segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

Samba exaltação e o samba positivo



Rose Esquenazi


    
          A música Brasil, de Benedito Lacerda e Aldo Cabral, interpretada por Dalva de Oliveira e Francisco Alves, em 1939, exalta o Brasil e seu povo, o paraíso na Terra, “orgulho dos filhos teus”, cheia de fartura e riqueza. Pois bem, essa obra da música popular brasileira tinha um objetivo: falar bem do governo de Getúlio Vargas, que havia estabelecido o Estado Novo em 1937. Dois anos depois, o Departamento de Imprensa e Propaganda, o famigerado DIP, ia expandindo o seu poder e interferindo em todas as atividades artísticas, culturais, jornalísticas. 

          Já havíamos comentando aqui no seu programa a disputa entre Noel Rosa e Wilson Batista. O Poeta da Vila defendendo, com a sua música, os compositores como profissionais sérios e importantes. E Wilson batendo na tecla que o bacana mesmo era não trabalhar, explorar mulheres, viver na malandragem regada à muita bebida e samba.

          Em 1940, uma polêmica ocorreu durante o concurso musical chamado Noite da Música Popular, promovida pelo DIP. Ary Barroso, que já fazia sucesso, inscreveu a música Aquarela do Brasil no concurso e foi desclassificado. Os jurados, entre eles, o maestro Heitor Villa-Lobos, argumentou que a música não era carnavalesca e que o Carnaval não era palco para manifestações patrióticas ou de civismo. Ary ficou uma arara. Ele não tinha feito um samba patriótico e, no regulamento do concurso, não havia a exigência de que era preciso fazer música de Carnaval. 

           O fato é que o DIP queria mesmo acabar com os sambas negativos, que traziam a “marca do sensualismo”, que segundo as palavras de Álvaro Salgado, na revista Cultura Política, era algo “feio e indecente”. Ao contrário, queria incentivar a música que incentivava o bom  comportamento, o prazer de trabalhar muito, ganhar pouco e até ter muitos filhos. Um dos maiores ridículos que surgiram naquele tempo foi o samba É negócio casar, de Ataulfo Alves e Felisberto Martins. Curiosamente, se estimulava o casamento e a ideia de se ter mais de quatro filhos. Na letra, dizia-se que o presidente mandava premiar esses pais de tantos herdeiros. O que ninguém sabia é que essa política era uma cópia do que ocorria durante o regime fascista italiano. Mussolini queria mesmo aumentar a população e decidiu implementar a política, logo copiada por Getúlio Vargas.  Ouça É negócio casar, na voz de Ataulfo Alves, no YouTube.

           Aquarela do Brasil, ao que tundo indica, não foi feita para estimular o civismo. Mas outras canções da época tinham exatamente esse objetivo. Além de Brasil, podemos citar Canta Brasil, de Alcir Pires Vermelho e David Nasser. E também Onde o céu é mais azul, mais uma vez de Alcir Pires Vermelho, João de Barro e Alberto Ribeiro e outras mais.  O que a gente percebe é que praticamente todas têm grandes arranjos de orquestras, feitos por grandes maestros. Tenho que confessar que algumas são até belas músicas que voltaram a ser gravadas por outros intérpretes, como Gal Costa, 30, 40 anos depois.  

         O absurdo é tentar criar música com fórmulas, para agradar o presidente e o Estado Novo. Qualquer samba que falasse da miséria do povo, das dificuldades do trabalhador e de sua condição de vida não conseguia a autorização do Departamento de Censura do DIP. Assim, não podiam ser gravadas ou interpretadas. O mesmo tipo de restrição ocorreu durante a ditadura militar, a partir de 1964 até 1980. Depois do AI-5, tudo tornou-se mais difícil para a classe artística.

          A Rádio Nacional veiculava todas essas músicas ufanistas porque havia sido incorporada às empresas da União em 1940. E, desde que criou as emissoras em ondas curtas, a Nacional transmitia para o mundo essa ideologia positiva que escondia as nossas mazelas. O DIP chegou a inaugurar um programa chamado Hora do Brasil, na Rádio El Mundo, em Buenos Aires. A atração incluía as notícias e músicas que interessavam ao governo do Estado Novo. Como escreveu o jornalista e pesquisador Sérgio Cabral, no livro A MPB na era do rádio, para economizar, a produção chamava músicos e cantores locais que não conheciam o ritmo quente da MPB. Resultado, virava um pastiche malfeito e até ridículo.

        Os brasileiros que iam para Buenos Aires e, por acaso, ouviam o programa, ficavam com vergonha. Ary Barroso deu uma entrevista em que atacou a tentativa de conquistar os portenhos. Ele disse: “É uma vergonha para o Brasil. Estou para ver outro programa tão mal organizado e que desfaça tanto da música brasileira, a começar pela orquestra que não tem um brasileiro”. 

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