domingo, 7 de janeiro de 2018

Aracy Cortes: A Primeira Artista do Rádio

Rose Esquenazi






                Zilda de Carvalho Espíndola, conhecida como Aracy Cortes, foi, nos anos 20,  uma pioneira no rádio. Tornou-se a primeira voz feminina em uma era em que só os homens costumavam aparecer no novo meio de comunicação. As músicas que ela gravava começaram a ser tocadas nas estações quando elas ainda estavam se consolidando. A Rádio Sociedade foi primeira estação inaugurada, em 1923, no Rio. Depois vieram a Rádio Club do Brasil, a Philips e a Jornal do Brasil. A artista não trabalhava efetivamente em uma estação, mas estava presente com suas interpretações. Na parada de sucesso de 1932, ela estava lá com a música Que é que...? Em 1935, foi eleita a Melhor Artista do Rádio, em um concurso promovido pelo jornal Gazeta de Notícias.

            Mas quem foi Aracy Cortes? Nascida no bairro do Estácio, no Rio de Janeiro, em 31 de março de 1904, era filha de um chorão conhecido, Carlos Espíndola. Ficou órfã muito mocinha e se mudou para o Catumbi com a madrinha muito exigente. Era vizinha do músico Alfredo da Rocha Vianna Filho, o Pixinguinha, sete anos mais velho do que ela. Com seu grupo musical Oito Batutas, ele influenciou a jovem. Para se livrar do rigor, Aracy foi trabalhar no Circo Democrata, na Praça Tiradentes, em 1921. |Ali começava a carreira artística. Acabamos de ouvir a interpretação de Aracy Cortes para Linda flor (Ai, iô, iô). De autoria de Henrique Vogeler, Marques Porto e Luiz Peixoto, já havia sido gravada antes. Mas obteve atenção quando Aracy impôs certas mudanças na música.  Sem querer, ela inaugurava um tipo diferente de samba, o samba-canção, mais sentimental. Isso aconteceu em 1928, em uma revista chamada Miss Brasil, de Marques Porto e Luiz Peixoto. Tornou-se popular a letra:
Ai, Ioiô/Eu nasci pra sofrer/Fui olhar pra você, meus olhinhos fechou
E quando os olhos abri, quis gritar, quis fugir/Mas você, eu não sei por que/
Você me chamou
Ai, Ioiô/Tenha pena de mim/Meu Senhor do Bonfim pode inté se zangá/Se ele um dia souber/Que você é que é, o Ioiô de Iaiá
Chorei toda noite, pensei/Nos beijos de amor que te dei/Ioiô, meu benzinho do meu coração/Me leva pra casa, me deixa mais não/Ai, Ioiô/Tenha pena de mim/Meu Senhor do Bonfim pode inté se zangá/Se ele um dia souber/Que você é que é, o Ioiô de Iaiá
         Segundos os sites Itaú Cultural e Dicionário Cravo Albin de Música Popular Brasileira, Aracy conseguiu uma proeza naqueles anos 20 e 30. Deixou de lado a influência francesa do gênero teatral e passou a mostrar as características brasileiras no teatro de revista que estava florescendo na Praça Tiradentes. Revelando partes de seu lindo corpo, algo raríssimo nos anos 30, Aracy chegou a posar nua em uma capa de disco segurando um violão. O instrumento considerado marginal escondia os seios. Ela também não tinha vergonha de falar palavrões e de cantar músicas com duplo sentido. Isso, muito antes da comediante Dercy Gonçalves. O público gostava e lotava os vários teatros na Tiradentes para curtir Aracy. Ouça a música Moreno, de Custódio Mesquita, no YouTube.

        Essa interpretação aconteceu na Sala Funarte, em 1982. Na apresentação, a cantora Marília Batista apresentou Aracy Cortes, como “a Rainha dos Brilhantes”, “a Rainha dos Artistas”, “a Rainha das Atrizes”, “a Imperatriz absoluta da Praça Tiradentes”. Ela viria a falecer dois anos depois, aos 80 anos, no Rio de Janeiro. Vamos começar novamente. Depois do circo, Aracy estreou oficialmente no Teatro Recreio, em 1921, aos 17 anos. A revista se chamava Nós pelas costas, de J. Praxedes. A obra fazia uma crítica àqueles que têm opiniões diferentes, na frente e por trás das pessoas. Falava de falsidade, certamente.  A moça ainda se chamava Zilda e logo ganhou o rótulo de “figurinha brasileira petulante”. O jornalista Mário Magalhães achou que Zilda não combinava com a artista e sugeriu o pseudônimo de Aracy, no jornal A Noite. Pegou o apelido.

           Aracy passou a ser convidada para muitas outras revistas na Praça Tiradentes, na época, lugar muito movimento com seus dancings e teatros. A sua voz fininha e afinada agradava em cheio. Nas gravações mecânicas feitas em cera pela Casa Edison, em estúdio ao ar livre, antes das gravações elétricas, ela estourou antes mesmo de Carmem Miranda. Ouçam essa raridade, No toco da goiaba, de 1929, que ela interpretou junto com Francisco Alves, também jovem na época.

  
           Morena de cabelos crespos, Aracy sabia mexer com o corpo e com os olhos, sempre cheios de segundas intenções. O Rio de Janeiro era uma cidade bastante conservadora, os tempos eram outros.  E ela fazia a diferença. Certa vez, ela e as meninas, chamadas de girls, estavam cantando o fox-trot Febre azul, de Ary Barroso. A ordem da produção era borrifar água de colônia nos homens que se sentavam nas primeiras fileiras do teatro. Era uma espécie de merchandising da perfumaria. Eles costumavam ir sozinhos ao teatro deixando as mulheres em casa. Deu tanta confusão que o quadro foi proibido. Afinal, não dava para disfarçar aquele cheiro de perfume quando os maridos voltavam para casa. Onde eles tinham ido, afinal?
    
          Como disse antes, Aracy fez parte das primeiras vozes que cantaram no rádio. Além dela, estavam na lista Francisco Alves, Silvio Caldas, Carmem Miranda, que se tornaram  ídolos do público. Na programação dos anos 20, era comum colocar para tocar na vitrola os lançamentos ou mesmo receber os artistas que cantavam de graça. Aracy preferia o teatro e, pelo que pesquisei, não costumava ir pessoalmente às estações. A primeira a ganhar cachê fixo, e alto, foi Carmem Miranda porque todas queriam a Pequena Notável em seus programas musicais. Convivendo com os compositores populares, Aracy foi festejada ao interpretar Jura, o samba amaxixado, de Sinhô, e Tem francesa no morro, de Assis Valente.

        Valente era baiano e queria fazer carreira na música. Carmem já havia gravado o samba-choro Camisa listrada mas não quis saber da nova criação irreverente e divertida. Mas Aracy percebeu a brincadeira com a língua francesa aportuguesada. Em 1932, ela  gravou e apresentou a música do teatro, com muita repercussão.
  
Donnez-moi s'il vous plaît l'honneur de danser avec moi (Me dê a honra de dançar comigo)
Danse Ioiô/Danse Iaiá/Si vous frequentez macumbe entrez na virada e fini pour samba/Danse Ioiô/Danse Iaiá (Dance Ioiô; Danse iaiá. Se você frequenta a macumba e entra na virada e acaba dançando o samba)

Viens/Petite francesa/Dansez le classique/Em cime de mesa/Quand la danse commence on danse ici on danse aculá/Dance Ioiô/Dance Iaiá (Venha, pequena francesa, dance o clássico em cima da mesa). Si vous ne veux pas danser, pardon mon chéri, adieu, je me vais/Danse Ioiô
Danse Iaiá
(Se você não quer dançar, desculpe querida, adeus. Dance Ioiô; Danse iaiá).
           Em 1935, Aracy Cortes ganhou uma placa com os dizeres Rainha do Teatro, no Teatro Recreio. Nessa época, ela já tinha a sua própria companhia.  Era tão popular que se tornou "a melhor artista do Rádio", em um concurso promovido pelo jornal Gazeta de Notícias, em uma festa no Teatro Carlos Gomes. Esse acontecimento foi anterior à criação do concurso Rainha do Rádio promovido pela Revista do Rádio, evento que se tornou famosíssimo.

           Na revista teatral Entra na faixa, escrita por Ary Barroso, em 1939, Aracy Cortes interpretou Aquarela do Brasil. Mas ainda há uma polêmica sobre isso, será que não foi Francisco Alves o primeiro a gravar? Não importa muito. É mais complicado descobrir por que ela passou 20 anos sem gravar. Entrava em declínio o teatro de revista, a televisão já tinha sido inaugurada. Aracy Cortes só voltou em 1953, com o samba-canção Flor do lodo, de Ari Mesquita. Naquela época, a mulher que bebia com homens no bar estava marcada para sempre. A letra diz assim:
Flor do lodo/Mulher de baixos costumes/Ninguém ouve os meus queixumes/Ninguém vê meu padecer/Meu lar é o botequim na esquina/Que frequento desde menina/Para com os homens beber
A mulher com o destino mal traçado/Meu atos são meu pecado/E a razão do meu sofrer/Só tu que traído por alguém/Compreendes meu viver/Porque és do lodo também
          Em 1965, Aracy Cortes foi chamada para atuar no show Rosa de Ouro, organizado por Hermínio Bello de Carvalho e Kleber Santos. Ao lado dela estavam Clementina de Jesus, Elton Medeiros, Jair do Cavaquinho, Nelson Sargento e Nescarzinho do Salgueiro. Em 1984, 19 anos depois, a  Funarte lançou o LP Aracy Cortes, uma coletânea com depoimentos da cantora e um livro de autoria de Roberto Ruiz.  Naquele ano em que faria 80 anos, a Sala Sidnei Miller da Funarte homenageou a cantora com o show biográfico que eu citei no início do quadro. O interessante é ver que ainda hoje os cantores gravam Linda Flor. Não podemos nos esquecer da cantora Aracy Cortes a grande divulgadora desse sucesso.  

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