segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Radamés Gnatalli: o gênio que uniu o clássico e o popular no rádio

Rose Esquenazi







O nome parece complicado, mas, à medida que repetimos “Radamés Gnatalli”,   um mundo se abre para os apreciadores da boa música. Por isso, as novas gerações devem aprender não só a dizer o nome corretamente, mas conhecer melhor a obra desse gênio musical, um dos maiores compositores e arranjadores brasileiros. Puça no YouTube um trecho do sexteto Radamés Gnattali interpretando Cochichando, de Benedicto Lacerda & Pixinguinha. https://www.youtube.com/watch?v=53FB0GXJ9aQ
A Rádio Nacional, na sua fase mais importante, contou com a arte desse maestro e instrumentista, o primeiro a unir o clássico ao popular sem nunca perder o tom. Radamés foi um experimentador até o fim da vida.
Vou contar como tudo começou. Radamés nasceu em Porto Alegre, no dia 27 de janeiro de 1906. Seu pai era italiano e se tornou operário no Rio Grande do Sul. Como o italiano gostava muito de música, começou a tocar vários instrumentos, até se tornar maestro. Radamés era gago e só tirava zero nas provas orais. Irritado, o pai quis saber o que o menino queria ser na vida, afinal. Ele não teve dúvidas: desejava se dedicar à música. Já  estudava piano com a mãe desde os 3 anos. Aos 14, passou para o Conservatório de Música, onde ficou durante nove anos.
Em várias entrevistas que deu ao longo da vida, Radamés disse que entrou para um quarteto de cordas que tinha um bom repertório. Além de violista (de viola), era pianista e fez o primeiro concerto aos 18 anos, em 1924, no Rio de Janeiro. Como cursava o último ano de piano, voltou para se formar em Porto Alegre. Logo estava no  Rio novamente para tocar piano em diferentes orquestras: a Victor Brasileira, Diabos do Céu, Grupo da Velha Guarda, Orquestra Típica Victor. Ele compunha lindas valsas e chorinhos. Vamos ouvir o chorinho Cabuloso, na interpretação de Jacob do Bandolim, em 1949. Ouça um trecho: https://www.youtube.com/watch?v=JrxHEYjLTvs
O começo da vida no Rio foi de miséria e fome. Ele reconheceu que ele e outros  músicos, além do escritor Murilo Mendes, se reuniam, sem grana, na casa do pintor Portinari em Laranjeiras. Portinari ficava pintando e os amigos batendo papo enquanto esperavam uma oportunidade. Ao fazer arranjos para a RCA, em 1932, inventou o pseudônimo de Vero. Não pegava bem um erudito, compositor de música sinfônica, fazer arranjos populares. E por que Vero? Simplesmente porque a mulher de Radamés se chamava Vera Bieri, também pianista, com quem ficou casado durante 35 anos.
Na gravadora RCA Victor, Radamés substituiu Pixinguinha e começou a fazer arranjos orquestrais. Ele deu ênfase às cordas, algo novo na MPB, nos anos 30. Radamés tinha o sonho de viver da música erudita, ou de seus dos direitos autorais. Mas no Brasil, isso sempre foi difícil. Então, decidiu entrar para uma orquestra de rádio e depois trabalhou no cinema e na TV. Ele nunca se frustrou ao fazer música popular. Radamés afirmou que foi muito ligado ao Jacob do Bandolim, Heitor dos Prazeres, João da Baiana, Alcebíades Barcelos, o Bide, Marçal e Luciano Perrone. Cada um deu uma coisa diferente a ele.
Curiosamente, quando ele conheceu Pixinguinha, quase não se tocava música popular brasileira. “O negócio”, segundo ele, “era tango, fox trot e jazz. O jazz ganhou o mundo porque não se exigia uma orquestra cara. Apenas piano, contrabaixo um ou outro instrumento de sopro, explicou. O jazz também o influenciou. Mas a música de Radamés é toda brasileira, baseada em temas folclóricos e urbanos do Rio de Janeiro.  Ele sempre gostou de música popular, a começar com o tango que ouvia no Sul. “Se eu tivesse ido à Europa”, declarou, “poderia ter sido um grande pianista, mas nunca seria um compositor brasileiro”.  Na época, o samba estava restrito ao Rio de Janeiro, e ele mergulhou nessa atmosfera.
A primeira rádio em que pisou foi a Rádio Clube do Brasil, em 1924, que tinha um estúdio no Largo do Machado. Em 1930, passou a ser músico da orquestra. Depois foi para Rádio Cajuti e Mayrink Veiga.  Na Mayrink, ele tocava tudo, popular e erudito, mas ganhava mal. Chegou à Nacional no ano da estreia, em 1936.  Em seu depoimento, ele afirmou que não havia orquestra de música brasileira, existiam apenas o regional e a  orquestra de salão, com cordas e flautas, para tocar trechos de operetas, árias de óperas. Os arranjos vinham impressos, do exterior.
Radamés começou a fazer pequenos arranjos para trio: ele,  no piano, o Iberê Gomes Grosso, no violoncelo, e Romeu Ghypsman, no violino. Radamés conta que, naquele tempo, não havia um roteiro nos rádios. Em qualquer buraco na programação, ele tocava música para acabar com o silêncio. Por isso, começou a escrever. Depois os cantores, amigos de Radamés, gostavam e pediam para o músico fazer os arranjos.
Foi o próprio cantor Orlando Silva que pediu para gravar um disco de samba-canção e cordas. Era possível aquilo? Sim e os dois cresceram muito com essa novidade. Não só Orlando Silva, mas também a música de Francisco Alves e Sílvio Caldas ganharam outra dimensão. Um dos destaques desses arranjos incríveis foi Aquarela do Brasil composta para o teatro de revista Joujoux e Balangandans, em 1939. O compositor Ari Barroso não gostou da abertura, que tinha “tan, tan, tan - tan, tan”. Radamés bateu pé e reclamou: "Ô Ari, faz a música que eu faço o arranjo". O arranjador incluiu saxofones que deram grande impacto. Ouça Aquarela do Brasil, na voz de Francisco Alves, música de Ari Barroso e arranjo de Radamés.
https://www.youtube.com/watch?v=yyhPL2Q_Bog
Radamés trabalhava todo dia na Rádio Nacional até que recebeu o convite para fazer um programa de música popular de meia hora, com nove músicas de várias partes do mundo, ligadas uma na outra. O programa era Um Milhão de Melodias, patrocinado pela Coca Cola. Ele concordou, mas não queria mais ser pianista. Ele iria três vezes por semana à estação, faria os arranjos e entregaria ao copista. O programa, espécie de parada musical, ia ao ar às quartas-feiras. Radamés fazia os nove arranjos por semana, e, às vezes, a música era executada uma única vez, apesar de todo o capricho. Os diretores Paulo Tapajós e Haroldo Barbosa e um discotecário da Nacional escolhiam os sucessos mais populares do mundo e sabiam que o arranjador iria engrandecer ainda mais aquelas  músicas. Durante 13 anos, Radamés mostrou o seu brilho, que foi o auge de sua carreira.
A Nacional ganhou uma orquestra criada por Radamés, onde, ao todo, ele trabalhou durante 30 anos. Ele reconheceu que foi um dos maestros da estação responsáveis em “vestir” a música popular brasileira. Abandonavam-se os parcos recursos dos conjuntos regionais e criava-se um arranjo para uma orquestra inteira, com direito a violinos, pianos, flautas, tudo! Segundo Luiz Carlos Saroldi e Sonia Virgínia Moreira, no livro Rádio Nacional, O Brasil em Sintonia, “o ouvinte tornava-se mais exigente, acostumado pelo rádio com um tipo de linguagem musical mais sofisticada”. Só para se ter uma ideia, a Nacional tinha sob contrato 100 músicos, sendo 35 violinistas, nove violistas e seis violoncelistas.
            Havia outros maestros na Nacional, como Leo Peracchi e Lyrio Panicali. Eles eram os responsáveis por todas as coisas boas que se faziam por lá. Mas a Rádio Nacional não pagava bem. Segundo Radamés, a emissora funcionava como vitrine para que os músicos fossem convidados para fazer shows em outros lugares.
Quando Radamés ganhou o Prêmio Shell, em 1983, ele apresentou o Concerto nº. 3 - Seresteiro, para piano e orquestra. Como a música desse concerto é muito brasileira, ele colocou um regional junto com o piano. Mesmo nos anos 80, os puristas não gostaram muito de misturar regional com orquestra sinfônica. Radamés reagiu, então: “mas se o concerto é meu, eu escolho o repertório que vou tocar, é ou não é?”
Jairo Severiano, no livro Uma história da música popular brasileira, afirma que Radamés era um grande experimentador. E Mário de Andrade, uma das cabeças do movimento Modernista, escreveu que o músico tinha, abre aspas, “uma habilidade extraordinária para manejar o conjunto orquestral, que faz soar com riqueza e estranho brilho”. Na música Copacabana, de João de Barro e Alberto Ribeiro, interpretada por Dick Farney, na década de 1950, pode-se ouvir essa qualidade. A música ficou 64 semanas nas paradas de sucesso e tornou-se um clássico.  Ouça: https://www.youtube.com/watch?v=BRn_b7KVZO0
Sem medo das novidades, Radamés decidiu experimentar o cinema. Ele colaborou com o cineasta Nelson Pereira dos Santos e com o sambista Zé Ketti em dois  filmes importantes: Rio Zona Norte (1957) e Rio 40 Graus (1955). Em 1960, apresentou-se num sexteto que incluía acordeão, guitarra, bateria e contrabaixo. Compôs muitas músicas importantes e influenciou uma geração de jovens instrumentistas como Raphael Rabello, Joel Nascimento e Mauricio Carrilho, e para a formação de grupos de choro como o Camerata Carioca, de quem se tornou padrinho musical.  Ouça um trecho de Remexendo, de Radamés Gnattali, com a Camerata Carioca. https://www.youtube.com/watch?v=CC-HluUbjDM

Radamés foi parceiro e amigo de Tom Jobim, Cartola, Heitor Villa-Lobos, Pixinguinha Donga, João da Baiana, Francisco Mignone, Lorenzo Fernandez e Camargo Guarnieri. Foi um dos primeiros a gravar Ernesto Nazareth em disco. É autor do hino do Estado de Mato Grosso do Sul, que foi escolhida em concurso público nacional. Viúvo, casou-se com Nelly Biato Gnattali, pianista e cantora. A irmã, Aída Gnatalli, também foi uma exímia pianista e fundamental como copista de Radamés. Em 1986, ele sofreu um derrame que o deixou com o lado direito do corpo paralisado. Dois anos mais tarde,  sofreu outro derrame e morreu aos 82 anos, no dia 13 de fevereiro de 1988, na cidade do Rio de Janeiro.

Nenhum comentário:

Postar um comentário