatro Carlos Gomes. Esse acontecimento foi anterior à criação do concurso Rainha do Rádio promovido pela Revista do Rádio, evento que se tornou famosíssimo.

           Na revista teatral Entra na faixa, escrita por Ary Barroso, em 1939, Aracy Cortes interpretou Aquarela do Brasil. Mas ainda há uma polêmica sobre isso, será que não foi Francisco Alves o primeiro a gravar? Não importa muito. É mais complicado descobrir por que ela passou 20 anos sem gravar. Entrava em declínio o teatro de revista, a televisão já tinha sido inaugurada. Aracy Cortes só voltou em 1953, com o samba-canção Flor do lodo, de Ari Mesquita. Naquela época, a mulher que bebia com homens no bar estava marcada para sempre. A letra diz assim:
Flor do lodo/Mulher de baixos costumes/Ninguém ouve os meus queixumes/Ninguém vê meu padecer/Meu lar é o botequim na esquina/Que frequento desde menina/Para com os homens beber
A mulher com o destino mal traçado/Meu atos são meu pecado/E a razão do meu sofrer/Só tu que traído por alguém/Compreendes meu viver/Porque és do lodo também
          Em 1965, Aracy Cortes foi chamada para atuar no show Rosa de Ouro, organizado por Hermínio Bello de Carvalho e Kleber Santos. Ao lado dela estavam Clementina de Jesus, Elton Medeiros, Jair do Cavaquinho, Nelson Sargento e Nescarzinho do Salgueiro. Em 1984, 19 anos depois, a  Funarte lançou o LP Aracy Cortes, uma coletânea com depoimentos da cantora e um livro de autoria de Roberto Ruiz.  Naquele ano em que faria 80 anos, a Sala Sidnei Miller da Funarte homenageou a cantora com o show biográfico que eu citei no início do quadro. O interessante é ver que ainda hoje os cantores gravam Linda Flor. Não podemos nos esquecer da cantora Aracy Cortes a grande divulgadora desse sucesso.  

Nat King Cole: o rei da música americana dos anos 50

Rose Esquenazi





         As estações brasileiras dos anos 40 aos 60 não tocavam apenas música nacional. Diversos hits internacionais, em inglês, francês, espanhol e italiano, fizeram muito sucesso por aqui. Havia democracia musical nas rádios. Alguns cantores e grupos estrangeiros não saíam das paradas de sucesso da Rádio Mundial, Tamoio, Nacional e Tupi. Frank Sinatra, Bing  Crosby, Pat Boone,Tony Bennett, Four Aces, Dean Martin eram famosos por aqui. Hoje vou falar de uma dessas estrelas: Nathaniel Adams Coles, o Nat King Cole, com sua deliciosa voz, belo timbre e afinação perfeita. Em 1954, ele ficou em terceiro lugar com a música Blue Gardenia. Era comum, na época, que esses hits ganhassem versões em português. Cauby Peixoto, por exemplo, brilhou na Nacional cantando a mesma Blue Gardenia.

           Nat King Cole veio ao Brasil em 1959 e lotou o estádio do Maracanazinho, o Tijuca Tênis Clube e o Copacabana Palace. Os fãs compravam seus discos. Ele também gravou em espanhol e, algumas músicas, em português. Era, também, popular no cinema e frequentava as páginas da imprensa. Ninguém imaginava que ele sofria preconceito por ser negro na América segregada.  O racismo, muito ativo, obrigou que ele passasse por difíceis provas. E ele sempre enfrentou com dignidade as agressões, tentando o diálogo e a conciliação. Segundo os estudiosos, fez mais pelo movimento negro do que muitos militantes que queriam partir para o confronto.

      Há uma gravação de 1964 chamada l.o.v.e., muito bonita como tantas obras que Nat interpretou. O cantor nasceu em Montgomery, Alabama, em 17 de março de 1919. Filho de Edward, açougueiro e, ao mesmo tempo diácono da Igreja Batista, costumava frequentar a igreja, onde cantava no coro. Aprendeu a tocar piano com a mãe, Perlina. O apelido King Cole veio de uma antiga música de criança chamda Old King. O nome artístico pegou para sempre. Na juventude, quando era um excelente pianista, Nat formou algumas bandas de jazz. Durante a Segunda Guerra, o King Cole Quartet ficou popular entre os soldados que ouviam discos gravados especialmente para eles.  
        
         Em 1943, Nat gravou seu primeiro sucesso, Straighten Up and Fly Right. A letra  era baseada em uma história que o pai costumava contar nos sermões. Nada menos do que 500 mil cópias foram vendidas dessa canção que, para muitos estudiosos, pode ter antecipado a onda rock n’ roll. O cantor preferia dizer que nunca foi roqueiro. Mas foi sem querer que ele começou a cantar em uma boate. Naquela noite o cantor faltou e, praticamente, obrigaram Nat King Cole a cantar. Ele tentou argumentar que era só um pianista. Mas não adiantou. Os frequentadores gostaram de sua voz. Observe a letra desse sucesso intitulado Nature Boy:
Havia um menino/Um menino muito estranho e encantado/Dizem que ele vagava muito longe, muito longe/Por terra e mar/
Um pouco tímido e de olhar triste/Mas muito sábio ele era/E, então, em um dia/Um dia mágico, ele passou pelo meu caminho/E enquanto falávamos de muitas coisas/Tolos e reis/Isso ele me disse/A única e maior coisa que você irá aprender/É simplesmente amar e ser amado em troca
           Nat King Cole passou a ganhar muito dinheiro com a sua música. Fazia shows, viajava e estava nas paradas de sucesso. Casou-se com a cantora Maria Cole e teve cinco filhos, entre naturais e adotivos. A filha, Natalie Cole, se tornou famosa intérprete. Na infância, ela costumava acompanhar o pai na Capitol Records, durante as sessões de gravações de discos.
           Para a família, a questão da negritude esteve sempre muito presente, desde o tempo em que Nat tocava em cassinos em Las Vegas, e era obrigado a ficar hospedado em hotéis de péssima categoria, só por ser negro. Ou de ter que entrar pela porta de serviço quando era contratado para tocar em algum hotel requintado. Nat King Cole ficou amigo de grandes músicos. Um desses, Frank Sinatra, se recusava a ficar em um hotel onde Nat era proibido de se hospedar.
          O cantor resistiu a muitas agressões porque era uma pessoa centrada. Ao  decidir comprar uma casa em um belo condomínio em Los Angeles, em 1948, ele levou um susto. Os vizinhos supremacistas, alguns da KuKluxKlan, fizeram um movimento para retirá-lo dali. Na opinião deles, um negro desvalorizava o lugar.Chegaram a envenenar o cachorro da família e a queimar na grama a palavra negro. Nat manteve-se firme e, na reunião com outros moradores, ouviu que eles deveriam se livrar dos moradores indesejáveis. Ao ouvir isso, Nat disse que concordava: ele mesmo denunciaria se encontrasse uma pessoa indesejável no condomínio.
            Nat se recusava a se apresentar para as plateias segregadas nos Estados Unidos,  uma afronta para qualquer ser humano. Apesar de parecer tão calmo e equilibrado, o cantor extravasava as frustrações fumando três maços de cigarro por dia. Continuou gravando  um sucesso atrás do outro, como Mona Lisa, Stardust, Fascination, Unforgettable,  Christmas Song, o  tango Quizás, quizás, quizás e Noche de Ronda, das foram gravadas em espanhol.  
        Primeiro negro a ter um programa de televisão nos Estados Unidos, Nat King Xole conquistou a audiência. Os empresários perceberam como ele era querido nas casas noturnas e quiseram mostrá-lo na TV, para todos aqueles que não podiam pagar couvert artístico. The Nat King Cole Show estreou na NBC-TV em 1954 e e seu programa teve dois anos de duração.  A atração reunia grandes nomes da música americana e era muito bem estruturada. Chegou a obter grandes audiências na época. Mesmo assim, gerou críticas justamente por ter um apresentador negro. Por falta de patrocínio de âmbito nacional, claramente motivado por racismo, o programa foi cancelado.
           Nat passou a trabalhar mais no cinema. Segundo os críticos, ele não atuava tão bem quanto cantava e tocava piano. Ele esteve no elenco de A Gardenia azul, de 1953, No Umbral da China, de 1957, Istambul, de 1957, Lamento negro, de 1958, e Dívida de sangue, de 1965, entre outros.
         Quando cantava Little Girl, em um palco no Alabama, em 1956, Nat King Cole foi atacado por três homens de um grupo supremacista, que tentaram sequestrá-lo. Os seguranças agiram rápido, mas o cantor chegou a cair e se machucou. Depois disso, nunca mais quis se apresentar no Sul dos EUA. No mesmo ano de 1956, mais uma vez, agora em Cuba, no tempo da ditadura de Fulgencio Batista, Nat foi proibido de se apresentar no bar do Hotel Nacional. Negros não entravam ali. Mas no Tropicana, também em Cuba, fez grande sucesso.
         Nat King Cole chegou ao Brasil no dia 15 de fevereiro de 1959. Os fãs foram recebê-lo no Galeão com várias faixas de boas-vindas. O rei da noite carioca, Carlos Machado, da boate Night and Day, também estava lá para prestar as homenagens ao talento internacional. Para os repórteres, Nat disse que estava sem tempo para conhecer Brasília, que seria inaugurada poucos meses depois, em abril de 1960. Nat veio acompanhado da mulher, Maria, seguindo uma excursão pela América Latina. Na reportagem do Globo, o texto se refere a ele como colored, um eufemismo para negro. O jornal publicou uma foto de Nat cantando e tocando a música Fascinação no piano  para o presidente Juscelino Kubitschek. Mais tarde, foi com sotaque carregado que ele gravou Ninguém me ama, em português
          Provavelmente poucas pessoas das novas gerações ouviram falar de Nat King Cole. Uma pena. Fazemos aqui uma homenagem ao cantor que morreu em 1965, em Los Angeles, vítima de câncer. Ele tinha apenas 46 anos.  Em 1991, a filha dele, Nathalie Cole. decidiu se arriscar. Pediu que os engenheiros de som recuperassem a gravação de Unforgetablle, de 1951. E fez um duo com o pai, lançando a novidade em 1991. No ano seguinte, graças a essa gravação feita com Nat, que havia morrido 26 anos antes, Nathalie ganhou quatro prêmios Grammy. Ela morreu aos 65 anos, em 2012, deixando a homenagem considerada mágica e transcendente.



Os amores de Noel Rosa


Rose Esquenazi



  
          Sempre é bom falar sobre Noel Rosa, ainda mais quando há uma efeméride. Há 80 anos, em 2016, Noel nos deixou, com apenas 26 anos de idade. A obra de sua autoria é espetacular. Vamos contar um pouco sobre os amores do Poeta da Vila que viveu grandes romances, namoricos e paqueras. O compositor foi um intenso  namorador, apaixonado pelas mulheres. Pesquisando em livros, como o de João Máximo e Carlos Didier, e em sites, como o de Luís Nassif, descobrimos que Noel Rosa gostava de viver a noite, bebendo e cantando com os amigos, onde quer que fosse. Podia ser na Lapa, Mangueira, Gamboa, Glória ou em seu bairro de origem: Vila Isabel. Em todos esses lugares, ele encontrou mulheres como Clarinha, Fina,  Julinha, Lindaura, Ceci, quase todas transformadas em musas inspiradoras. Dizem os biógrafos, e não são poucos, que a primeira namorada de Noel foi Clarinha, Clara Corrêa Neto. Para a namorada da juventude ele compôs Não morre tão cedo. A música ficou inédita até ser gravada por Vânia Bastos, em 1992. Até o fim da vida, segundo o jornalista João Máximo, Clarinha foi apaixonada por Noel.

          O namoro não resistiu às mentiras de Noel. Assim que ele saía da  casa de Clara, na Rua Barão do Bom Retiro, em Vila Isabel, ele ia direto para a de  Josefina Teles Nunes (Fina), na Rua Moju, no mesmo bairro. Fina perdeu o pai e teve que trabalhar para ajudar a sustentar a família. Noel havia comprado um carro de segunda mão e perseguia a moça pelos bairros da Tijuca e Andaraí. Fina não disse exatamente onde estava trabalhando e, certo dia, quando o compositor a viu perto da Fábrica de Tecidos Aliança, deduziu que era lá. Só que Fina tinha ido levar comida para irmã, também operária. Fina cumpria horário em outra fábrica: a de botões Hachiya. Três apitos tanto fala de Fina quanto da vida no subúrbio dos anos 30. Os apitos das fábricas funcionavam para despertar e sinalizar o começo e o fim do expediente. Na interpretação de Aracy de Almeida, uma das prediletas intérpretes das músicas de Noel, Três apitos só foi gravada em 1951, 14 anos depois da morte do compositor. Ah, ele nunca namorou Aracy.

             Noel Rosa não era um rapaz bonito, longe disso. Franzino, com defeito no queixo, marca do nascimento a fórceps, mesmo assim, ele conseguia conquistar as meninas. O maior charme era compor músicas divertidas e curiosas com   grande facilidade. Com Prato Fundo, ele conquistou os familiares de Fina. Quando o convidavam Noel para jantar. O rapaz com queijo defeituoso mentia: “Já jantei, obrigado”. Na verdade, ele quase não comia e ficava horrorizado ao ver a quantidade com a qual os parentes da namorada se serviam em pratos fundos. Vamos ouvir Prato Fundo na voz de Almirante, o grande amigo de Noel e integrante dos dois primeiros grupos musicais que eles formaram na juventude: o Flor de Tempo e o Bando dos Tangarás.

           Noel começou a frequentar as casas noturnas da Lapa. Ele já estava fazendo carreira sozinho e ganhava algum dinheiro. Em uma dessas casas noturnas, ele conheceu uma mulher mais velha, Júlia Bernardes. Julinha trabalhava em diferentes cabarés e se tornou próxima do compositor. Eles namoravam em um barracão na Penha, local afastado dos olhares da mãe de Noel. Para Julinha, ele compôs Meu barracão e Cor de cinza.  Eles se amavam, mas brigavam bastante. Tanto que, um dia, Julinha jogou o violão de Noel nas águas de um rio. Os críticos até hoje não sabem se a música Pra esquecer teria sido feita para Julinha. Em uma entrevista para a revista Carioca, Noel teria negado essa possibilidade. Um dos versos diz: “a luva no carro é um documento daquela que me esqueceu”. Aracy de Almeida interpreta Cor de cinza, música que está no YouTube.

          Na primeira participação que fiz para o seu programa, há mais de três anos, colocamos para tocar uma entrevista de Lindaura Pereira da Mota. Ela foi a única mulher que se casou com Noel, só que na polícia. Há controvérsia sobre a idade que a moça tinha nessa ocasião, 13 ou 17? O fato é que a mãe de Lindaura descobriu que ela havia transado com o compositor, talvez estivesse grávida. Foram todos para a chefatura de polícia e selaram o compromisso na marra. Parece que tudo começou em um hotel na rua Senador Euzébio, perto da Praça Onze. Só que na ocasião caiu uma forte chuva na cidade e o casal não conseguiu sair de lá.

              Noel não gostava da ideia de casamento, sempre disse isso. Certa vez, disse que preferia ser preso a se casar. Mas não foi isso que aconteceu com Lindaura. Ele foi se encontrar com Clarinha e pediu desculpas. Para Clarinha, ele compôs, Não morre tão cedo. Nos versos, Noel revela que “uma pessoa tão boa, tão boa, que até dormindo, perdoa”. Já para Lindaura, Noel escreveu Cansei de pedir porque ele queria sumir daquele casamento infeliz. O poeta é claro:
Já cansei de pedir / Pra você me deixar / Dizendo que não posso mais /
Continuar amando / Sem querer amar / Meu Deus, estou pecando /
Amando sem querer... Me sacrificando sem você merecer!
Amar sem ter amor é um suplício / Você não compreende a minha dor /
Nem pode avaliar / O sacrifício que eu fiz / Para você ser feliz!
          O drama ficou maior quando Noel Rosa conheceu a moça que vinha de Campos, a Ceci. Juraci Correia de Moraes tinha 16 anos, era bonita e era dançarina de Cabaré Apolo, na Lapa. O compositor ficou apaixonadíssimo e Lindaura acabou sabendo, o que acabou gerando brigas. Lindaura, certa vez, pediu dinheiro para fazer um vestido. Noel sugeriu que ela fosse trabalhar fora. A música Você vai se quiser, que tem uma letra dúbia:
Você vai se quiser / Pois a mulher / Não se deve obrigar a trabalhar / Mas não vá dizer depois / Que você não tem vestido / Que o jantar não dá pra dois.
Noel também compôs Cem mil réis, com Vadico, seu grande parceiro, para falar sobre dinheiro para fazer um soirée, vestido de noite.
 Você me pediu cem mil réis / Pra comprar um soirée / E um tamborim / O organdi anda barato pra cachorro / E um gato lá nomorro, / Não é tão caro assim.
Sei que você / Num dia faz um tamborim, / Mas ninguém faz um soirée / Com meio metro de cetim / De soirée / Você num baile se destaca / Mas não quero mais você, / Porque não sei vestir casaca.
           A dureza se tornou uma realidade, afinal, Noel Rosa agradava Ceci com mimos e sustentava Lindaura. Só que Ceci não quis a oferta de um apartamento para viver com Noel. Ela preferia a liberdade, conhecer outros rapazes e foi assim que namorou Wilson Batista. De Campos, como ela, Wilson era grande compositor que conseguiu mexer com os brios dos compositores da época.  
            Lenço no pescoço fazia uma ode aos malandros, o contrário do que Getúlio Vargas pregava em sua política. Para tentar mostrar que compositores podiam ser pessoas sérias, Noel respondeu com Rapaz Folgado. Sem querer, Noel legitimou a compositor desconhecido e deu início à primeira disputa musical do rádio brasileiro. Noel trabalhou em diferentes emissoras, como a Rádio Club do Brasil, Rádio Philips e Educadora. Foi contrarregra, criador de jingles e autor de embolados e fazia grande sucesso no Programa Casé. Já falamos sobre esse tema aqui no blog radionahistoria.blogspot.com.br.
           Wilson Batista e Noel Rosa chegaram a compor uma música juntos para mostrar como Ceci era volúvel. Em Deixa de ser convencida, em 1936, a letra diz assim:                                  
Deixa de ser convencida / Todos sabem qual é / Teu velho modo de vida.
És uma perfeita artista, eu bem sei, / Também fui do trapézio, / Até salto morta l
No arame eu já dei. / (Muita medalha eu ganhei!) / E no picadeiro desta vida /
Serei o domador, / Serás a fera abatida. / Conheço muito bem acrobacia /
Por isso não faço fé / Em amor, em amor de parceria.
          Mesmo assim, machucado, Noel escreveu lindas músicas pra Ceci: Dama do Cabaré, Pra que mentir, com Vadico, onde ele explicita que morre de ciúmes dela e que ouvimos no início do quadro.

Pra que mentir / se eu sei que gostas de outro / Que te diz que não te quer? / Pra que mentir / Tanto assim / Se tu sabes que eu sei / Que tu não gostas de mim?! / Se tu sabes que eu te quero / Apesar de ser traído / Pelo teu ódio sincero / Ou por teu amor fingido?!

           Quantos beijos e Último desejo estão na lista da Ceci. A última canção seria uma espécie de testamento, quando Noel já estava bem mal, sofrendo de tuberculose. Ele chamou Vadico, pianista e seu parceiro, e pediu que ele entregasse a música para Ceci, depois de escrever as cifras. Vadico encontrou a jovem na boate Caverna e disse assim: “Noel me pediu para te entregar. Acho que ele te castiga um pouco neste samba, Ceci”.

Nosso amor que eu não esqueço, / que teve seu começo, / Numa festa de São João, // Morre hoje sem foguete, / Sem retrato e sem bilhete, / Sem luar, sem violão.

           Ouça no YouTube uma homenagem que Hermínio Bello de Carvalho fez, em 1987, para Noel Rosa. 

Ele diz que tem: Vicente Paiva


Rose Esquenazi







          Poucos conhecem a obra de Vicente Paiva, grande compositor e também maestro, arranjador e pianista. O sambista compôs a música  Ela diz que tem, interpretada por Carmem Miranda, foi sucesso absoluto. Nascido em São Paulo, em 18 de abril de 1908, Vicente Paiva Ribeiro começou a carreira em 1926, em Santos, como pianista. Atraído pelas oportunidades da Capital Federal, mudou-se para o Rio de Janeiro onde se empregou na orquestra de Simon Bountmann. Do piano passou à interpretação: tornou-se cantor e gravou sambas  como Beijar não é pecado, de Oscar Cardona, e Machuca, de Donga e De Chocolate.
          Em 1936, tornou-se compositor, junto com Jararaca, criando uma das mais famosas composições do Carnaval de todos os tempos: Mamãe, eu quero mamar. Não vou incluir aqui a versão original porque todo o mundo já ouviu. Mas, a história dessa música, talvez poucos conheçam. José Luis Rodrigues Calazans, o Jararaca, foi uma criança que quis mamar até ser um garoto bem crescido e esse fato ficou em sua memória. Quando tentava uma oportunidade no Rio de Janeiro encontrou Vicente Paiva que se tornou seu parceiro. Os dois lançaram a marcha em 1937 e fizeram tanto sucesso que  a música ganhou uma versão feita pelo americano Bing Crosby ganhando as paradas de sucesso nos Estados Unidos. I want my mama foi parte da trilha sonora do filme Serenata tropical, de Carmem, em 1941. 
          Mamãe, eu quero  também ganhou versões até em árabe, hebraico, francês, espanhol e numa língua nativa do Taiti. Outras músicas de Vicente Paiva foram gravadas por Carmem Miranda, a primeira grande estrela do rádio brasileiro, a  primeira a ganhar cachê, na Rádio Mayrink Veiga e depois na Rádio Tupi. Antes mesmo da temporada nos Estados Unidos, a Pequena Notável gravou com o Conjunto Odeon, em 1940, o chorinho Disso que eu gosto, de autoria de Vicente e Luis Peixoto.

         A grande fase profissional de Vicente Paiva foi como diretor musical do Cassino da Urca. De 1934 a 1945, a Urca competia com os cassinos Atlântico e Copacabana Palace. Por isso, houve grandes investimentos para que o Cassino da Urca  se tornasse um lugar glamouroso e contratasse famosos  cantores e músicos da Rádio Nacional. Mas não foi só isso: era preciso fazer shows impactantes que poderiam estar à altura da Broadway de Nova York. Entre um show ou outro, os frequentadores endinheirados experimentavam uma carne maravilhosa feita no Grill e, lógico, apostavam alto no jogo. Nos arranjos e comando de uma das orquestras, muitas vezes estava Vicente Paiva.
          Em 1935, ele compôs Marcha do Cordão da Bola Preta, com Nelson Barbosa. Até hoje, no Carnaval, milhares de pessoas saem no Cordão e sabem de cor a letra da música, chamada também de Segura a chupeta e diz assim:

         Quem não chora não mama! / Segura, meu bem, a chupeta / Lugar quente é na cama / Ou então no Bola Preta //// Quem não chora não mama! / Segura, meu bem, a chupeta //// Lugar quente é na cama / Ou então no Bola Preta. //// Vem pro Bola, meu bem / Com alegria infernal! / Todos são de coração! / Todos são de coração / Foliões do carnaval /// Sensacional!.
          Carmem Costa gravou a música em 1962.

          O maestro Vicente Paiva notou que sempre havia alguém cantando Happy Birthday nas mesas do Casino da Urca quando algum americano fazia aniversário. Achou a música suave, fácil de guardar na cabeça. Passou a tocar sempre que alguém comemorava aniversário no Cassino. Em 1942, o radialista Almirante, que trabalhava na Rádio Tupi, decidiu fazer um concurso para escolher a melhor letra de uma possível versão brasileira  para a música Parabéns pra você. Cinco mil participantes mandaram as suas letras para a emissora de Chateaubriand e acabou vencendo Bertha Celeste Homem de Mello, paulista de Pindamonhangaba.
         Vicente Paiva se casou com Amália e os dois ficaram muito amigos do casal Dalva de Oliveira e Herivelto Martins.  Juntos, eles fizeram temporadas pelo país e puderam ver o casamento de Dalva e Herivelto entrar em crise e acabar dramaticamente. Para Dalva, Vicente Paiva compôs uma das mais bonitas músicas de seu repertório: Olhos verdes. Dalva tinha olhos verdes.
          Muitos anos mais tarde, Gal Costa ficou conhecida por interpretar essa mesma música,  mas não de forma tão dramática ou lírica como Dalva. A letra escorrega em algumas palavras como cambucais, cismadores e por aí vai, mas a orquestração é perfeita revelando um Brasil com autoestima alta. Em 1961, Olhos verdes participou de um Festival de Berlim, a convite da República Federal da Alemanha.  Atenção para a letra de poesia estranha:
           
Na Graça Toda das Palmeiras / Esguias Altaneiras a Balançar / São Da Cor Do Mar Da Cor Da Mata / Os Olhos Verdes Da Mulata / Tão Cismadores e Fatais, Fatais / E Num Beijo Ardente Perfumado / Conserva o Cravo Do Pecado
Dos Saborosos Cambucais.
         
          Quando Carmem Miranda voltou ao Brasil, depois do primeiro ano nos Estados Unidos, a cantora sofreu uma espécie de bullying  da elite do Cassino da Urca. Achavam que ela havia se vendido para os americanos, não suportavam vê-la ganhando em dólares e fazendo mais sucesso do que eles.

           Atendendo um pedido de dona Alzira Vargas, Carmem cantou em um show beneficente no Cassino e conseguiu pouquíssimos aplausos dessa classe de pessoas identificadas com os ideais nazifascistas. Enquanto Carmem esperava por novo contrato americano, o dono do Cassino, Joaquim Rolla, pediu que os compositores criassem obras para mostrar que a cantora continuava sendo muito brasileira. Duas delas vieram da safra de Vicente Paiva, a que ouvimos no início do quadro, Ela diz que tem, com Aníbal Cruz, e Disseram que voltei americanizada, com Luis Peixoto.
           Quando o presidente Dutra proibiu os cassinos no Brasil, em 1946, todos os artistas e funcionários ficaram desempregados do dia para a noite. Muitas pessoas entraram em desespero, mas não Vicente Paiva. Nas minhas pesquisas, descobri que ele se tornou taxista, abandonando a carreira musical.

         No mesmo ano de Olhos Verdes,  em 1951, Vicente Paiva produziu outro mega sucesso para Dalva de Oliveira: Ave Maria, com Jaime Redondo. Era costume as estações de rádio de antigamente incluírem às 18h uma música religiosa. A tarde caía, a noite chegava, nada melhor do que agradecer por mais um dia de vida. A Rádio Jornal do Brasil, por exemplo, tinha um clássico de Dunshee de Abranches chamado Ave Maria, que ficou muito popular. Mas a Ave Maria de Vicente Paiva na voz de Dalva marcou muito. Vicente Paiva morreu aos 58 anos, em 18 de fevereiro de 1964. Era pai da vedete Dayse Paiva.