segunda-feira, 23 de março de 2015

O Cantor das Multidões. Orlando Silva: Lábios que beijei

Rose Esquenazi – 16 de março de 2015, Rádio MEC AM

Altos e baixos na vida de um grande cantor

Considerado dono de uma das mais bonitas vozes surgidas no país, foi integrante da Época de Ouro da música brasileira. Estava ao lado dos outros três maiores cantores: Francisco Alves, Silvio Caldas e Carlos Galhardo. Orlando Garcia da Silva faria 100 anos no dia 3 de outubro. Será que ele vai receber alguma homenagem, será que os jovens já ouviram falar nele? A carreira durou apenas oito anos e seis meses, mas que carreira e quantos fãs!
Orlando nasceu no bairro do Engenho de Dentro, no Rio, em 1915 (morreu antes de completar 63). O pai, José Celestino da Silva, era violonista e amigo do fabuloso Pixinguinha e, com ele, tocava serenatas. Existe uma gravação na Rádio Cultura, de 1973, em que Orlando Silva fala de sua vida ao lado dos músicos que tocavam com o pai. 
Órfão de pai muito cedo, Orlando viveu em uma casa pobre. Adorava ouvir discos na casa da vizinha e costumava subir em uma amoreira para imitar Francisco Alves. Para escutar a própria voz, pegava uma lata de manteiga, tampava os ouvidos com algodão e projetava a própria voz. O invento maluco surpreendeu a mãe.
  Teve muitos empregos: foi sapateiro, vendedor de tecidos e roupa, mensageiro, estafeta da Western, como se dizia na época. Quando passou a trabalhar como office boy, aos 16 anos, caiu do bonde e lesionou gravemente a perna. O acidente o obrigou a ficar em casa muitos dias. Mas as dores eram tão intensas que ele tinha que tomar doses cavalares de morfina em vários hospitais da cidade. Preso à cama, ficava cantando e, do lado de fora da janela, as pessoas se juntavam para ouvi-lo.
Já que não podia contar com a agilidade das pernas, foi trabalhar como cobrador de ônibus. Durante o trajeto, cantava com aquele vozeirão maravilhoso, capaz de alternar altos e baixos. Segundo o biógrafo Jorge Aguiar, autor do livro Nada além, o ouvinte precisa “penetrar no mundo de beleza que ele criou”. O “timbre vocal cristalino é soberbo, de abrangência notável, a extensão impressionante da tessitura, a variedade e o imprevisto de efeitos emocionais”.  Orlando passava em cada palavra um sentido poético e dramático e era totalmente intuitivo.
Quando chegava à garagem de ônibus, os colegas pediam para ele cantar. Era aplaudido por todo o mundo.  Até que um senhor mais velho aproximou-se dele e disse que ele precisava se profissionalizar. Orlando ficou com isso na cabeça. Ao chegar para fazer um teste na Rádio Guanabara, no Centro, tão tímido, feio, magro e malvestido, os músicos fizeram chacota dele, principalmente porque o novato de 18 anos disse que podia cantar em qualquer tom.
Para o músico Luiz Barboza, produtor da Rádio Cajuti, que o recebeu para um teste, Orlando interpretou a valsa  Céu Moreno. Ao abrir a boca e soltar o vozeirão, todos levaram um susto. Ele era muito bom. O compositor Bororó (Alberto de Castro Simões da Silva, 1898/ 1986) convenceu-o a conhecer uma pessoa muito especial, em um determinado dia, em frente ao famoso Café Nice, na Av. Rio Branco. Orlando aceitou o convite.
E quem era essa pessoa? Nada menos do que Francisco Alves, o Rei da Voz, já fazendo um extraordinário sucesso em várias emissoras de rádio, recordista da indústria de discos de 78 RPM. No tal dia marcado, Chico Alves pediu para o rapaz cantar. Ao perceber que ele era tímido, convidou-o para entrar no carro. Orlando cantou Lágrimas. Chico Alves ficou encantado. A partir daí, decidiu ser o padrinho do cantor. Levou-o à Rádio Cajuti, onde ele estava estreando um novo programa. As músicas de Orlando eram sempre românticas, canções seresteiras, sambas-canção que vieram das antigas modinhas imperiais. Ele era eclético.
Nos seis anos seguintes, a vida do pobre Orlando Silva mudava. Ele gravava na RCA Victor, principal gravadora do país que tinha um elenco formidável. De Carmem Miranda a Chico Alves, de Vicente Celestino e, agora, Orlando Silva.  Vendia milhares de discos, atraía multidões para ouvi-lo nas emissoras. Daí o apelido dado pelo locutor  Oduvaldo Cozzi, Orlando Silva, o Cantor das Multidões.  Ficou amigo de Noel Rosa, embora o estilo dos dois fosse bem diferente.  Em 1936, Noel precisava gravar uma nova canção, mas o cantor convidado não apareceu no estúdio. Noel pediu ajuda a Orlando: o tempo de reserva do estúdio estava acabando. Orlando disse que o ajudaria, aprendeu rapidamente a música Menina dos meus olhos e foi gravar. Ficou ótimo. Vamos ouvir?

https://www.youtube.com/watch?v=jZN0cJvYWMo
Depois Noel perguntou a ele como conseguiu aquele feito, cantar de forma tão diferente. Orlando Silva respondeu que descobriu ter muitas vozes diferentes: a voz de Carnaval, a voz do samba e assim por diante.
Orlando se apresentava na Rádio Guanabara e na Rádio Transmissora, futura Rádio Globo, tornando-se ídolo número um. Com tantos compromissos, com muitas viagens e assédio de mulheres (logo ele que não era um bonitão), Orlando parecia exausto. Um homem se aproximou dele, certa vez, e ofereceu um pó mágico que não embebedava nem dava ressaca. O cantor olhou desconfiado para aquilo, mas aceitou e experimentou cocaína, novidade na época. Provavelmente sob efeito da droga, na Rádio Nacional, cantando ao vivo, chegou a chorar ao interpretar a música Caprichos do destino, música de Pedro Caetano e Claudionor Cruz. A música contagiou todos na plateia e até funcionários da emissora. Nunca se viu nada igual. O jornal A Noite fez uma reportagem especial sobre aquela apresentação.  A partir dali, a carreira deu um grande salto. Até o presidente Getulio Vargas admirava o cantor.
Um engraxate chegou a adverti-lo: “cuidado com a feitiçaria” Ele tinha visto a reação daquela apresentação na Rádio Nacional.  Todos enlouqueceram. O humilde engraxate arrematou: “Tenha cuidado. A feitiçaria geralmente se volta contra o feiticeiro”. É claro que Orlando não ligou para a advertência. O fato é que ele mergulhou no mundo da cocaína.  O público comprou o disco Lábios eu beijei (1937)e parece ter redescoberto o cantor que já vinha fazendo sucesso há alguns anos. Os discos batiam recordes de venda e até no Carnaval o cantor romântico surpreendia. Gravou Abre a janela, de Roberto Martins e Arlindo Marques Jr. e A jardineira, sucesso absoluto e símbolo do Carnaval brasileiro durante muitos anos. Vamos ouvir Abre a janela :

É bom lembrar que Orlando Silva entrou para a Rádio Nacional em 1936 e ajudou a colocar a emissora no primeiro lugar. Apesar de ser sempre elogiado pelo maestro Radamés Gnatalli, que fazia seus arranjos, Orlando Silva assustava alguns bons compositores que achavam que a música deles não era tão boa para o Cantor das Multidões. Assim, no repertório havia pérolas ao lado de mediocridades. Orlando Silva conseguiu ultrapassar em sucesso o padrinho Francisco Alves, algo inimaginável.

As apresentações em São Paulo, na Rádio Record, reuniram milhares de pessoas, todos abismados como aquele cantor dominava a voz. Só que Orlando não se sentia feliz. Pelo contrário, ao chegar ao hotel, depois de se apresentar para a multidão paulista, ficou agitado demais e passou mal. O enfermeiro chamado às pressas aplicou-lhe algo na veia que deu resultado. O que era? Morfina. Aquela mesma substância que usou quando teve o acidente de bonde. Acabou se viciando na droga que parecia tirar da mente todos os problemas.  Mas o vício acabou minando a sua vontade. Perdeu a humildade, passou a levantar a cabeça e fazer exigências contratuais, algumas, mais do que justas. Foi demitido da RCA e foi para a gravadora Odeon, mas não era a mesma coisa. Será que era a tal feitiçaria voltando-se contra o feiticeiro? A morte do padrinho Francisco Alves, em 1952, aumentou a tristeza. Orlando passou por altos e baixos na carreira. Casou-se com Maria de Lourdes Souza Franco, que o apoiou e tirou-o do vício. Orlando largou a carreira e passou os anos 60 e 70 longe dos microfones.  Morreu em 7 de agosto de 1978. Fez um sucessor: Nelson Gonçalves.
Vamos ouvir um fox, grande sucesso de Mário Lago e Custódio Mesquita, Nada além, em que O. Silva inova na arte de interpretar, mais uma vez. Aproximou-se das lindas canções de Cole Porter e Irving Berlin.


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