Rose
Esquenazi
A música Favela, de Roberto Martins e Waldemar Silva, tocada insistentemente nas rádios brasileiras nos anos 40, guarda o astral do
Rio no momento em que as favelas estavam aparecendo na cidade e ainda tinha
ares muito românticos.Roberto Martins nasceu no Rio
de Janeiro, no bairro do Riachuelo, dia 29 de janeiro de 1909. O pai português deu duro no armazém de secos e molhados,
até se tornar dono do comércio. Só que ele morreu quando Roberto, segundo filho
do casal, tinha um ano. O baque foi imenso. Sem reservas econômicas, a mãe
descobriu que podia defender alguns trocados tocando piano nos cinemas que
ainda passavam filmes mudos nos subúrbios cariocas. Foi assim que o menino foi
aprendendo a tocar e a apurar o ouvido.
Para ajudar no
sustento, o futuro compositor se tornou empalhador e, depois, se empregou no
comércio. No segundo casamento de sua mãe, as finanças melhoraram um pouco,
sendo que Roberto, em 1929, entrou para a Guarda Civil. Gostava de andar pela
Lapa e pela Praça Tiradentes, onde circulavam os boêmios, os compositores e
cantores. Tomou gosto pelas composições. Foram, ao todo, 197 sambas, 97
marchas, 16 batucadas, 12 sambas-canções, duas marchas-rancho, dois baiões, um
partido, boleros, quatro foxes, samba-exaltação, sete chorinhos, rumbas e até
tango. Era um músico eclético que mostrou a sua arte em 395 gravações. Casou
com Isaura e teve três filhos: Yole, Elizabeth e Jorge Roberto Martins,
jornalista especializado em música, que trabalhou na Rádio MEC FM até o ano
passado.
Francisco Alves, o Rei da Voz, demorou muito para aceitar gravar Favela. Se gravasse, todos sabiam, seria
sucesso imediato. Conhecendo a ansiedade de Roberto Martins, uma amiga em comum
dos dois, inventou um truque que deu certo. Em uma festa, Chico Alves gostou
muito do cachorrinho da moça e assim ela lançou um desafio: iria dar o cãozinho
quando Chico Alves gravasse a música de Roberto. Dito e feito.
Mas Favela não foi o primeiro samba do compositor. A estreia se deu com Justiça e foi composto quando Roberto ainda trabalhava como policial. A música não chegou a ser gravada, mas a letra foi comentada e publicada em uma revista especializada. Em 1933, o compositor conseguiu emplacar duas músicas que foram gravadas na Odeon: Segredo e Regenerado. Vamos ouvir na voz de Leonel Faria Regenerado, que fala dos mesmos temas escolhidos por Noel Rosa e outros compositores da época: boemia, orgia, regeneração.
Assim que foi
fazendo sucesso e emplacando as suas músicas, Roberto Martins cada vez mais
passou a frequentar o Café Nice. Nos anos 30, funcionava ali o ponto de
encontro informal de jornalistas, compositores, radialistas e boêmios. Todos
homens, com uma única exceção: a cantora Araci de Almeida. Roberto Martins e
Custódio Mesquita ajudaram Aracy a entrar na Rádio Educadora e na gravadora
Columbia. Queridinha de Noel Rosa, para ele, sua melhor intérprete, Aracy acabou
fazendo carreira na música durante muito tempo graças à ajuda dos amigos que
indicaram uma porta aberta no rádio. A
história do Café Nice está muito bem contada no livro de Jairo Severiano Uma história da música popular brasileira.
Localizado na
Avenida Rio Branco, o Café Nice era vizinho do Teatro Municipal, Hotel Avenida,
os bares da Galeria Cruzeiro, dos
jornais Diário Carioca, Jornal do Brasil,
O Globo, do Diário Carioca, da revista O
Cruzeiro, dos dancings, onde os homens pagavam para dançar com as mulheres
e as estações de rádio. Funcionavam ali a Rádio Cajuti, Sociedade, Cruzeiro do
Sul, Globo e Rádio Jornal do Brasil. No Nice, qualquer pessoa podia ter seu
escritório particular sem pagar nada a mais por isso. Os garçons davam recados,
procuravam as pessoas. Segundo Severiano, os convites e anúncios eram colados
nos espelhos do bar e todos se comunicavam através desses papeizinhos.
As letras escritas
por Roberto eram criativas e tinham a marca da simplicidade. Além disso, ele “limitava
as melodias à extensão de uma oitava” para qualquer pessoa cantar. Em 1949, compôs para o Carnaval Pedreiro Valdemar, com Wilson Batista. A
letra tinha tons socialistas. Valdemar construía edifícios e, depois, não podia
nem entrar no prédio. Ou fazia casas e não tinha onde morar.
Voltando ao Café
Nice, ponto de encontro dos músicos na Avenida Rio Branco: certa vez, no
Carnaval de 1944, Roberto Martins estava conversando com o fabuloso compositor
Geraldo Pereira, quando a mulher de Roberto chegou. Dona Isaura estava vestida
de baiana, mas estava tão desanimada que chamou a atenção dos dois amigos. Até
que Roberto disse. “Olha aí, Geraldo, a falsa baiana...” Sem querer, essa frase
inspirou a música Falsa Baiana,
assinada apenas por Geraldo Pereira.
Baiana que entra no samba, só fica parada//Não samba,
não mexe//Não bole nem nada//Não sabe deixar a mocidade louca//Baiana é aquela
que entra no samba//
De qualquer maneira//Que mexe, remexe//Dá nó nas cadeiras//Deixando a moçada com água na boca
De qualquer maneira//Que mexe, remexe//Dá nó nas cadeiras//Deixando a moçada com água na boca
Acho que Dona
Isaura não deve ter gostado nadinha da música que fez muito sucesso.Vamos voltar um
pouco no tempo. Roberto Martins saiu do posto de policial para o cargo de investigador.
Trabalhou dois anos nesse posto, pediu licença em 1939, mas nunca mais voltou.
Não precisava mais. Com Nássara, Roberto Martins compôs em 1939 um grande
sucesso. Com o título Meu consolo é você.
Orlando Silva, uma das mais belas vozes da música brasileira, ganhou o concurso
de músicas carnavalescas da prefeitura. Outro sucesso foi Cai, cai, que entrou para a lista dos clássicos carnavalescos,
continuou a ser tocada nos bailes das décadas seguintes. Carmem Miranda levou a
música para os Estados Unidos divulgando o nome de Roberto. É possível ouvir a
batucada na interpretação de Carmem no filme That night in Rio, de 1941.
Mesmo depois da
Época de Ouro, terminada em 1945, Roberto Martins continuou trabalhando.
Passeando pelos mais diversos gêneros, o compositor que morreu aos 83 anos, em
1992, era intuitivo e tinha grande imaginação. O Instituto Cravo Albin e a
Rádio Batuta, do IMS, fizeram homenagens à obra de Roberto Martins. Tendo como
intérpretes grandes cantores como Orlando Silva, Francisco Alves, Carmem
Miranda, por exemplo, Roberto Martins sentia cada vez mais segurança para continuar
compondo pérolas, como Meu consolo é você, Devagar com a louça,
Cordão dos puxa-sacos.
Sozinho ou com
outros compositores criou uma carreira sólida. Às vezes, o intérprete também
dava uma mãozinha para que a obra ficasse redondinha. O caso da música Beija-me é um desses exemplos. Um dos
primeiros sucessos de Nelson Gonçalves, a música de Roberto Martins e Mário
Rossi caiu como uma luva na voz de Elza Soares. Mãe aos 13 anos, a jovem Elza
apareceu no programa de Ary Barroso quando não tinha dinheiro nem para comprar
roupas ou ajeitar os cabelos. Ela modernizou esse samba em 1960. A
interpretação parece ainda hoje muito moderna. Zeca Pagodinho também tem uma linda versão
para a música, podem procurar no YouTube.
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