A grande artista morreu aos 97 anos, no dia 16/4/2018
Rose Esquenazi
A doce voz de Dona Ivone Lara
combina muito bem com a excelente compositora e instrumentista que ela é. Ainda
hoje, aos 96 anos, Dona Ivone adora ouvir música e cantar. Não faz mais shows
porque, segundo sua secretária e anjo da guarda, Miriam Souza, que trabalha com
ela há 23 anos, a sambista teme esquecer as letras. Avessa às entrevistas,
mandou as respostas para as nossas perguntas por email. Olha que legal!
Ela disse que já participou de vários
programas de rádio, mas não se lembra dos nomes. Citou a MEC, a Globo, a Tupi e a Nacional, “entre muitas outras”.
Dona Ivone diz que sempre admirou
o trabalho dos cantores e cantoras de rádio de antigamente, “todos eram
fenomenais”, contou. Quase sem
rugas, com cabelo em parte branco, em parte negro, a sambista ainda é
reverenciada pelos seus admiradores. Um curta metragem será lançado em 2018 e
uma coletânea de sua obra, com CDs, partitura e livro, está à venda: é o Sambabook Music quekia. Atualmente, Dona
Ivone mora com o filho Alfredo Lara, no bairro de Oswaldo Cruz. Um de seus
maiores orgulhos é ver o neto, André Lara, dar continuidade a sua trajetória
musical.
Desde os sete anos, Dona Ivone
Lara tocava violão de sete cordas. Filha da costureira Emerentina Bento da
Silva e do carregador de caminhão José da Silva Lara, ela nasceu no dia 13 de
abril de 1921, no bairro de Botafogo. Yvonne da Silva Lara – seu nome completo
- perdeu o pai aos 3 anos e a mãe aos 12. Assim, foi criada pelos tios que a levavam a frequentar ranchos
carnavalescos que ficaram famosos no Rio, como a Flor do Abacate e o Ameno
Resedá. Foram esses parentes que a ensinaram a tocar cavaquinho e a ter o
costume de ouvir o samba ao lado do primo Mestre Fuleiro.
Dona Ivone teve muita sorte: aprendeu canto com Lucília Villa-Lobos, nada
menos do que mulher do maestro Villa-Lobos. Lucília chegou e elogiar a sua
aluna para a família.
Muito ligada às tradições
africanas, Dona Ivone Lara costumava desfilar no Bloco dos Africanos. Daí à
identificação com o jongo e com o partido alto, onde reinava outra mulher
excepcional, Clementina de Jesus. Aliás, é bom lembrar que Dona Ivone compôs um
lindo samba para homenagear a Clementina, chamada de Rainha Quelé. Ouça a música no YouTube.
Dona Ivone foi responsável pela
renovação do samba, ao lado de Anescarzinho do Salgueiro, Nelson Sargento,
Candeia, Martinho da Vila. Mas ela não quis viver só da música. Formou-se em enfermagem e chegou a se
aposentar nessa profissão, em 1977.
Na trajetória na área da saúde,
especializou-se em Terapia Ocupacional e foi assistente social em hospitais
psiquiátricos. No Engenho de Dentro, ela trabalhou com a excepcional médica
Nise da Silveira que revolucionou o tratamento psiquiátrico no Brasil.
Conhecida como Rainha do Samba e
também Matriarca do Samba, as composições de Dona Ivone ainda são muito tocadas
pelas novas gerações. Integrante do Império Serrano, ela foi a primeira mulher
a compor um samba-enredo e a fazer parte da ala dos compositores da agremiação.
Quem faz essa afirmação é o pesquisador Jairo Severiano, no livro Uma história da música popular brasileira.
O fato é que Dona Ivone se impôs
em um ambiente machista dos carnavalescos. Nas palavras dela na entrevista que
nos concedeu: “Se não tivesse talento, nem ousaria entrar nesse meio. Mas
tive coragem e a ajuda de meus primos que faziam parte da ala de compositores
do Império Serrano”.
A sambista teve dois filhos,
Alfredo e Odir, frutos de seu casamento, aos 25 anos, com Oscar Costa. Oscar
era ilustrador e consertava instrumentos
musicais. Filho de Alfredo Costa, presidente da Escola de Samba Prazer
da Serrinha. Oscar não gostava de samba,
mas deixava em paz a carreira da mulher.
Na escola, Dona Ivone conheceu os compositores que seriam seus futuros
parceiros, como Mano Décio da Viola e Silas de Oliveira. Não havia como não reconhecer o
talento dela. São de sua autoria sambas como Não me perguntes, Os
cinco bailes da história do Rio, título
do samba-enredo da Império de 1965.
Ouça no YouTube a música Acreditar, que Dona Ivone Lara compôs com Délcio Carvalho. É ela
também quem interpreta o samba.
Em 1975, o filho de dona Ivone
Lara, Odir, sofreu um grave acidente de carro. O marido Oscar Costa morreu logo depois. Desde que se aposentou da área de enfermagem,
em 1977, passou a se dedicar à vida de sambista. Chegou a trabalhar no cinema,
no filme A força de Xangô, de Iberê Cavalcanti, de 1978. Na TV,
participou como Tia Nastácia em alguns especiais do
programa Sítio do Pica-Pau Amarelo.
Dona Ivone
compôs Nasci para sonhar e cantar, que se tornou o hino da escola
Império Serrano, fundada em 1947, e onde passou a desfilar na ala das baianas. A letra é linda e a interpretação
também. Ouçam os versos:
O que trago dentro de mim/
preciso revelar / E o Sol do mundo de tristeza que a vida me dá / Me exponho a
tanta emoção / Nasci pra sonhar e cantar / Na busca incessante do amor / Que
desejo encontrar...
Tanta gente por aí / Que não
terá / A metade do prazer que sei gastar / Do amor sou madrugada / Que padece
não esquece / E que há sempre um amanhã /
Para o seu pranto secar.
Dona Ivone Lara, ainda
bem, vem sendo reconhecida em vida. Em 2008, ela interpretou a canção Mas Quem Disse Que Eu
Te Esqueço, no projeto Samba
Social Clube. Foi uma das melhores performances de todo o projeto. Em 2012,
finalmente, ela se tornou enredo da Império
Serrano, no
Grupo de Acesso. A homenagem tinha o seguinte título: "Dona Ivone Lara: O
enredo do meu samba". Há dois
anos, em 2015, entrou para a lista das “10 Grandes Mulheres que
Marcaram a História do Rio”. Suas músicas já foram gravadas por Clara Nunes, Maria Bethânia,
Caetano Velloso, Gilberto Gil, Paulinho da Viola, Marisa Monte e muitos outros
intérpretes.
Ainda hoje as suas músicas são lembradas nas rodas
de samba de todo o país. O neto André Lara segue a tradição de compositor
herdada da avó sendo que gravou com ela
e Diogo
Nogueira. Na
entrevista, Dona Ivone nos disse que se sente honrada, feliz e gratificada de
ver o neto continuando o que ela plantou.
“Vejo que ele se dedica, estuda, está fazendo shows
pelo Brasil e está esperando convites para fazer seu primeiro disco”. Não é fofo, Marcus Aurélio? Gravadoras, façam
os seus convites para o neto de Dona Ivone!
Na 21ª edição do Prêmio da Música Brasileira, a sambista foi a principal
homenageada. Dois anos depois, teve outro reconhecimento na 19ª edição do Trem
do Samba. Mesmo aos 96 anos, Dona Ivone Lara não se esquece dos nomes dos
compositores de que mais gosta: “Paulinho da Viola, Délcio Carvalho, Gilberto
Gil e Caetano Veloso”.
“Eu vim de lá, eu vim de lá pequenininho
/ Mas eu vim de lá pequenininho / Alguém me avisou / Pra pisar nesse chão
devagarinho / Alguém me avisou / Pra pisar nesse chão devagarinho / Sempre fui
obediente / Mas não pude resistir / Foi numa roda de samba / Que eu juntei-me
aos bambas / Pra me distrair / Quando eu voltar à Bahia / Terei muito que contar...
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