segunda-feira, 23 de março de 2015

Não tem tradução

Rose Esquenazi

O cantor de jazz foi o primeiro filme sonoro a chegar no Brasil

Hoje vamos falar sobre a influência do idioma estrangeiro na nossa língua e como isso refletiu nas músicas e no rádio brasileiro. Sim, porque tudo que acontecia de importante na cultura dos anos 30 e 40 tinha reflexo no rádio, o maior meio de comunicação no país daqueles tempos.
Quando o filme O cantor de jazz, com Al Johson, no final dos anos 30, estreou no Brasil, todo o mundo ficou perplexo. Os atores falavam! Iria ficar para trás, aos poucos, o cinema mudo, acompanhado de legendas e de um pianista que tocava ao vivo nas salas de exibição. A identificação foi imediata.

Os filmes americanos predominavam no país, havia muito investimento na divulgação de produções. Com o som, Hollywood ganhou mais força. Além de copiar os gestos, as roupas, a maquiagem e os movimentos dos astros, agora era possível dizer palavras em inglês. Isso, mesmo que você não dominasse nem mesmo o português.

Os compositores populares, que não são bobos nem nada, começaram a usar essa influência na música. E os sucessos chegavam às rádios Mayrink Veiga, no Esplendido Programa, e na Rádio Philips, no Programa do Casé,  que transmitiam os programas mais populares.

Em 1932, Assis Valente compôs  Good-bye, interpretada com muito sucesso por Carmem Miranda, muito antes de a cantora se decidir morar nos Estados Unidos. Vamos ouvir?
CD 1, faixa 3

Nessa letra, Assis ridiculariza um rapazinho, que ele chama de moreno frajola, dizendo que ele nunca foi à escola. Então, por que tem a mania de falar inglês?
Em outra estrofe, Carmem canta: “Não é mais boa-noite/Nem bom-dia/Só se fala "good morning/"Good night/Já se desprezou o lampião/De querosene/Lá no morro/Só se usa luz da "Light". Acho interessante falar sobre essa transformação na cidade que passa a receber a luz da empresa canadense Light e aposenta os antigos lampiões de querosene.

No ano seguinte, em 1933, Noel Rosa lança Não tem tradução, samba gravado por Francisco Alves. É bom que se lembre que Chico Alves, o Rei da Voz, cantava em vários programas, sempre com grande audiência e chegou a comprar uma rádio, a Cajuti. O que Noel Rosa escreveu?

 “O cinema falado/É o grande culpado/Da transformação/ Dessa gente que sente/ Que um barracão/Prende mais que um xadrez/Lá no morro, se eu fizer uma falseta/A Risoleta desiste logo do francês e do inglês./ A gíria que o nosso morro criou/Bem cedo a cidade aceitou e usou/Mais tarde, o malandro deixou de sambar/Dando pinote/E só querendo dançar o foxtrote (uma dança bem americana).

Essa gente hoje em dia/ Que tem a mania/Da exibição/Não se lembra que o samba/Não tem tradução no idioma francês/Tudo aquilo que o malandro pronuncia/Com voz macia/É brasileiro/Já passou do português.
Amor lá no morro é amor pra chuchu/As romãs do samba não são I love you/E esse negócio de alô, alô boy, alô Johnny/ Só pode ser conversa de telefone.”

O escritor Eduardo Alcântara Vasconcelos, em seu livro Noel Rosa para ler e ouvir, descobriu que Noel Rosa usou palavras de línguas estrangeiras em 20 músicas. As francesas aparecem 20 vezes, as inglesas, três vezes, e a espanhola, uma vez. A influência francesa era muito grande também! Na música De babado, Noel compôs: “Brasileiro diz meu bem/E francês diz mon amour/Você diz vale quem tem/Muito dinheiro pra pagar meu point-à-jour/Eu ando sem l’argent toujours.”

Em Dama do Cabaré, Noel continua no idioma francês: “Foi num cabaré na Lapa/Que eu conheci você/Fumando cigarro/Entornando champanhe no seu soirée”. Já na musica Tarzan, o compositor parte para o espanhol:  “Um argentino disse/Me vendo em Copacabana; No hay fuerza sobre-humana/Que detenga este Tarzan!”

No artigo Samba no pé e inglês na ponta da língua, Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva (da UFMG), revela que, desde os anos 20, já existe a crítica entre os compositores em relação ao abuso de termos estrangeiros. No musical Às urnas, Luiz Iglésias e Freire Junior assinam um fox trot non sense.    Uma bagunça que mistura palavras que os brasileiros conhecem, mas não sabem o que é e escritas de acordo com a fonética
               Em 1932, Lamartine Babo compôs o fox-humorístico Canção para inglês ver, que ele chamou de "fox-charge". Mostramos esse non-sense de Lamartine em outro programa, mas para lembrar, Lalá mistura muitas palavras em inglês e português.

Nos anos 80, Rogério Rossine e Nei Lopes escrevem a música A neta de madame Roquefort batendo na mesma tecla, no caso, o francês. Segundo a autora Vera Lúcia, eles fazem “críticas à burguesia sempre sujeita a influências estrangeiras”. A palavra Roquefort remete a uma marca de queijo de prestígio e na letra aparece a neta e a avó que preferem falar inglês no Brasil.

“Madame Roquefort traz cada vez melhor o seu charme burguês
E já tem quase oitenta e três
Da Rua do Chichorro foi morar no morro mas fala francês
Sua garconière tem bufê, étagère e um lindo sumier
Só tem filé mignon, maionese, champignon, champanhe e vinho rosé
(do bom Chateau Duvalier que é o que tem melhor buquê)
Já por volta das sete, ela pega o chevette e vai fazer balé
De sapatilha de crochê”.
Voltando para o passado, em 1933, Jurandir Santos grava, de sua autoria, a "marcha turística" Alô John, elogiando o Carnaval brasileiro.
                               Alô John/             Cambeque prá folia/Se não reve mone/Não faz mal/ Alô, ô, ô, ô/Alô John/        Cambeque prá folia/Inde Brasil/Reve muito chope/Opp opp (bis)/American if drinque/Não estope
                
O mesmo Jurandir Santos cria a marcha OK, que foi gravada por Lamartine Babo e Carmem Miranda, em 1934.
  Ô quei, ô quei/     Estope que eu já cansei/Ii... Ii... esse ife iu plise/Ô quei/                   Por tua causa foi que me cansei /Luque... luque para mim/Vê como estou fagueiro/ô ô...ÔÔ...ÔÔ...quei/ ai reve pouco dinheiro


Em Brasil Pandeiro, de 1941, gravada pelo grupo Anjos do Inferno, e que ganhou nova versão de Baby Consuelo, o samba é ambíguo. Ao esmo tempo em que enaltece o Brasil, reconhece que é ótimo ser conhecido no exterior por sua cultura. Naqueles anos 40, estava em vigor a Política da Boa Vizinha, logo, era bom fazer boas trocas, inclusive musicais.

                           O inglês continuou a ser usado no samba, quase sempre com o objetivo de criticar o americanismo. Os habitantes da favela eram principal das críticas à adesão aos ritmos americanos. Denis Brian, compositor paulista, é mais um que se incumbe de criticar a imitação dos comportamentos americanos. Mostrou os moradores da favela entusiasmados com o lançamento do boogie‑woogie, na década de 1940. Os versos de Brian diziam:
                  Chegou o samba minha gente
                  lá da terra do Tio Sam com novidade
                  E ele trouxe uma cadência maluca
                  pra mexer com a cidade,
                  O boogie‑woogie, boogie‑woogie
                  Boogie‑woogie
                  a nova dança que balança, mas não cansa,
                  a nova dança que faz parte da política
                  da boa vizinhança
  
Ao usar os empréstimos da língua inglesa, Zeca Baleiro e Zeca Pagodinho, em Samba do approach, ironizam o excesso de expressões em inglês presentes no cotidiano da burguesia brasileira.      Samba do Aproach fez parte da trilha sonora da novela Da cor do pecado, de 2004.
 “Venha provar meu brunch/Saiba que eu tenho approach/Na hora do lunch/Eu ando de ferryboat/ Eu tenho savoir-faire/Meu temperamento é light/Minha casa é hi-tech/Toda hora rola um insight/Já fui fã do Jethro Tull/Hoje me amarro no Slash/Minha vida agora é cool/Meu passado é que foi trash/Fica ligada no link/Que eu vou confessar my love/Depois do décimo drink/Só um bom e velho engov/Eu tirei o meu green card/E fui pra Miami Beach/Posso não ser pop star/Mas já sou um noveau riche


Vamos ouvir? https://www.youtube.com/watch?v=ZnlZ2T5qEKA

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