segunda-feira, 23 de março de 2015

O Cantor das Multidões. Orlando Silva: Lábios que beijei

Rose Esquenazi – 16 de março de 2015, Rádio MEC AM

Altos e baixos na vida de um grande cantor

Considerado dono de uma das mais bonitas vozes surgidas no país, foi integrante da Época de Ouro da música brasileira. Estava ao lado dos outros três maiores cantores: Francisco Alves, Silvio Caldas e Carlos Galhardo. Orlando Garcia da Silva faria 100 anos no dia 3 de outubro. Será que ele vai receber alguma homenagem, será que os jovens já ouviram falar nele? A carreira durou apenas oito anos e seis meses, mas que carreira e quantos fãs!
Orlando nasceu no bairro do Engenho de Dentro, no Rio, em 1915 (morreu antes de completar 63). O pai, José Celestino da Silva, era violonista e amigo do fabuloso Pixinguinha e, com ele, tocava serenatas. Existe uma gravação na Rádio Cultura, de 1973, em que Orlando Silva fala de sua vida ao lado dos músicos que tocavam com o pai. 
Órfão de pai muito cedo, Orlando viveu em uma casa pobre. Adorava ouvir discos na casa da vizinha e costumava subir em uma amoreira para imitar Francisco Alves. Para escutar a própria voz, pegava uma lata de manteiga, tampava os ouvidos com algodão e projetava a própria voz. O invento maluco surpreendeu a mãe.
  Teve muitos empregos: foi sapateiro, vendedor de tecidos e roupa, mensageiro, estafeta da Western, como se dizia na época. Quando passou a trabalhar como office boy, aos 16 anos, caiu do bonde e lesionou gravemente a perna. O acidente o obrigou a ficar em casa muitos dias. Mas as dores eram tão intensas que ele tinha que tomar doses cavalares de morfina em vários hospitais da cidade. Preso à cama, ficava cantando e, do lado de fora da janela, as pessoas se juntavam para ouvi-lo.
Já que não podia contar com a agilidade das pernas, foi trabalhar como cobrador de ônibus. Durante o trajeto, cantava com aquele vozeirão maravilhoso, capaz de alternar altos e baixos. Segundo o biógrafo Jorge Aguiar, autor do livro Nada além, o ouvinte precisa “penetrar no mundo de beleza que ele criou”. O “timbre vocal cristalino é soberbo, de abrangência notável, a extensão impressionante da tessitura, a variedade e o imprevisto de efeitos emocionais”.  Orlando passava em cada palavra um sentido poético e dramático e era totalmente intuitivo.
Quando chegava à garagem de ônibus, os colegas pediam para ele cantar. Era aplaudido por todo o mundo.  Até que um senhor mais velho aproximou-se dele e disse que ele precisava se profissionalizar. Orlando ficou com isso na cabeça. Ao chegar para fazer um teste na Rádio Guanabara, no Centro, tão tímido, feio, magro e malvestido, os músicos fizeram chacota dele, principalmente porque o novato de 18 anos disse que podia cantar em qualquer tom.
Para o músico Luiz Barboza, produtor da Rádio Cajuti, que o recebeu para um teste, Orlando interpretou a valsa  Céu Moreno. Ao abrir a boca e soltar o vozeirão, todos levaram um susto. Ele era muito bom. O compositor Bororó (Alberto de Castro Simões da Silva, 1898/ 1986) convenceu-o a conhecer uma pessoa muito especial, em um determinado dia, em frente ao famoso Café Nice, na Av. Rio Branco. Orlando aceitou o convite.
E quem era essa pessoa? Nada menos do que Francisco Alves, o Rei da Voz, já fazendo um extraordinário sucesso em várias emissoras de rádio, recordista da indústria de discos de 78 RPM. No tal dia marcado, Chico Alves pediu para o rapaz cantar. Ao perceber que ele era tímido, convidou-o para entrar no carro. Orlando cantou Lágrimas. Chico Alves ficou encantado. A partir daí, decidiu ser o padrinho do cantor. Levou-o à Rádio Cajuti, onde ele estava estreando um novo programa. As músicas de Orlando eram sempre românticas, canções seresteiras, sambas-canção que vieram das antigas modinhas imperiais. Ele era eclético.
Nos seis anos seguintes, a vida do pobre Orlando Silva mudava. Ele gravava na RCA Victor, principal gravadora do país que tinha um elenco formidável. De Carmem Miranda a Chico Alves, de Vicente Celestino e, agora, Orlando Silva.  Vendia milhares de discos, atraía multidões para ouvi-lo nas emissoras. Daí o apelido dado pelo locutor  Oduvaldo Cozzi, Orlando Silva, o Cantor das Multidões.  Ficou amigo de Noel Rosa, embora o estilo dos dois fosse bem diferente.  Em 1936, Noel precisava gravar uma nova canção, mas o cantor convidado não apareceu no estúdio. Noel pediu ajuda a Orlando: o tempo de reserva do estúdio estava acabando. Orlando disse que o ajudaria, aprendeu rapidamente a música Menina dos meus olhos e foi gravar. Ficou ótimo. Vamos ouvir?

https://www.youtube.com/watch?v=jZN0cJvYWMo
Depois Noel perguntou a ele como conseguiu aquele feito, cantar de forma tão diferente. Orlando Silva respondeu que descobriu ter muitas vozes diferentes: a voz de Carnaval, a voz do samba e assim por diante.
Orlando se apresentava na Rádio Guanabara e na Rádio Transmissora, futura Rádio Globo, tornando-se ídolo número um. Com tantos compromissos, com muitas viagens e assédio de mulheres (logo ele que não era um bonitão), Orlando parecia exausto. Um homem se aproximou dele, certa vez, e ofereceu um pó mágico que não embebedava nem dava ressaca. O cantor olhou desconfiado para aquilo, mas aceitou e experimentou cocaína, novidade na época. Provavelmente sob efeito da droga, na Rádio Nacional, cantando ao vivo, chegou a chorar ao interpretar a música Caprichos do destino, música de Pedro Caetano e Claudionor Cruz. A música contagiou todos na plateia e até funcionários da emissora. Nunca se viu nada igual. O jornal A Noite fez uma reportagem especial sobre aquela apresentação.  A partir dali, a carreira deu um grande salto. Até o presidente Getulio Vargas admirava o cantor.
Um engraxate chegou a adverti-lo: “cuidado com a feitiçaria” Ele tinha visto a reação daquela apresentação na Rádio Nacional.  Todos enlouqueceram. O humilde engraxate arrematou: “Tenha cuidado. A feitiçaria geralmente se volta contra o feiticeiro”. É claro que Orlando não ligou para a advertência. O fato é que ele mergulhou no mundo da cocaína.  O público comprou o disco Lábios eu beijei (1937)e parece ter redescoberto o cantor que já vinha fazendo sucesso há alguns anos. Os discos batiam recordes de venda e até no Carnaval o cantor romântico surpreendia. Gravou Abre a janela, de Roberto Martins e Arlindo Marques Jr. e A jardineira, sucesso absoluto e símbolo do Carnaval brasileiro durante muitos anos. Vamos ouvir Abre a janela :

É bom lembrar que Orlando Silva entrou para a Rádio Nacional em 1936 e ajudou a colocar a emissora no primeiro lugar. Apesar de ser sempre elogiado pelo maestro Radamés Gnatalli, que fazia seus arranjos, Orlando Silva assustava alguns bons compositores que achavam que a música deles não era tão boa para o Cantor das Multidões. Assim, no repertório havia pérolas ao lado de mediocridades. Orlando Silva conseguiu ultrapassar em sucesso o padrinho Francisco Alves, algo inimaginável.

As apresentações em São Paulo, na Rádio Record, reuniram milhares de pessoas, todos abismados como aquele cantor dominava a voz. Só que Orlando não se sentia feliz. Pelo contrário, ao chegar ao hotel, depois de se apresentar para a multidão paulista, ficou agitado demais e passou mal. O enfermeiro chamado às pressas aplicou-lhe algo na veia que deu resultado. O que era? Morfina. Aquela mesma substância que usou quando teve o acidente de bonde. Acabou se viciando na droga que parecia tirar da mente todos os problemas.  Mas o vício acabou minando a sua vontade. Perdeu a humildade, passou a levantar a cabeça e fazer exigências contratuais, algumas, mais do que justas. Foi demitido da RCA e foi para a gravadora Odeon, mas não era a mesma coisa. Será que era a tal feitiçaria voltando-se contra o feiticeiro? A morte do padrinho Francisco Alves, em 1952, aumentou a tristeza. Orlando passou por altos e baixos na carreira. Casou-se com Maria de Lourdes Souza Franco, que o apoiou e tirou-o do vício. Orlando largou a carreira e passou os anos 60 e 70 longe dos microfones.  Morreu em 7 de agosto de 1978. Fez um sucessor: Nelson Gonçalves.
Vamos ouvir um fox, grande sucesso de Mário Lago e Custódio Mesquita, Nada além, em que O. Silva inova na arte de interpretar, mais uma vez. Aproximou-se das lindas canções de Cole Porter e Irving Berlin.


Cauby Peixoto: Cauby!


Rose Esquenazi




Cauby: a construção de um grande ídolo

No dia 15 de maio de 2016, Cauby Peixoto morreu aos 85 anos deixando inúmeros fãs. Ele comemorava 65 anos de uma carreira rica e versátil. Fenômeno da música, Cauby marcou a história do rádio e, quase até o fim da vida, fez shows e foi aclamado pelos fãs. A voz foi comparada com a de Frank Sinatra e Nat King Cole, nos áureos tempos, não se manteve a mesma, mas surpreendeu por sua capacidade de alternar graves e agudos, dando emoção à interpretação.

É interessante saber que Cauby foi o primeiro produto de marketing do rádio brasileiro, antes mesmo de existir essa palavra “mar-ke-ting”. Tudo por conta do empresário Di Veras, sagaz e focado, que decidiu fazer de um cantor pobre e com bela e poderosa voz, o maior cantor brasileiro. Passou a ser idolatrado pelas jovens que sonhavam em se casar com ele. Di Veras transformou Cauby em “O Professor”, sempre elegante e com roupas ricas, bem talhadas, sapatos sob medida. 

Cauby Peixoto não era um pseudônimo, mas nome mesmo. O garoto morava em Niterói e a família dele era muito musical: desde os pais até os irmãos. Desde criança, ouvia e cantava, aos poucos desenvolveu seu talento. Começou a cantar em boates, tendo que aumentar a idade para 18 anos. O irmão mais velho, Moacyr, fazia com que Cauby ouvisse Silvio Caldas e Orlando Silva. Cantavam com ele nas boates os irmãos Andyara e Araken

Curiosamente, o cantor, depois de gravar seu primeiro disco, passou a fazer parte da Rádio Nacional, não do Rio, como se esperava, mas de São Paulo, em 1951. Hospedando-se na casa da irmã Andyara, ele começava a carreira com uma grande paixão, a música americana. Tudo lembra você, por exemplo, foi uma versão de These Foolish Things, gravada por Nat King Cole.

Em 1953, o empresário Di Veras decidiu investir em Cauby, depois de ter tentado fazer o mesmo com Ângela Maria, que já tinha o próprio empresário. Di Veras era uma pessoa rica que gostava do meio musical. Ele decidiu imitar Tom Parker, empresário de Elvis Presley, nos Estados Unidos. Depois de ouvi-lo atentamente, Di Veras o convidou para vir ao Rio de Janeiro tentar a carreira porque, em S.Paulo, o cantor estava muito apagado. A primeira coisa que fez foi levá-lo ao melhor alfaiate do Rio, e mandar fazer um terno irretocável. Ensinou coisas importantes para o rapaz: sempre sorrir, saber onde colocar as mãos, ser gentil com as fãs e, lógico, soltar a voz.
Cauby foi convidado a participar do Programa César de Alencar, na Rádio Nacional, em 1953. O jornal A Noite chegou a fazer uma nota sobre a sua estreia, chamando Cauby, o rapaz de 21 anos (tinha 22), de cantor da Rádio Nacional de São Paulo que veio ao Rio interpretar Dois amores, por uma temporada de apenas um mês. Mas não foi o que aconteceu. Em seis meses, tornou-se um fenômeno e capa da Revista do Rádio, que era o melhor termômetro do talento naqueles tempos.

Di Veras começou a usar os seus truques para que seu cliente estivesse sempre na mídia, palavra usada atualmente, mas que, nos anos 50, simplesmente não existia.

O escritor Rodrigo Faour, em seu livro  Bastidores – Cauby Peixoto, 50 anos da voz e do mito (Editora Record), fez um grande pesquisa e sintetizou a trajetória do artista. Visto como cantor romântico “fazendo sucesso com sambas-canções abolerados e alguns foxes – gravou também samba, baião, tarantela, tango, bolero, mambo, valsa, choro, flamenco, calypso e rock”.  E eu acrescento jazz e swing.

Ele era assim, multitalentoso, capaz de cantar em várias línguas, com certa facilidade. Além do empresário, as cantoras que já eram muito conhecidas na Rádio Nacional, como Nora Ney, Leny Eversong e Carmem Costa decidiram começar uma verdadeira campanha para que o jovem Cauby fosse contratado na emissora carioca. Se o convite não fosse feito, elas pediriam demissão! A pressão funcionou.

Em 1954, Cauby cantou  Blue Gardenia, outra versão de uma música americana, de Bob Russell-Lester Lee, com versão de Antônio Carlos.  O sucesso foi estrondoso. Tornou-se uma referência, o sonho de todas as fãs, que começaram a escrever milhares de cartas elogiando o cantor, querendo namorá-lo, revelando paixões avassaladoras.  Logo no primeiro mês depois do lançamento, foi criado um fã-clube para Cauby, que tinha como nome, nada mais nada menos, do que Blue Gardenia. Na Revista do Rádio, a reportagem dizia que, ao entrar no auditório da Nacional, “as fãs desmaiavam gostosamente”, e, segundo o repórter, davam “gritinhos de contentamento”. Por essa razão, Cauby passou a ser conhecido como o cantor que fazia “as garotas desmaiarem”.
Vamos ouvir Blue Gardenia?
https://www.youtube.com/watch?v=Mc_-ZE3ZBk0

Di Veras criou o mito. Ajudou as fãs a fazerem faixas com elogios ao cantor e forçou a barra para que ele tornasse o campeão de faixas passando na frente de outro cantor popular na ocasião, o “rival”, o rei dos brotinhos, Francisco Carlos. Passou também o número de cartas enviadas para a Nacional. E olhe que as divas Emilinha Borba, Marlene e Nora Ney recebiam muita correspondência. Só no mês de julho de 1954, ele recebeu 3.052 cartas. A seção de correspondência da Rádio Nacional era uma sala gigantesca com vários funcionários trabalhando duramente para dar conta do recado de arrumar cada escaninho das celebridades.

Em 1954, ele já tinha sido capa da Revista do Rádio 38 vezes, nenhum cantor conseguiu tal feito! Mas o assédio das fãs, que só aumentava, começou a cansá-lo. Não era só no Rio, mas em várias cidades brasileiras a reação era sempre a mesma. Em Porto Alegre, ele teve Elis Regina, ainda criança, como uma de suas admiradoras.  Nas excursões, a loucura era a mesma, gerava tumulto. Cauby dizia que “aguentava tudo porque era jovem”.

O professor passou a frequentar outros programas da Nacional, como Ronda dos bairros, com Paulo Gracindo, aos domingos, transmitido de vários cinemas da cidade. No Politeama, no Largo do Machado, hoje Supermercado Extra, ou no Imperator, no Meier, onde fosse, Cauby era aclamado. Para sobreviver às duas mil fãs que foram recepcioná-lo no Cine Ipanema, a polícia teve que intervir para abrir caminho para a estrela. Além do programa Ronda dos bairros, Cauby participou de Um milhão de melodias e Quando os maestros se encontram, Quando canta o Brasil, três programas da Rádio Nacional.

É claro que tanto sucesso gerou ciumeira, inveja e fofoca. Para fortalecer a masculinidade, Di Veras propôs capas e matérias com O Professor beijando na boca de atrizes. Em matérias internas, repórteres diziam que ele iria ser “papai”, e que era um bom partido. Na matéria “O casamento que todos querem”, ao lado de Ângela Maria, não parecia muito convincente na foto. Parceira de muitos shows em toda a carreira, a cantora nunca foi companheira mais íntima. O auge da forçação de barra foi a capa da Revista do Rádio em que o cantor aparece de quimono com o título: “Cauby aprendendo jiu-jítsu disposto a tudo”. Embaixo da foto principal, havia um cineminha de imagens de um lutador de verdade sendo derrubado por Cauby. Então, tá!

Em 1955, influenciado por Di Veras, Cauby decidiu ir para os Estados Unidos.  Ele achava mesmo que seu contratado era tão bom ou melhor do que Frank Sinatra. Então, por que não tentar a sorte nos States, como fez Carmem Miranda nos anos 40? Na apresentação despedida da Nacional, o empresário pediu para o alfaiate apenas alinhavasse o terno de Cauby, em vez de costurá-lo na máquina. Conversou com as fãs, dizendo para aparecerem na porta da Nacional, na Praça Mauá. Convidou os fotógrafos dos principais jornais para estarem lá em determinado horário.

Para o jornal A Noite, que ficava no mesmo prédio da Nacional, era fácil. Mas outros profissionais não iriam perder o furo de reportagem. Depois de se apresentar na PRE-8,  Cauby apareceu na rua recebendo uma multidão de fãs que correram a seu enlaço. Conforme foram puxando a roupa do cantor, os pedaços do terno foram saindo. Ótimo assunto para a imprensa daquele tempo.  Ele apareceu nas fotos abatido e triste com a roupa rasgada. A cena que foi, verdade seja dita, armada.

Nos Estados Unidos, com o apelido de Ron Coby, Cauby cantou em rádios e em boates, mas não fez o sucesso esperado. Ficou no país durante oito meses, voltando em 1956. Também foi capa de revista, mas decidiu voltar ao Brasil trazendo na bagagem fotos posadas ao lado de lindas mulheres, como a atriz Jayne Mansfield.

Em 1957, teve a coragem de ser  o primeiro cantor brasileiro a gravar uma canção de rock em português, a canção Rock and Roll em Copacabana, de Miguel Gustavo. Já era tempo de TV e inúmeras vezes ele apareceu em programas cantando e mostrando a sua arte. O estilo pode ter ficado ultrapassado para alguns, mas muita gente o prestigia até hoje, reconhecendo o talento atrás de tantos trejeitos e ternos cheios de paetês e brilho. Ao completar 25 anos de carreira, em 1980, ganhou um álbum só com músicas escritas em sua homenagem. A mais famosa, a que mais marcou, foi Bastidores, assinada por Chico Buarque, um resumo de sua vida. O musical Cauby!, Cauby!, de Flávio Marinho, de 2006, atraiu milhares de pessoas ao teatro. Cauby sempre foi uma sensação.



Não tem tradução

Rose Esquenazi

O cantor de jazz foi o primeiro filme sonoro a chegar no Brasil

Hoje vamos falar sobre a influência do idioma estrangeiro na nossa língua e como isso refletiu nas músicas e no rádio brasileiro. Sim, porque tudo que acontecia de importante na cultura dos anos 30 e 40 tinha reflexo no rádio, o maior meio de comunicação no país daqueles tempos.
Quando o filme O cantor de jazz, com Al Johson, no final dos anos 30, estreou no Brasil, todo o mundo ficou perplexo. Os atores falavam! Iria ficar para trás, aos poucos, o cinema mudo, acompanhado de legendas e de um pianista que tocava ao vivo nas salas de exibição. A identificação foi imediata.

Os filmes americanos predominavam no país, havia muito investimento na divulgação de produções. Com o som, Hollywood ganhou mais força. Além de copiar os gestos, as roupas, a maquiagem e os movimentos dos astros, agora era possível dizer palavras em inglês. Isso, mesmo que você não dominasse nem mesmo o português.

Os compositores populares, que não são bobos nem nada, começaram a usar essa influência na música. E os sucessos chegavam às rádios Mayrink Veiga, no Esplendido Programa, e na Rádio Philips, no Programa do Casé,  que transmitiam os programas mais populares.

Em 1932, Assis Valente compôs  Good-bye, interpretada com muito sucesso por Carmem Miranda, muito antes de a cantora se decidir morar nos Estados Unidos. Vamos ouvir?
CD 1, faixa 3

Nessa letra, Assis ridiculariza um rapazinho, que ele chama de moreno frajola, dizendo que ele nunca foi à escola. Então, por que tem a mania de falar inglês?
Em outra estrofe, Carmem canta: “Não é mais boa-noite/Nem bom-dia/Só se fala "good morning/"Good night/Já se desprezou o lampião/De querosene/Lá no morro/Só se usa luz da "Light". Acho interessante falar sobre essa transformação na cidade que passa a receber a luz da empresa canadense Light e aposenta os antigos lampiões de querosene.

No ano seguinte, em 1933, Noel Rosa lança Não tem tradução, samba gravado por Francisco Alves. É bom que se lembre que Chico Alves, o Rei da Voz, cantava em vários programas, sempre com grande audiência e chegou a comprar uma rádio, a Cajuti. O que Noel Rosa escreveu?

 “O cinema falado/É o grande culpado/Da transformação/ Dessa gente que sente/ Que um barracão/Prende mais que um xadrez/Lá no morro, se eu fizer uma falseta/A Risoleta desiste logo do francês e do inglês./ A gíria que o nosso morro criou/Bem cedo a cidade aceitou e usou/Mais tarde, o malandro deixou de sambar/Dando pinote/E só querendo dançar o foxtrote (uma dança bem americana).

Essa gente hoje em dia/ Que tem a mania/Da exibição/Não se lembra que o samba/Não tem tradução no idioma francês/Tudo aquilo que o malandro pronuncia/Com voz macia/É brasileiro/Já passou do português.
Amor lá no morro é amor pra chuchu/As romãs do samba não são I love you/E esse negócio de alô, alô boy, alô Johnny/ Só pode ser conversa de telefone.”

O escritor Eduardo Alcântara Vasconcelos, em seu livro Noel Rosa para ler e ouvir, descobriu que Noel Rosa usou palavras de línguas estrangeiras em 20 músicas. As francesas aparecem 20 vezes, as inglesas, três vezes, e a espanhola, uma vez. A influência francesa era muito grande também! Na música De babado, Noel compôs: “Brasileiro diz meu bem/E francês diz mon amour/Você diz vale quem tem/Muito dinheiro pra pagar meu point-à-jour/Eu ando sem l’argent toujours.”

Em Dama do Cabaré, Noel continua no idioma francês: “Foi num cabaré na Lapa/Que eu conheci você/Fumando cigarro/Entornando champanhe no seu soirée”. Já na musica Tarzan, o compositor parte para o espanhol:  “Um argentino disse/Me vendo em Copacabana; No hay fuerza sobre-humana/Que detenga este Tarzan!”

No artigo Samba no pé e inglês na ponta da língua, Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva (da UFMG), revela que, desde os anos 20, já existe a crítica entre os compositores em relação ao abuso de termos estrangeiros. No musical Às urnas, Luiz Iglésias e Freire Junior assinam um fox trot non sense.    Uma bagunça que mistura palavras que os brasileiros conhecem, mas não sabem o que é e escritas de acordo com a fonética
               Em 1932, Lamartine Babo compôs o fox-humorístico Canção para inglês ver, que ele chamou de "fox-charge". Mostramos esse non-sense de Lamartine em outro programa, mas para lembrar, Lalá mistura muitas palavras em inglês e português.

Nos anos 80, Rogério Rossine e Nei Lopes escrevem a música A neta de madame Roquefort batendo na mesma tecla, no caso, o francês. Segundo a autora Vera Lúcia, eles fazem “críticas à burguesia sempre sujeita a influências estrangeiras”. A palavra Roquefort remete a uma marca de queijo de prestígio e na letra aparece a neta e a avó que preferem falar inglês no Brasil.

“Madame Roquefort traz cada vez melhor o seu charme burguês
E já tem quase oitenta e três
Da Rua do Chichorro foi morar no morro mas fala francês
Sua garconière tem bufê, étagère e um lindo sumier
Só tem filé mignon, maionese, champignon, champanhe e vinho rosé
(do bom Chateau Duvalier que é o que tem melhor buquê)
Já por volta das sete, ela pega o chevette e vai fazer balé
De sapatilha de crochê”.
Voltando para o passado, em 1933, Jurandir Santos grava, de sua autoria, a "marcha turística" Alô John, elogiando o Carnaval brasileiro.
                               Alô John/             Cambeque prá folia/Se não reve mone/Não faz mal/ Alô, ô, ô, ô/Alô John/        Cambeque prá folia/Inde Brasil/Reve muito chope/Opp opp (bis)/American if drinque/Não estope
                
O mesmo Jurandir Santos cria a marcha OK, que foi gravada por Lamartine Babo e Carmem Miranda, em 1934.
  Ô quei, ô quei/     Estope que eu já cansei/Ii... Ii... esse ife iu plise/Ô quei/                   Por tua causa foi que me cansei /Luque... luque para mim/Vê como estou fagueiro/ô ô...ÔÔ...ÔÔ...quei/ ai reve pouco dinheiro


Em Brasil Pandeiro, de 1941, gravada pelo grupo Anjos do Inferno, e que ganhou nova versão de Baby Consuelo, o samba é ambíguo. Ao esmo tempo em que enaltece o Brasil, reconhece que é ótimo ser conhecido no exterior por sua cultura. Naqueles anos 40, estava em vigor a Política da Boa Vizinha, logo, era bom fazer boas trocas, inclusive musicais.

                           O inglês continuou a ser usado no samba, quase sempre com o objetivo de criticar o americanismo. Os habitantes da favela eram principal das críticas à adesão aos ritmos americanos. Denis Brian, compositor paulista, é mais um que se incumbe de criticar a imitação dos comportamentos americanos. Mostrou os moradores da favela entusiasmados com o lançamento do boogie‑woogie, na década de 1940. Os versos de Brian diziam:
                  Chegou o samba minha gente
                  lá da terra do Tio Sam com novidade
                  E ele trouxe uma cadência maluca
                  pra mexer com a cidade,
                  O boogie‑woogie, boogie‑woogie
                  Boogie‑woogie
                  a nova dança que balança, mas não cansa,
                  a nova dança que faz parte da política
                  da boa vizinhança
  
Ao usar os empréstimos da língua inglesa, Zeca Baleiro e Zeca Pagodinho, em Samba do approach, ironizam o excesso de expressões em inglês presentes no cotidiano da burguesia brasileira.      Samba do Aproach fez parte da trilha sonora da novela Da cor do pecado, de 2004.
 “Venha provar meu brunch/Saiba que eu tenho approach/Na hora do lunch/Eu ando de ferryboat/ Eu tenho savoir-faire/Meu temperamento é light/Minha casa é hi-tech/Toda hora rola um insight/Já fui fã do Jethro Tull/Hoje me amarro no Slash/Minha vida agora é cool/Meu passado é que foi trash/Fica ligada no link/Que eu vou confessar my love/Depois do décimo drink/Só um bom e velho engov/Eu tirei o meu green card/E fui pra Miami Beach/Posso não ser pop star/Mas já sou um noveau riche


Vamos ouvir? https://www.youtube.com/watch?v=ZnlZ2T5qEKA

O samba-de-breque e o samba sincopado


Rose Esquenazi

Ciro Monteiro influenciou muitos sambistas

https://www.youtube.com/watch?v=fD8Hh4CFPkk  Na subida do morro, Moreira da Silva, de Geraldo Pereira

O cantor Ciro Monteiro, um cantor maravilhoso também, mas completamente diferente do primo Cauby Peixoto. Antes, Ciro – conhecido como Formigão - só cantava em casa e para os amigos, mas, aos poucos, ele começou a ser convidado para se apresentar nas estações de rádio.  Sua estreia foi com um samba Acabou a sopa, de Geraldo Pereira e Augusto Garcez, em 1940.

Criador de mais de 100 músicas, Geraldo compôs um dos grandes sucessos interpretados por Ciro Monteiro, A Falsa Baiana, de 1944. Estudiosos acham que essa música influenciou o nascimento da Bossa Nova devido a sua batida. O escritor Luiz Fernando Vianna afirma que “o ritmo não apenas acompanha a melodia, mas forma com ela um conjunto indissociável”. O estudioso de MPB Jairo Severiano considera Falsa Baiana como “obra prima, samba paradigma de seu estilo”. (“Uma história da Música Popular Brasileira”) 

Ciro trabalhou na Rádio Philips e na Mayrink Veiga e influenciou muitos sambistas. Nascido em 28/5/1913 (morreu em 13/7/1973), além de cantor, era também foi compositor.

 o compositor Geraldo Theodoro Pereira, de quem falamos agora, nasceu em 1918 (1955), em Juiz de Fora, teve infância difícil. Ele se mudou para o Morro de Mangueira, onde ficou amigo de outros compositores, como Cartola e fez parte da extinta escola de samba Unidos de Mangueira. Casou-se a contragosto com a mãe de seu filho e logo depois partiu para a vida boêmia, com bebida demais, mulheres demais e brigas demais. Sem tocar nenhum instrumento, compunha usando uma caixinha de fósforos para acompanhar o ritmo. Começou a fazer samba sincopado, um samba leve e cheio de divisões rítmicas, inovando a música popular brasileira. Estreou como profissional em 1939 e deixou 76 músicas gravadas, cerca de 90% sincopadas.
Outras músicas muito conhecidas de Geraldo Pereira também foram interpretadas por Ciro Monteiro, tais como Escurinho e Pisei no despacho. 

Desde 1931, o samba batucado feito pelos compositores negros e mestiços do Estácio já incluíam um pequeno breque, que é aquela paradinha que permite “uma modulação para a retomada da melodia da primeira parte”, como ensina José Ramos Tinhorão, no livro Pequena História da Música Popular (Vozes, 1974). O breque virou moda principalmente entre a dupla Ismael Silva e Nilton Bastos. Pode ser entendida também como o breque de um carro, quando o automóvel para de repente.


 A principal característica do estilo é a pausa no acompanhamento acentuadamente sincopado para uma intervenção declamatória do intérprete. Muitos compositores, como Heitor dos Prazeres, incluíam em suas letras escritas a expressão break, informando que, naquele momento da música, o cantor deve parar e dizer uma determinada frase ou cantar um determinado trecho musical.

Em Você está sumindo, com Jorge de Castro, de 44, Geraldo Pereira fala que o amor de uma mulher está lhe consumindo, o abandono o deixa decadente. Na frase musical, a síntese da situação: “Você está acabado, chi! Você está sumindo”.
O maior expoente do samba brecado foi Moreira da Silva, justamente com um samba de Geraldo Pereira com a coautoria de Moreira da Silva: Acertei no milhar, de 1940. 

Acertei no milhar é, na minha opinião, uma música genial. Conta o sonho que uma pessoa comum tem ao ganhar uma fortuna no jogo do bicho. Manda a mulher quebrar os móveis, dar as roupas todas aos pobres, pretende colocar os filhos (“ai, que inferno!”, ele diz) no colégio interno, vai comprar um título de nobre e viajar pela Europa e América do Sul. Tudo maravilhoso, com muito dinheiro no bolso, até que a mulher do sujeito, a Etelvina – olha que nome delicioso – o acorda dizendo que estava na hora do batente, ou seja, ele precisava trabalhar. O samba acaba com a triste frase: “Foi um sonho, minha gente”.

Conhecido como o Rei do Breque, Moreira da Silva interpretou diversas músicas de Geraldo Pereira Na subida do morro, que ouvimos no início do quadro. Conhecido como Kid Morengueira, Moreira da Silva viveu até os 98 anos e fez shows até os 90.  Nascido no Morro do Salgueiro, na Tijuca, em 1º de abril de 1902, morreu em 6/6/2000. Trabalhou em fábricas,  foi taxista e  condutor de ambulância. Nas horas vagas, Kid cantava. E foi fundo na improvisação de frases engraçadas, ditas de maneira muito rápida. As pausas do breque evoluíram para o samba brecado. 


Essa turma, muitas vezes, era identificada com a malandragem da Lapa, comportamento malvisto pelo Estado Novo de Getúlio Vargas. Moreira da Silva se vestia de terno branco, usava chapéu de palha e sapatos impecáveis.

Já Geraldo Pereira não se vestia assim. Mas fazia pose e vivia bebendo nos bares e resturantes da Lapa. Teve uma morte estranha e com muitas versões. Segundo Madame Satã, o malandro que jogava muito bem capoeira e era travesti temido pela polícia, Geraldo, certa noite, implicou com ele. Insistiu que Satã bebesse do chope dele e, depois, queria beber do copo de Satã. Houve um desentendimento feio, eles começaram a brigar na porta do Restaurante Nova Capela, no Centro. Geraldo caiu no meio fio e bateu com a cabeça. Morreu aos 37 anos. Outra versão é de Luiz Fernando Vianna, que conta que Geraldo já sofria de hemorragia intestinal há muito tempo. (Olha o meu break: também depois de tanta bebida!) A causa mortis não teria sido a batida da cabeça no meio-fio.

José Ramos Tinhorão ensina que o samba-de-breque tinha sumido um tempo até reaparecer nos anos 50 através das composições de Miguel Gustavo. Autor de O Rei do Gatilho, 1962, interpretado por Moreira da Silva, e de Café Society, de 1955, o publicitário explicou em uma entrevista que, na verdade, ele e Billy Blanco, apenas trouxeram o samba de breque para “convívio da classe média”. “Naquela mesma ocasião, muitos outros continuavam a fazer esse tipo de samba, do jeito deles e para o seu próprio público, com as ferramentas rudimentares que possuíam”, explicou Miguel Gustavo, que continuou com a explicação: “Nós alteramos a coisa um pouco. Colocamos nosso tipo de vida, nossas observações e nossa formação num  tipo de estrutura antiga e restrita.” (Veja, 1980)

Vamos ouvir Café Society com Jorge Veiga (1910-1979), que nasceu no bairro do Engenho Novo e foi muito pobre. Engraxate, vendedor de frutas e pintor de paredes, foi descoberto em programa de calouros da Rádio Educadora do Brasil (PRB-7).  Regravou com muito sucesso Acertei no milhar, de que falamos no início do porograma. Vamos ouvir Café Society?

https://www.youtube.com/watch?v=CoovSvHmCL8  Jorge Veiga canta Café Society.
Esse quadro com você, Marcus Aurélio, do Rádio Faz História, minha gente, não foi um sonho.




É tempo de Carnaval


Rose Esquenazi


Até amanhã, de Noel Rosa, interpretada por Elizeth Cardoso, Jacob do Bandolim e Zimbo Trio, 1968. 

Há mais de 80 anos, se ligássemos o rádio nessa época do ano, só ouviríamos marchas  carnavalescas. Os anos 30 foram chamados a Era de Ouro da música, mas os 40 também foram geniais. Em todos os carnavais, os compositores lançavam centenas de músicas novas, algumas geniais. O rádio ajudava na divulgação. O público ia aprendendo aos poucos as letras e, quando começava a festa, todos já haviam escolhido as marchinhas mais animadas, engraçadas e queridas. Não se tratava de algo requentado.


Só para ter uma ideia, em 1941, Almirante, o famoso Henrique Foreis Domingues, contabilizou, no programa Curiosidades musicais, 250 novas músicas para aquele Carnaval em tempo de guerra e Estado Novo. Segundo o livro de Sérgio Cabral, pai, sobre o Almirante, sete músicas ficaram conhecidas: O Bonde São Januário; Eu trabalhei; Helena, Helena; Alala-ô, Aurora; Nós queremos uma valsa e Poleiro de pato é no chão. Mesmo com essa grande produção de 1941, o carnaval não foi animado. O carnaval de 1943 não aconteceu simplesmente porque não havia clima para grandes comemorações em plena guerra.


O Estado Novo implicava com as letras que falavam sobre malandragem e discursos contra o trabalho. Se o Departamento de Imprensa e Propaganda, o DIP, não autorizasse, as músicas não podiam ser gravadas nem tocadas nas rádios. No Bonde São Januário, Ataulfo Alves e Wilson Batista tinham ironizado os operários que trabalhavam nas fábricas que ficavam na Barreira do Vasco e que ganhavam uma miséria. A frase “Quem trabalha, não tem razão”, eles mudaram para “Quem trabalha é quem razão”, e em vez de “O Bonde São Januário leva mais um sócio otário” por um “operário”. Só assim puderam gravar. Vamos ouvir “O Bonde São Januário no CD 1 dos Os grandes sambas da história, faixa 11.


O pesquisador José Ramos Tinhorão, no livro Pequena História da Música Popular (Vozes), explica que “os gêneros de música carnavalesca”, o samba e a marcha, além de toda a sua evolução posterior, foram fixados um pouco antes de 1930. Segundo Tinhorão, a evolução social das classes a que se dirigiam, no caso, a classe média branca, “ganhou no Estácio o ritmo bancado com a geração de compositores da camada mais baixa: Ismael Silva, Nilton Bastos, Bide, Armando Marçal, Heitor dos Prazeres.

Para o pesquisador, “com o aparecimento de compositores profissionais dos meios do rádio e das fábricas de discos – Ari Barroso, Lamartine Babo, João de Barro, Noel Rosa, Assis Valente, Haroldo Lobo, Ataulfo Alves” – houve uma mudança no andamento do samba carnavalesco para o meio do ano sob o nome de samba-canção.

Nas músicas bem-humoradas, bem sacadas, sintéticas e que grudavam no ouvido do público surgiam tipos dessas novas camadas que apareciam na cidade, como a melindrosa e o almofadinha. Nas charges dos jornais, esses tipos apareciam, principalmente, nos traços de J.Carlos.  O dentista Freire Júnior ajudava a fazer o perfil na música: “Melindrosinha/Moça chique e vaporosa/Elegante e bonitinha/Perfumada como a rosa/Namoradeira/Com vontade de casar/os botões de laranjeira/Nos dão muito o que pensar”.

Antes da estreia do rádio no Brasil, em 1922, temos que citar a primeira música feita especialmente para o Carnaval: trata-se de Ó Abre Alas, de Chiquinha Gonzaga, de 1899.  Só para situar os ouvintes, citaremos Sinhô, o pianista profissional também responsável pela “fixação da música na sua primeira fase”. Depois, registra-se a criação coletiva na casa da baiana tia Ciata, que tinha um terreiro de candomblé na Cidade Nova (Praça Onze), registrada por Donga (Ernesto Santos), em 1916. Chamava-se Pelo Telefone, a primeira música que ganhou o selo de “samba”, na gravadora Odeon. Começava a identificação cada vez maior da classe média com a marcha. O pianista José Francisco de Freitas, compôs a marcinha Eu vi: “Eu vi/Eu vi/Você beliscar Lili”. Esse lançamento aconteceu em 1926, um ano antes da estreia de Lamartine Babo, com a marcha Os Calças Largas.  Lamartine foi um gênio das marchinhas carnavalescas.

Teu cabelo não nega, de Lamartine Babo e Irmãos Valença, 1931
Linda Morena, Lamartine Babo, 1932, do CD 2.


Havia também vários concursos para descobrir novas músicas carnavalescas, muitas vezes, promovidos por jornais e revistas da época. Eu encontrei a lista dos quatro melhores do concurso de 1931, patrocinado pelo Jornal do Brasil e pela gravadora Casa Édison. Nas letras misturam-se bom humor e ideias politicamente incorretas se comparadas com o olhar da atualidade. Em primeiro lugar, ficou Bonde errado, com mil votos. Em segundo, Olha a crioula, com 600 votos. Em terceiro, Não dou, com 446 votos. Em quarto, Encurta a saia.

Almirante mostrava em Curiosidades musicais a riqueza e a qualidade musical das marchas carnavalescas. O programador, apresentador e produtor também fazia extensas pesquisas sobre os carnavais do passado e trazia para os ouvintes os sucessos que se tornavam clássicos. Ele era incansável e mostrou isso em duas fases do programa Curiosidades. Ele tanto podia contar a história da Mangueira, como a trajetória da capoeira, por exemplo. Quando foi para a Rádio Nacional, em 1938, ele já tinha ganhado experiência na Rádio Philips, no Programa do Casé, na Rádio Transmissora e Rádio Club. Mas foi na Nacional que seu brilhantismo ficou ainda mais em evidência. Ele sabia narrar, imitar vozes de criança, mulher, de estrangeiros, com a maior naturalidade, produzir, pesquisar, escrever, tocar, entrevistar.

É bom lembrar que Almirante também era músico e havia participado em dois grupos musicais importantes: o Flor do Tempo, com seus colegas do colégio, entre eles, o genial Braguinha e Noel Rosa. Aliás, Almirante casou-se com a irmã de Braguinha, apelido de Carlos Alberto Ferreira Braga. Como Carlinhos não queria que o pai dele – um rico gerente da Fábrica de Tecidos Confiança - soubesse que ele estava metido em música, coisa vista com desdém por muitos, usou o pseudônimo de João de Barro, no segundo grupo musical de Almirante, os Turunas da Mauricéa. Isso porque ia estudar arquitetura e não há, na natureza, passarinho que construa casa melhor do que o joão de barro. Ele achou que valia a pena não arriscar.

Braguinha compôs durante 60 carnavais ininterruptos canções maravilhosas e que são cantadas até hoje. Por exemplo: Pirata da Perna de PauChiquita BacanaTouradas de MadriA Saudade mata a GenteBalancêAs PastorinhasTurma do Funi. Em 1937, Carmem Miranda gravou Balancê e, em 1938, foi a música mais tocada no carnaval, com 2357 execuções, segundo dados do ECAD.

Com Touradas em Madri, Braguinha venceu o concurso carnavalesco de 1938, mas, depois, a música foi desclassificada porque chegou-se à conclusão que o ritmo não era brasileiro. Pensando bem foi um critério bem ridículo. Em 1950, a canção foi cantada por cerca de 200 mil pessoas durante a partida contra a Espanha na Copa do Mundo de Futebol no Maracanã.
Touradas em Madri: https://www.youtube.com/watch?v=PFE2UNSu5Hs, de 1938 e que fez sucesso na Copa de 50. YouTube.

Para mostrar um pouco do clima do Carnaval do passado vamos ouvir:

Máscara negra, de Zé Kétie Hildebrando Matos, 1967
Oh! Seu Oscar. Samba de Ataulfo Alves e Wilson Batista (Carnaval de 1940), faixa 7, CD 1, para o Carnaval dos anos 40.