Rose Esquenazi
A
história de Ataulfo Alves é muito bonita. Ele foi um
dos maiores compositores da segunda metade da Época de Ouro da música
brasileira, nos anos 40, além de um grande ser humano. Quatro sambistas tiveram
destaque nesse tempo, segundo o escritor Jairo Severiano: o próprio Ataulfo,
Wilson Batista, Herivelto Martins e Geraldo Pereira. Ataulfo compôs mais de 320
canções, uma enormidade. Algumas delas são consideradas as mais importantes e
inspiradas da música
popular brasileira.
Nascido em Miraí, em Minas Gerais, ele
foi leiteiro, condutor de bois,
carregador de malas, menino de recados, engraxate, marceneiro, lavrador, faxineiro e prático de farmácia. Mesmo trabalhando desde criança, conseguiu
frequentar a escola. O pai, Severino, o influenciou na música já que tocava
viola, sanfona e fazia repentes. Ataulfo fazia improvisações com o pai, que ficou
conhecido como músico na Zona da Mata. Na família, eram sete filhos: Ataulfo, Alaor,
Paulinho, Tita, Maria Mercedes, Maria Antonieta e Norina.
Quando Ataulfo e os irmãos perderam o
pai, a mãe decidiu se mudar da Fazenda Cachoeira para o Centro de Miraí.
Ataulfo tinha dez anos. Mas só em 1956
compôs a música Meus tempos de criança para homenagear a infância
em Miraí. Ali estava uma frase que ficou clássica. Ele dizia “que era feliz e
não sabia”.
Aos 18 anos, no ano de 1927,
Ataulfo Alves foi embora de Miraí para buscar oportunidades na capital, o Rio de
Janeiro. Ele fazia companhia ao médico Afrânio Moreira de Resende, amigo de sua
família e uma espécie de patrão e protetor. O médico que se mudava com a mulher
e os filhos, contratou o jovem Ataulfo para trabalhar de dia em consultório na
Rua da Assembleia, no Centro do Rio. À noite, o rapazote fazia limpeza na casa
do médico. Era pau para toda a obra.
Humilde, sabendo que tinha que
trabalhar para viver, Ataulfo Alves conseguiu um emprego na Farmácia e Drogaria
do Povo. Ali, ele era limpador de vidros, aprendendo a ser prático de farmácia.
O dono da farmácia gostava dele, confiava em Ataulfo. Na época, ele passou a
frequentar as rodas de samba no Rio Comprido, onde passou a morar.
Ataulfo achou
fácil organizar um conjunto musical. Ele já tocava violão, cavaquinho, bandolim
e, além disso, cantava. Nas suas palavras:
“Conforme eu manipulava as pílulas, manipulava também o samba". Aos
19 anos, casou-se com Judite. Na mesma época, ele conheceu uma jovem chamada
Maria do Carmo, que era amiga das filhas do dono da farmácia. O sonho da moça
era ser artista e não é que se tornou mesmo uma cantora de sucesso? Logo depois, Maria do Carmo se transformava
em Carmen Miranda. E a carreira da intérprete ganhava fama até no exterior.
Em 1929, Ataulfo
foi trabalhar em outra farmácia, a
Mello, que ficava no Catumbi. Não podia dar mole, afinal teve cinco
filhos com Judith: Adélia, Ataulfo Júnior, Adeilton, Matilde e Adelino (que
morreu jovem). Aos 20 anos, tornou-se diretor de harmonia de Fale Quem
Quiser, bloco organizado pelo pessoal do Catumbi.
Em 1933, o radialista Henrique Fóreis
Domingues, Almirante gravou o samba de Ataulfo
Alves chamado Sexta-feira. Era
a primeira vez que uma música do mineiro era lançada em disco. Carmen Miranda também gravou uma samba de Ataulfo, a
música Tempo Perdido. Tanto
Carmem quanto Almirante divulgaram a obra de Ataulfo nas estações comerciais
nos anos 30.
Como todos os compositores da época
do Estado Novo, Ataulfo Alves também sofreu censura do Departamento de Imprensa
e Propaganda, o famigerado DIP. Com o parceiro Wilson Batista compôs para o
Carnaval de 1941 o samba O Bonde São
Januário. Essa linha de bonde levava os operários para as fábricas que
existiam na Barreira do Vasco. Olhando aqueles rostos tristes dos trabalhadores
que ganhavam tão pouco, Wilson e Ataulfo criaram a seguinte letra: “Quem trabalha não tem razão / Eu digo e não tenho medo de errar / O
Bonde São Januário / Leva mais um operário / Sou eu que não vou trabalhar /.
Pois bem, o Departamento de Censura
alegou que era um samba politicamente incorreto e que, por isso, não seria
liberado. A ordem de Getúlio era que todos deixassem de lado a boemia e
fizessem a sua parte de sacrifício no trabalho. Os compositores conversaram e,
como tinham pouco tempo para inscrever a música no concurso, mudaram a letra,
que ficou assim: “Quem trabalha é que tem razão / Eu digo e não
tenho medo de errar / O Bonde São Januário / Leva mais um operário / Sou eu que
vou trabalhar / . Ou seja, o sentido contrário da letra original.
Curiosamente, a música ganhou outras versões, paródias engraçadas. Uma delas, parece ter saído da criatividade
do próprio Wilson Batista, flamenguista doente para irritar os vascaínos. Dizia
assim: “Quem trabalha não tem razão / Eu digo e não tenho medo
de errar / O Bonde São Januário / Leva mais um português otário / Pra ver o
Vasco apanhar .
Com o compositor,
radioator e escritor Mário Lago, Ataulfo compôs uma das músicas mais famosas do
país e que todos sabem cantar até hoje. Ai que saudade da Amélia,
que ouvimos no início do quadro. Ai que
saudade participou de um concurso de música de carnaval de 1942,
patrocinado pela Rádio Educadora. A música era interpretada por Ataulfo e suas
Pastoras, sendo que ele gostava de usar um lenço branco para reger o seu
conjunto de cantoras. O grupo emocionou o público no Estádio do Fluminense,
onde acontecia o concurso. Isso, principalmente, quando Mário Lago disse ao
microfone que Amélia era símbolo da mulher brasileira. A outra música
concorrente também era excelente: Praça
Onze, de Herivelto Martins e Grande Otelo. Os promotores do concurso se
dobraram à vontade popular: as duas músicas venceram o concurso, deu empate.
Foi seu maior sucesso. Depois de um tempo, Ataulfo e Mário Lago emplacam outro
grande sucesso: Atire a primeira pedra,
sucesso do Carnaval de 1944.
Na letra, o amante não tinha
vergonha de ser chamado de covarde. Era válido se o amor voltasse para os seus
braços. Ataulfo tinha uma grande presença nas rádios cariocas. Magro e
elegante, o compositor gostava de andar com terno branco bem talhado. Muita
gente achava que ele era rico. Mas isso não era verdade. Certa vez, ele contou
como conseguiu ser apontado como um dos 10 mais
elegantes pelo Ibrahim Sued, o colunista social que vivia na noite do Rio de
Janeiro. Nas palavras de Ataulfo, foi isso que aconteceu: “Eu aparecia nas
fotografias com um terno de 10 anos atrás. É que, naquela época, eu não podia
pagar um bom alfaiate. Mas, depois de eleito (pelo Ibrahim), surgiram grandes
alfaiates que, interessados em ganhar publicidade, ofereciam-se para me fazer
roupas de graça". Que sorte a dele!
Chamado pelos
amigos de Garnizé, porque era baixinho tal como uma espécie pequeno de galo,
Ataulfo marcou a música durante 35 anos. Ganhou reconhecimento e muitos
admiradores. Era uma pessoa muito educada, gentil e querida que morreu antes de
completar 60 anos de idade. Duas de suas músicas inspiraram o pintor Pancetti: Lagoa serena e Pois é. Em 1958, o cantor apareceu no
filme Meus Amores no Rio.
Constantemente, os sambas eram
interpretados pelos cantores da época de ouro do rádio, nos anos 40. E depois
também, ganhou entre seus intérpretes a cantora Clara Nunes e os grupos Quarteto em Cy e MPB-4.
Ataulfo Alves morreu no dia
20 de abril de 1969, no Rio de Janeiro, vítima de uma úlcera no duodeno. Vamos
terminar com uma música alegre e que valoriza a beleza da mulher que sabe
dançar samba. Mulata assanhada,
interpretada com muito sucesso por Elza Soares. A letra diz assim: “Ai, mulata assanhada / Que passa com graça /
Fazendo pirraça / Fingindo inocente / Tirando o sossego da gente”. Talvez não seja politicamente correta no nosso tempo, mas acredito
que era uma declaração de amor Ataulfo dizer para uma mulher: Ai, meu Deus, que bom seria / Se voltasse a
escravidão / Eu pegava a escurinha / Prendia no meu coração / E depois a
pretoria (na delegacia) / É quem resolvia a questão”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário