sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Luiz Gonzaga, o Rei do Baião

17/08/2015
 Rose Esquenazi

Luiz Gonzaga e a sua sanfona




O crítico Ricardo Cravo Albin costuma dizer que Luiz Gonzaga foi um dos maiores artistas brasileiros de todos os tempos. Não era “só o melhor entre todos os cantores de alma sertaneja, mas também o mais importante cantor-músico-compositor que o Nordeste já produziu”.  Gênio que ele compara a Ary Barroso, Pixinguinha, Tom Jobim ou Chico Buarque.

Mas não foi fácil a vida de Luiz Gonzaga do Nascimento até ser aceito pelo público e pela crítica.  O músico nasceu no dia 13 de dezembro de 1912 na cidade de Exu, Pernambuco. Em 1939, ao completar dez anos de exército, teve de dar baixa. Não era permitido ficar mais do que esse tempo. No mesmo ano, embarcou para o Rio de Janeiro, voltou para Pernambuco e, não muito tempo depois, estava novamente no Rio de Janeiro. Para sobreviver, passava o chapéu para arrecadar uns trocados nos bares da zona do baixo meretrício depois de tocar não as músicas sertanejas que aprendeu com os amigos do Exército. Tocava as músicas da moda na sanfona de 120 baixos que havia comprado.

A vida no Rio de Janeiro, onde pretendia ficar conhecido, era mesmo muito difícil. Em 1940, para sobreviver, procurou uma oportunidade nos programas de calouros. Não foi bem sucedido no Calouros em desfile, de Ary Barroso, na Rádio Tupi, e no Papel carbono de Renato Murce, na Rádio Clube. Até que, um dia, no Bar Cidade Nova, no Mangue, estudantes cearenses pediram que ele tocasse música nordestina.  Ele já tinha até esquecido.  Voltou para seu humilde quarto e passou a se lembrar dos velhos ritmos nordestinos. Outra vez, no bar, um fato inesperado aconteceu. Juntou gente da rua para ouvirVira e mexe. O bar ficou lotado. Ouça Vira e mexe, também conhecida como Xamego, que marcou tanto a carreira de Luiz Gonzaga.

Ao se apresentar novamente no programa Calouros em desfile, obteve a nota máxima,5, raramente dada a alguém pelo exigente Ary Barroso. Além disso, ganhou o prêmio de 150 mil réis. O xamego virou uma espécie de ritmo diferente e o pessoal gostou muito.Vira e mexe ganhou o título, mais tarde,de Xamego, uma ideia do irmão de Gonzaga que achava que a música era muito sensual, da maneira como era tocada. 

Gonzaga se inspirou no gaúcho Pedro Raimundo, um sujeito alegre, que se apresentava como sulista no rádio.  Decidiu imitá-lo. Na Rádio Nacional, apresentou a novidade, foi aceito, mas o figurino nordestino rejeitado. O diretor Floriano Faissal disse que ali não era “casa de cangaceiro”. O artista teria que vestir um summer, traje formal que não tinha nada a ver com a sua música.  Aos poucos, porém, se acostumaram com o traje e com o fato de Luiz Gonzaga ter abandonado as valsas, os tangos e os foxtrotes que apresentava antes para agradar o público do rádio.  E também o seu jeito de cantar só foi aceito aos poucos, a duras penas.

A partir dos anos 1943, ele passou a interpretar choros,xotes, calangos, mazurcas. O encontro dele com o advogado Humberto Teixeira abriu-lhe novos caminhos. Lançaram Baião, gravada com o famoso grupo vocal Quatro Azes e Um Coringa, acompanhado pela sanfona de Gonzaga. O cearense Humberto Teixeira percebeu o grande talento de Lua, apelido que ganhou por ter uma face redonda como a lua cheia. Segundo o site do Dicionário Albin de Música Brasileira, “o novo gênero mudou o panorama musical brasileiro e impôs-se como o mais importante até o surgimento da Bossa Nova em fins dos anos 1950”. Ouça a música Baião.

Em 1943, Luiz Gonzaga assinou o primeiro contrato para atuar fora do Rio de Janeiro, fazendo uma temporada no Cassino Ahu, em Curitiba. Começou a ser chamado de “o maior acordeonista do Brasil”. Nesse ano também ganhou o apelido "Maior Sanfoneiro Nordestino”, dado pelo jovem radialista César de Alencar.

Em 1947, com o mesmo parceiro Humberto Teixeira, compôs o maior sucesso de todos os tempos: Asa branca, que ouvimos no início do quadro.Regravada inúmeras vezes, continua sendo sucesso na atualidade. Depois, Luiz Gonzaga foi convidado a participar do filme Esse mundo é um pandeiro, de Watson Macedo.
O Rei do Baião tornou-se o principal astro da música popular brasileira. Assim, em 1949, é convidado para fazer parte do elenco da comédia musical O mundo se diverte da Atlântida, com a polca Lorota boa, parceria de Teixeira. E também na comédia musical Estou aí, da Cinédia, com a música Mangaratiba.Gonzagão teve outros parceiros importantes como Zédantas e costumava frequentar tanto a Rádio Nacional quanto a Mayrink Veiga.

Em 1949, lançou com Zédantas, como o baiãoVem morena e o forró Forró de Mané Vito. O baião era tocado em todos os lugares. Na sua indumentária, ele passou a usar um chapéu de couro, que mandou vir do Nordeste.  Em 1950 lançou de sua parceria com Zédantas o baião A dança da moda, que afirma que "No Rio está tudo mudado", numa referência às mudanças de comportamento introduzidas pelo baião.
Em 1951, a cantora Carmélia Alves ficou conhecida como a Rainha do Baião. Já havia uma grande divulgação do estilo de Gonzaga. Carmélia e Sivuca, por exemplo, lançaram o disco No mundo do baião, com vários sucessos do sanfoneiro. Ouça Xote das meninas.

Apesar de tudo, Luiz Gonzaga passou por várias fases, altos e baixos. Quando precisava de mais dinheiro, participava de campanhas políticas e também atuava como músico de estúdio. Trabalhou em teatro de revista e programas de rádio, como Alma do sertão. Tocava nos dancings no centro da cidade, como Farolito, Eldorado, Assírio, Belas Artes.

Os anos 60 não foram muito felizes para Luiz Gonzaga. A música estava mudada, o rádio perdia força para a TV. Sofreu um grave acidente, teve traumatismo craniano e ferimento num olho. Ainda gravou outros discos. Em 1964, lançou outro LP A triste partida, de Patativa do Assaré. Os críticos viram ali um manifesto sertanejo.

Em 1968 lançou três LPs, entre eles, O sanfoneiro do povo de Deus, com inspiração religiosa. Nesse mesmo ano, Gilberto Gil, um dos líderes do movimento intitulado Tropicália, disse ter sido Luiz Gonzaga "a primeira grande coisa significativa do ponto de vista da cultura de massa no Brasil". Caetano Veloso fazia também questão de elogiar o cantor, compositor e sanfoneiro nordestino.

Em 1981, chegou às lojas o álbum duplo Vida do viajante, gravado ao vivo durante a excursão pelo Brasil feita com o filho Gonzaguinha no ano anterior. Os dois brigavam muito porque tinham comportamentos muito diferentes. Filho de uma dançarina de cabaré, Odaléa, foi assumido por Gonzaga.  O filme de Breno Silveira, Gonzaga de Pai para Filho, de 2012, mostra bem esses conflitos, depois contornados. Durante essa excursão, Gonzaga ganhou o apelido de Gonzagão, que muitos críticos acham inapropriado. A ideia surgiu a partir de uma faixa colocada em um show em São Paulo que dizia: “Gonzagão e Gonzaguinha, a maior dupla sertaneja do Brasil”.


Só para marcar a data: ele morreu no dia 2/8, de 1989, no Recife, aos 76 anos. Para terminar, ouça O xamego da Guiomar.

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

A Rádio MEC e a Música Popular Brasileira


Rose Esquenazi
Ouça aqui: http://radios.ebc.com.br/sites/_radios/files/episodios/2015-08/1108-50radio-mec-am-tambem-nos-anos-1970-casa-da-mpb.mp3?download=1



No dia 7 de setembro, a Rádio MEC comemora 79 anos. A emissora, que passou por várias fases, abrigou e ainda abriga inúmeros programas musicais. Hoje vamos falar sobre um deles, os '100 anos da Música Popular Brasileira Ao Vivo'.  Parte do Projeto Minerva, a atração lançava e valorizava as histórias e a interpretação de músicos populares. A criação, o texto, os convites, as pesquisas e a narração eram do escritor, radialista, historiador, crítico e pesquisador de MPB, Ricardo Cravo Albin. Eu conversei com ele na quarta-feira da semana passada. Ricardo admitiu, sem falsa modéstia, que, até hoje, o programa era muito bom, grande orgulho profissional.

 Ricardo imaginou um programa que pudesse ir para todas as cidades, através das 1.200 estações coligadas. De certa maneira, ele tentava reproduzir os musicais da juventude, que ouvia ao vivo do auditório da Rádio Nacional. Os '100 anos da Música Popular Brasileira Ao Vivo' não era exatamente ao vivo nem tinha auditório. Era “ao vivo gravado”, como se dizia em 1974 e 1975. Na MEC, ele gravava como se fosse ao vivo, mas, se tivesse algum erro, mandava voltar a fita e gravava de novo para ficar tudo perfeitinho. Os aplausos eram inseridos na edição.

Nem sempre os músicos convidados tinham espaço nas gravadoras e nos estúdios do rádio. Muitas vezes, eram pessoas humildes, semianalfabetas,  mas geniais, daí a importância de sua participação. Os programas se tornaram históricos. Ouça um trecho de Notícia, de Nelson Cavaquinho, na interpretação de Roberto Silva, que fez parte da série 100 anos da Música Popular Brasileira ao Vivo.  https://www.youtube.com/watch?v=mIN4rSXLU-w

Todos os sábados, a uma e meia da tarde, o programa ia ar para contar a história da MPB. Praticamente todos os grandes intérpretes foram convidados.  Mas a ênfase ficou em Cartola, Luiz Gonzaga e os jovens  Paulinho da Viola e Beth Carvalho. Candeia e Jackson do Pandeiro eram novatos nos estúdios. Mas Altamiro Carrilho já tinha certa experiência.



Cartola só ficou mais à vontade diante do microfone porque era amigo de Ricardo Cravo Albin. Ele ainda era morador da Mangueira e tinha sido redescoberto depois de muitos anos esquecido pelo público. Na primeira fase de sucesso, como amigo de Noel Rosa, e fundador da Mangueira, Cartola criou, em 1940, com Paulo da Portela, o programa A Voz do Morro, da Rádio Cruzeiro do Sul. O interessante era que a dupla lançava sucessos, mas o público criava os títulos das canções. Em 1941, Cartola, Paulo da Portela e Heitor dos Prazeres formaram o grupo Conjunto Carioca. Durante um mês, eles se apresentaram na Rádio Cosmos, em São Paulo. Depois de ter contraído meningite e de ter perdido a mulher, Cartola desapareceu. Muita gente achou que ele havia morrido.

Angenor de Oliveira, o Cartola, começou a exercer profissões humildes para sobreviver, deixando a música de lado. Até que, em 1957, ele foi identificado em uma madrugada pelo jornalista Sérgio Porto (conhecido como Stanislaw Ponte Preta). Cartola trabalhava como vigia e lavador de carros dos moradores de um edifício em Ipanema. Quando viu o compositor magro e maltrapilho, Stanislaw resolveu ajudá-lo a retornar a carreira. Cartola conseguiu aparecer na imprensa, foi trabalhar como contínuo no Diário Carioca, e, no ano seguinte, no Ministério da Indústria e Comércio. Conseguiu se apresentar na Rádio Mayrink Veiga. Aos 66 anos, em 1974, justamente no ano de estreia do programa de Ricardo Cravo Albin, Cartola gravou o primeiro de seus quatro discos. Vamos ouvir Divina dama, de Cartola, interpretado por ele mesmo.
https://www.youtube.com/watch?v=-Y3Z7aR-IS8

Voltando à Rádio MEC, o resultado ficou tão interessante que a série foi gravada em 30 programas que resultaram em oito LPs memoráveis, lançados pela Tapecar. Raríssimos, tornaram-se peças de colecionadores. Até que, em 2011, esse material foi relançado em quatro CDs duplos, minuciosamente restaurados pelo selo Discobertas, de Marcelo Fróes.

O programa tinha um único problema nos anos 70. Foi muito criticado porque nasceu dentro do Projeto Minerva. O Minerva partiu de um decreto da época da ditadura. A atração começou no dia 1º de setembro de 1970, tinha horário fixo e era obrigatório em todas as rádios brasileiras.  Como muita gente criticava o governo e também não gostava de nada obrigatório, repeliu, no primeiro momento, o Projeto.

Mas a intenção era nobre, educar o povo brasileiro, tal como pregava Roquette-Pinto que inaugurou a primeira rádio no Brasil, em 1923. Ele mesmo, em 1936, passou a Rádio Sociedade para o povo brasileiro, desde que o governo continuasse com o seu projeto educativo inédito no rádio. A Rádio MEC nasceu assim, através de uma doação.

A sorte do Minerva foi que a diretora Maria Eugênia Stein tinha um ótimo gosto. Convidou três pessoas excelentes para fazer o programa. Em primeiro lugar, o diretor Zé Cândido de Carvalho, membro da Academia Brasileira de Letras. Ele ficava com a parte do folclore brasileiro. Em segundo, Paulo Tapajós, que dava aulas de música para todo o Brasil. Em terceiro lugar, Ricardo Cravo Albin, que era amigo de todo o mundo e foi o fundador do Museu da Imagem do Som e seu diretor de 1965 a 1971. Foi ele quem criou os Depoimentos para a Posteridade, uma novidade absoluta. No MIS, até hoje,  são gravados os Depoimentos para a Posteridade. São fontes para estudantes e profissionais que estudam a vida e obra dos mais famosos artistas brasileiros da atualidade.

A iniciativa antecedeu o núcleo de memória da Fundação Getúlio Vargas, o CPDOC. Foi anterior também aos estudos sobre história oral, no Brasil, tão difundidos na atualidade nas faculdades de História.

As primeiras gravações do programa 100 anos da MPB ao Vivo foram feitas de forma arcaica pelos heroicos documentadores da época. Mas a história está lá registrada. Inspiraram o banco de dados do site Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira que todos podem acessar pela internet. Ricardo fez outros 140 programas para o Projeto Minerva, como o Gente da Música. Para cada grande compositor da música popular brasileira ele reservava 30 minutos.  “Em 70 horas”, ele disse, “nós botamos o melhor da discografia que existe no Brasil, com discos que não existem mais hoje, mas estão gravados na Rádio MEC. Foram ao todo mais de 15 séries de programas, 15 títulos diferentes”.

Ouça Odete Amaral cantando Feitiço da Vila, de Noel Rosa e Vadico.

https://www.youtube.com/watch?v=5TEQqAUF2_8        

            Ricardo Cravo Albin trabalhou na Rádio MEC durante 40 anos e se dedicou à estação com grande interesse. “A Rádio MEC”, ele afirmou, “sempre foi a minha paixão. No rádio, éramos livres pensadores produzindo aquilo de melhor para formar público ouvinte.”

Os ouvintes gostavam muito de conhecer a história da MPB. Ricardo explicou assim: “As pessoas escreviam, davam as suas impressões em centenas de cartas. Eles pediam músicas, criticavam a falta de um ou outro compositor ou intérprete”.

A Rádio MEC lançou muitos outros programas de música. Além desses que citei, Ricardo Cravo Albin participou ao lado de Paulo Tapajós, Haroldo Costa e Clóvis Paiva das séries Nosso Domingo Musical, Estampas Brasileiras, Folclore do Brasil, Discos de Ouro e por aí vai. Durante a sua existência, e até hoje, não faltam programas de música clássica, jazz, Bossa Nova, que ainda marcam a estação, sempre referência para os brasileiros.  Vamos concluir, ouça Altamiro Carrilho, em Flor Amorosa, de Joaquim Calado. Instrumental SESC Brasil - 26_05_2010.

            https://www.youtube.com/watch?v=LWXTjl-w7V8

Radamés Gnatalli: o gênio que uniu o clássico e o popular no rádio

Rose Esquenazi







O nome parece complicado, mas, à medida que repetimos “Radamés Gnatalli”,   um mundo se abre para os apreciadores da boa música. Por isso, as novas gerações devem aprender não só a dizer o nome corretamente, mas conhecer melhor a obra desse gênio musical, um dos maiores compositores e arranjadores brasileiros. Puça no YouTube um trecho do sexteto Radamés Gnattali interpretando Cochichando, de Benedicto Lacerda & Pixinguinha. https://www.youtube.com/watch?v=53FB0GXJ9aQ
A Rádio Nacional, na sua fase mais importante, contou com a arte desse maestro e instrumentista, o primeiro a unir o clássico ao popular sem nunca perder o tom. Radamés foi um experimentador até o fim da vida.
Vou contar como tudo começou. Radamés nasceu em Porto Alegre, no dia 27 de janeiro de 1906. Seu pai era italiano e se tornou operário no Rio Grande do Sul. Como o italiano gostava muito de música, começou a tocar vários instrumentos, até se tornar maestro. Radamés era gago e só tirava zero nas provas orais. Irritado, o pai quis saber o que o menino queria ser na vida, afinal. Ele não teve dúvidas: desejava se dedicar à música. Já  estudava piano com a mãe desde os 3 anos. Aos 14, passou para o Conservatório de Música, onde ficou durante nove anos.
Em várias entrevistas que deu ao longo da vida, Radamés disse que entrou para um quarteto de cordas que tinha um bom repertório. Além de violista (de viola), era pianista e fez o primeiro concerto aos 18 anos, em 1924, no Rio de Janeiro. Como cursava o último ano de piano, voltou para se formar em Porto Alegre. Logo estava no  Rio novamente para tocar piano em diferentes orquestras: a Victor Brasileira, Diabos do Céu, Grupo da Velha Guarda, Orquestra Típica Victor. Ele compunha lindas valsas e chorinhos. Vamos ouvir o chorinho Cabuloso, na interpretação de Jacob do Bandolim, em 1949. Ouça um trecho: https://www.youtube.com/watch?v=JrxHEYjLTvs
O começo da vida no Rio foi de miséria e fome. Ele reconheceu que ele e outros  músicos, além do escritor Murilo Mendes, se reuniam, sem grana, na casa do pintor Portinari em Laranjeiras. Portinari ficava pintando e os amigos batendo papo enquanto esperavam uma oportunidade. Ao fazer arranjos para a RCA, em 1932, inventou o pseudônimo de Vero. Não pegava bem um erudito, compositor de música sinfônica, fazer arranjos populares. E por que Vero? Simplesmente porque a mulher de Radamés se chamava Vera Bieri, também pianista, com quem ficou casado durante 35 anos.
Na gravadora RCA Victor, Radamés substituiu Pixinguinha e começou a fazer arranjos orquestrais. Ele deu ênfase às cordas, algo novo na MPB, nos anos 30. Radamés tinha o sonho de viver da música erudita, ou de seus dos direitos autorais. Mas no Brasil, isso sempre foi difícil. Então, decidiu entrar para uma orquestra de rádio e depois trabalhou no cinema e na TV. Ele nunca se frustrou ao fazer música popular. Radamés afirmou que foi muito ligado ao Jacob do Bandolim, Heitor dos Prazeres, João da Baiana, Alcebíades Barcelos, o Bide, Marçal e Luciano Perrone. Cada um deu uma coisa diferente a ele.
Curiosamente, quando ele conheceu Pixinguinha, quase não se tocava música popular brasileira. “O negócio”, segundo ele, “era tango, fox trot e jazz. O jazz ganhou o mundo porque não se exigia uma orquestra cara. Apenas piano, contrabaixo um ou outro instrumento de sopro, explicou. O jazz também o influenciou. Mas a música de Radamés é toda brasileira, baseada em temas folclóricos e urbanos do Rio de Janeiro.  Ele sempre gostou de música popular, a começar com o tango que ouvia no Sul. “Se eu tivesse ido à Europa”, declarou, “poderia ter sido um grande pianista, mas nunca seria um compositor brasileiro”.  Na época, o samba estava restrito ao Rio de Janeiro, e ele mergulhou nessa atmosfera.
A primeira rádio em que pisou foi a Rádio Clube do Brasil, em 1924, que tinha um estúdio no Largo do Machado. Em 1930, passou a ser músico da orquestra. Depois foi para Rádio Cajuti e Mayrink Veiga.  Na Mayrink, ele tocava tudo, popular e erudito, mas ganhava mal. Chegou à Nacional no ano da estreia, em 1936.  Em seu depoimento, ele afirmou que não havia orquestra de música brasileira, existiam apenas o regional e a  orquestra de salão, com cordas e flautas, para tocar trechos de operetas, árias de óperas. Os arranjos vinham impressos, do exterior.
Radamés começou a fazer pequenos arranjos para trio: ele,  no piano, o Iberê Gomes Grosso, no violoncelo, e Romeu Ghypsman, no violino. Radamés conta que, naquele tempo, não havia um roteiro nos rádios. Em qualquer buraco na programação, ele tocava música para acabar com o silêncio. Por isso, começou a escrever. Depois os cantores, amigos de Radamés, gostavam e pediam para o músico fazer os arranjos.
Foi o próprio cantor Orlando Silva que pediu para gravar um disco de samba-canção e cordas. Era possível aquilo? Sim e os dois cresceram muito com essa novidade. Não só Orlando Silva, mas também a música de Francisco Alves e Sílvio Caldas ganharam outra dimensão. Um dos destaques desses arranjos incríveis foi Aquarela do Brasil composta para o teatro de revista Joujoux e Balangandans, em 1939. O compositor Ari Barroso não gostou da abertura, que tinha “tan, tan, tan - tan, tan”. Radamés bateu pé e reclamou: "Ô Ari, faz a música que eu faço o arranjo". O arranjador incluiu saxofones que deram grande impacto. Ouça Aquarela do Brasil, na voz de Francisco Alves, música de Ari Barroso e arranjo de Radamés.
https://www.youtube.com/watch?v=yyhPL2Q_Bog
Radamés trabalhava todo dia na Rádio Nacional até que recebeu o convite para fazer um programa de música popular de meia hora, com nove músicas de várias partes do mundo, ligadas uma na outra. O programa era Um Milhão de Melodias, patrocinado pela Coca Cola. Ele concordou, mas não queria mais ser pianista. Ele iria três vezes por semana à estação, faria os arranjos e entregaria ao copista. O programa, espécie de parada musical, ia ao ar às quartas-feiras. Radamés fazia os nove arranjos por semana, e, às vezes, a música era executada uma única vez, apesar de todo o capricho. Os diretores Paulo Tapajós e Haroldo Barbosa e um discotecário da Nacional escolhiam os sucessos mais populares do mundo e sabiam que o arranjador iria engrandecer ainda mais aquelas  músicas. Durante 13 anos, Radamés mostrou o seu brilho, que foi o auge de sua carreira.
A Nacional ganhou uma orquestra criada por Radamés, onde, ao todo, ele trabalhou durante 30 anos. Ele reconheceu que foi um dos maestros da estação responsáveis em “vestir” a música popular brasileira. Abandonavam-se os parcos recursos dos conjuntos regionais e criava-se um arranjo para uma orquestra inteira, com direito a violinos, pianos, flautas, tudo! Segundo Luiz Carlos Saroldi e Sonia Virgínia Moreira, no livro Rádio Nacional, O Brasil em Sintonia, “o ouvinte tornava-se mais exigente, acostumado pelo rádio com um tipo de linguagem musical mais sofisticada”. Só para se ter uma ideia, a Nacional tinha sob contrato 100 músicos, sendo 35 violinistas, nove violistas e seis violoncelistas.
            Havia outros maestros na Nacional, como Leo Peracchi e Lyrio Panicali. Eles eram os responsáveis por todas as coisas boas que se faziam por lá. Mas a Rádio Nacional não pagava bem. Segundo Radamés, a emissora funcionava como vitrine para que os músicos fossem convidados para fazer shows em outros lugares.
Quando Radamés ganhou o Prêmio Shell, em 1983, ele apresentou o Concerto nº. 3 - Seresteiro, para piano e orquestra. Como a música desse concerto é muito brasileira, ele colocou um regional junto com o piano. Mesmo nos anos 80, os puristas não gostaram muito de misturar regional com orquestra sinfônica. Radamés reagiu, então: “mas se o concerto é meu, eu escolho o repertório que vou tocar, é ou não é?”
Jairo Severiano, no livro Uma história da música popular brasileira, afirma que Radamés era um grande experimentador. E Mário de Andrade, uma das cabeças do movimento Modernista, escreveu que o músico tinha, abre aspas, “uma habilidade extraordinária para manejar o conjunto orquestral, que faz soar com riqueza e estranho brilho”. Na música Copacabana, de João de Barro e Alberto Ribeiro, interpretada por Dick Farney, na década de 1950, pode-se ouvir essa qualidade. A música ficou 64 semanas nas paradas de sucesso e tornou-se um clássico.  Ouça: https://www.youtube.com/watch?v=BRn_b7KVZO0
Sem medo das novidades, Radamés decidiu experimentar o cinema. Ele colaborou com o cineasta Nelson Pereira dos Santos e com o sambista Zé Ketti em dois  filmes importantes: Rio Zona Norte (1957) e Rio 40 Graus (1955). Em 1960, apresentou-se num sexteto que incluía acordeão, guitarra, bateria e contrabaixo. Compôs muitas músicas importantes e influenciou uma geração de jovens instrumentistas como Raphael Rabello, Joel Nascimento e Mauricio Carrilho, e para a formação de grupos de choro como o Camerata Carioca, de quem se tornou padrinho musical.  Ouça um trecho de Remexendo, de Radamés Gnattali, com a Camerata Carioca. https://www.youtube.com/watch?v=CC-HluUbjDM

Radamés foi parceiro e amigo de Tom Jobim, Cartola, Heitor Villa-Lobos, Pixinguinha Donga, João da Baiana, Francisco Mignone, Lorenzo Fernandez e Camargo Guarnieri. Foi um dos primeiros a gravar Ernesto Nazareth em disco. É autor do hino do Estado de Mato Grosso do Sul, que foi escolhida em concurso público nacional. Viúvo, casou-se com Nelly Biato Gnattali, pianista e cantora. A irmã, Aída Gnatalli, também foi uma exímia pianista e fundamental como copista de Radamés. Em 1986, ele sofreu um derrame que o deixou com o lado direito do corpo paralisado. Dois anos mais tarde,  sofreu outro derrame e morreu aos 82 anos, no dia 13 de fevereiro de 1988, na cidade do Rio de Janeiro.