segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Ataulfo Alves: elegância e afinação



Rose Esquenazi

            A história de Ataulfo Alves é muito bonita. Ele foi um dos maiores compositores da segunda metade da Época de Ouro da música brasileira, nos anos 40, além de um grande ser humano. Quatro sambistas tiveram destaque nesse tempo, segundo o escritor Jairo Severiano: o próprio Ataulfo, Wilson Batista, Herivelto Martins e Geraldo Pereira. Ataulfo compôs mais de 320 canções, uma enormidade. Algumas delas são consideradas as mais importantes e inspiradas da música popular brasileira.
Nascido em Miraí, em Minas Gerais, ele foi leiteiro, condutor de bois, carregador de malas, menino de recados, engraxatemarceneiro, lavrador, faxineiro e prático de farmácia. Mesmo trabalhando desde criança, conseguiu frequentar a escola. O pai, Severino, o influenciou na música já que tocava viola, sanfona e fazia repentes. Ataulfo fazia improvisações com o pai, que ficou conhecido como músico na Zona da Mata. Na família, eram sete filhos:  Ataulfo, Alaor, Paulinho, Tita, Maria Mercedes, Maria Antonieta e Norina. 
Quando Ataulfo e os irmãos perderam o pai, a mãe decidiu se mudar da Fazenda Cachoeira para o Centro de Miraí. Ataulfo tinha dez anos.  Mas só em 1956 compôs a música Meus tempos de criança para homenagear a infância em Miraí. Ali estava uma frase que ficou clássica. Ele dizia “que era feliz e não sabia”.
Aos 18 anos, no ano de 1927, Ataulfo Alves foi embora de Miraí para  buscar oportunidades na capital, o Rio de Janeiro. Ele fazia companhia ao médico Afrânio Moreira de Resende, amigo de sua família e uma espécie de patrão e protetor. O médico que se mudava com a mulher e os filhos, contratou o jovem Ataulfo para trabalhar de dia em consultório na Rua da Assembleia, no Centro do Rio. À noite, o rapazote fazia limpeza na casa do médico. Era pau para toda a obra. 
            Humilde, sabendo que tinha que trabalhar para viver, Ataulfo Alves conseguiu um emprego na Farmácia e Drogaria do Povo. Ali, ele era limpador de vidros, aprendendo a ser prático de farmácia. O dono da farmácia gostava dele, confiava em Ataulfo. Na época, ele passou a frequentar as rodas de samba no Rio Comprido, onde passou a morar.
            Ataulfo achou fácil organizar um conjunto musical. Ele já tocava violão, cavaquinho, bandolim e, além disso, cantava. Nas suas palavras:  “Conforme eu manipulava as pílulas, manipulava também o samba". Aos 19 anos, casou-se com Judite. Na mesma época, ele conheceu uma jovem chamada Maria do Carmo, que era amiga das filhas do dono da farmácia. O sonho da moça era ser artista e não é que se tornou mesmo uma cantora de sucesso?  Logo depois, Maria do Carmo se transformava em Carmen Miranda. E a carreira da intérprete ganhava fama até no exterior.
            Em 1929, Ataulfo foi trabalhar em outra farmácia, a  Mello, que ficava no Catumbi. Não podia dar mole, afinal teve cinco filhos com Judith: Adélia, Ataulfo Júnior, Adeilton, Matilde e Adelino (que morreu jovem). Aos 20 anos, tornou-se diretor de harmonia de Fale Quem Quiser, bloco organizado pelo pessoal do Catumbi.
            Em 1933, o radialista Henrique Fóreis Domingues, Almirante gravou o samba de Ataulfo Alves chamado Sexta-feira. Era a primeira vez que uma música do mineiro era lançada em disco. Carmen Miranda também gravou uma samba de Ataulfo, a música Tempo Perdido. Tanto Carmem quanto Almirante divulgaram a obra de Ataulfo nas estações comerciais nos anos 30.
            Como todos os compositores da época do Estado Novo, Ataulfo Alves também sofreu censura do Departamento de Imprensa e Propaganda, o famigerado DIP. Com o parceiro Wilson Batista compôs para o Carnaval de 1941 o samba O Bonde São Januário. Essa linha de bonde levava os operários para as fábricas que existiam na Barreira do Vasco. Olhando aqueles rostos tristes dos trabalhadores que ganhavam tão pouco, Wilson e Ataulfo criaram a seguinte letra: “Quem trabalha não tem razão / Eu digo e não tenho medo de errar / O Bonde São Januário / Leva mais um operário / Sou eu que não vou trabalhar /.
            Pois bem, o Departamento de Censura alegou que era um samba politicamente incorreto e que, por isso, não seria liberado. A ordem de Getúlio era que todos deixassem de lado a boemia e fizessem a sua parte de sacrifício no trabalho. Os compositores conversaram e, como tinham pouco tempo para inscrever a música no concurso, mudaram a letra, que ficou assim: “Quem trabalha é que tem razão / Eu digo e não tenho medo de errar / O Bonde São Januário / Leva mais um operário / Sou eu que vou trabalhar / . Ou seja, o sentido contrário da letra original. Curiosamente, a música ganhou outras versões, paródias engraçadas.  Uma delas, parece ter saído da criatividade do próprio Wilson Batista, flamenguista doente para irritar os vascaínos. Dizia assim: “Quem trabalha não tem razão / Eu digo e não tenho medo de errar / O Bonde São Januário / Leva mais um português otário / Pra ver o Vasco apanhar .

          Com o compositor, radioator e escritor Mário Lago, Ataulfo compôs uma das músicas mais famosas do país e que todos sabem cantar até hoje. Ai que saudade da Amélia, que ouvimos no início do quadro. Ai que saudade participou de um concurso de música de carnaval de 1942, patrocinado pela Rádio Educadora. A música era interpretada por Ataulfo e suas Pastoras, sendo que ele gostava de usar um lenço branco para reger o seu conjunto de cantoras. O grupo emocionou o público no Estádio do Fluminense, onde acontecia o concurso. Isso, principalmente, quando Mário Lago disse ao microfone que Amélia era símbolo da mulher brasileira. A outra música concorrente também era excelente: Praça Onze, de Herivelto Martins e Grande Otelo. Os promotores do concurso se dobraram à vontade popular: as duas músicas venceram o concurso, deu empate. Foi seu maior sucesso. Depois de um tempo, Ataulfo e Mário Lago emplacam outro grande sucesso: Atire a primeira pedra, sucesso do Carnaval de 1944.  
            Na letra, o amante não tinha vergonha de ser chamado de covarde. Era válido se o amor voltasse para os seus braços. Ataulfo tinha uma grande presença nas rádios cariocas. Magro e elegante, o compositor gostava de andar com terno branco bem talhado. Muita gente achava que ele era rico. Mas isso não era verdade. Certa vez, ele contou como conseguiu ser apontado como um dos 10 mais elegantes pelo Ibrahim Sued, o colunista social que vivia na noite do Rio de Janeiro. Nas palavras de Ataulfo, foi isso que aconteceu: “Eu aparecia nas fotografias com um terno de 10 anos atrás. É que, naquela época, eu não podia pagar um bom alfaiate. Mas, depois de eleito (pelo Ibrahim), surgiram grandes alfaiates que, interessados em ganhar publicidade, ofereciam-se para me fazer roupas de graça". Que sorte a dele!
            Chamado pelos amigos de Garnizé, porque era baixinho tal como uma espécie pequeno de galo, Ataulfo marcou a música durante 35 anos. Ganhou reconhecimento e muitos admiradores. Era uma pessoa muito educada, gentil e querida que morreu antes de completar 60 anos de idade. Duas de suas músicas inspiraram o pintor Pancetti: Lagoa serena e Pois é. Em 1958, o cantor apareceu no filme Meus Amores no Rio.
            Constantemente, os sambas eram interpretados pelos cantores da época de ouro do rádio, nos anos 40. E depois também, ganhou entre seus intérpretes a cantora Clara Nunes e os grupos Quarteto em Cy e MPB-4.  

     Ataulfo Alves morreu no dia 20 de abril de 1969, no Rio de Janeiro, vítima de uma úlcera no duodeno. Vamos terminar com uma música alegre e que valoriza a beleza da mulher que sabe dançar samba. Mulata assanhada, interpretada com muito sucesso por Elza Soares. A letra diz assim: “Ai, mulata assanhada / Que passa com graça / Fazendo pirraça / Fingindo inocente / Tirando o sossego da gente”.  Talvez não seja politicamente correta no nosso tempo, mas acredito que era uma declaração de amor Ataulfo dizer para uma mulher: Ai, meu Deus, que bom seria / Se voltasse a escravidão / Eu pegava a escurinha / Prendia no meu coração / E depois a pretoria (na delegacia) / É quem resolvia a questão”.

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