segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Chacrinha: panela no fogo, barriga vazia

     

Rose Esquenazi

     Antes de estourar na TV como o maior comunicador do país, Chacrinha, ou melhor, José Abelardo Barbosa de Medeiros, teve uma importante presença nas rádios. Nascido em Surubim, Agreste de Pernambuco, no dia 30 de setembro de 1917, mudou-se com a família para Caruaru. Aos 10 anos, foi para Campina Grande, Paraíba, e, aos 17, decidiu estudar no Recife. Apesar das várias crises financeiras na família, Abelardo teve uma infância e juventude tranquila. 
     Para evitar passar um ano no quartel, Abelardo falsificou o documento porque preferiu o Tiro de Guerra. Lá, ele ficaria menos tempo. Passou a tocar guitarra quando entrou para a Faculdade de Medicina, em 1936. Chegou a fazer uma palestra sobre os males do alcoolismo na Rádio Clube Pernambuco, e tudo indica que essa experiência mexeu com ele. Dois anos depois, formou um grupo musical, sendo baterista do Bando Acadêmico. Logo depois, embarcou em um navio para ir para a Alemanha. Não era bom instrumentista, mas foi aceito para tocar a bordo. Só que a Segunda guerra estourou e o navio não pôde seguir viagem. Abelardo acabou ficando no Rio de Janeiro e, no cais do Porto, viu um prédio impressionante: o Edifício A Noite, onde ficava a Rádio Nacional.
     Chacrinha veio com pouco dinheiro e, para sobreviver, trabalhava na loja O Toalheiro, na Praça Quinze. Lá, ele improvisava slogans engraçados. O locutor Enver Grego gostou do jeito do rapaz e o convidou para trabalhar em um programa na Rádio Club de Niterói, das 9 horas ao meio-dia. Ele topou, mas o salário era tão baixo que jamais conseguiria sobreviver com aqueles trocados. Decidiu apelar para o conterrâneo Fernando Lobo e foi assim que conseguiu outro emprego, como locutor na Rádio Tamoio, que fazia parte da Taba de Assis Chateaubriand. Antes de 1944, a Tamoio se chamava Rádio Educadora.
     Na pequena Rádio Clube de Niterói, já em horário noturno, Abelardo criou e fazia sozinho o programa O Rei Momo na Chacrinha. Isso porque havia ali  perto uma pequena chácara. O lugar vendia frangos, patos e outras aves, bichos que faziam a maior algazarra. Abelardo tentou ser locutor na Rádio Ministério da Educação, a Rádio MEC. Mas ele havia esquecido os documentos no Recife e não pôde ser contratado. Conseguiu o primeiro emprego de verdade na Rádio Vera Cruz. Os 11 mil-réis davam apenas para pagar um quartinho, depois de morar um tempo na Casa do Estudante, no Flamengo. Tentava conseguir anúncios para as duas rádios.
     Na Vera Cruz, era locutor e conseguiu um programa onde fazia um pouco de tudo. Apelou para o antigo amigo do Recife Nestor de Hollanda e conseguiu dele poemas românticos. Não imaginava que faria sucesso no horário do meio-dia. Outro amigo, Fernando Lobo, conseguiu o emprego de locutor na Rádio Tupi para Abelardo. A Tupi tinha um status muito melhor, pertencia à taba de Assis Chateaubriand. O maior empresário das comunicações da época era dono de vários jornais, revistas e centenas de estações de rádio no Brasil.
     Praticamente sozinho no estúdio da Rádio de Niterói, Abelardo, já se transformando em Chacrinha, fazia mil ruídos, como estivesse em um cassino de verdade. Segundo Lúcia Rito e Florinda Barbosa, no livro Quem não se comunica se trumbica, a programação das noites das rádios cariocas dos anos 40 se limitava a músicas lentas, tangos e valsas “entremeadas de poesia, crônicas sentimentais e pregações religiosas de Alziro Zarur”. Eis que, de repente, Abelardo escolheu um arranjo da ópera Aída, de Verdi, que “aparecia como estribilho entre as músicas e dava a impressão de que a transmissão do baile de Carnaval que acontecia ali era ao vivo”. Com a chegada da quaresma, o comunicador deu outro título à atração: Cassino da Chacrinha.
     No livro da jornalista Lúcia Rito e de Florinda Barbosa, há um texto em que Chacrinha confessa que foi o primeiro disc-jóquei a ser prostituído. No caso, no começo dos anos 40, ele ganhava uma grana por fora para tocar as músicas editadas pela Editora Vitale. Assim, o Trio de Ouro, Benedito Lacerda e outros músicos não paravam de tocar. Esse comportamento dos disc-jóqueis chamado de jabá pode ser criticado porque prejudica outros talentos que não têm espaço no rádio.
Antes de 1946, os cassinos eram grande fonte de trabalho e dinheiro para os elencos dos rádios.  Além das transmissões, as emissoras organizavam excursões com cantores pelo interior do país e faturavam uma grana. Com  o jogo foi proibido no Brasil, parecia que existia ainda um funcionando. Chacrinha batia em copos, jogava fichas, fazia vozes. O programa ficou famoso sendo que o apresentador ganhou o apelido de “o louco da madrugada”. Nas rodas do Café Nice e de outros bares da cidade, a pergunta era essa: “Você já ouviu o louco varrido que tem lá na Rádio de Niterói”. Por essa razão, quando apareceu pela primeira vez no Café Nice, no Centro, Abelardo logo chamou atenção. Ele era o rapaz de Niterói, aquele da Rádio Clube. O sucesso fez com que o Cassino da Chacrinha se transferisse para a Rádio Tamoio, que ficava no segundo andar do prédio da avenida Venezuela, perto do Porto.
      Era comum turistas acreditarem piamente que se tratava de um cassino de verdade.  Um casal argentino, vestido com trajes de noite, chegou ao estúdio apertado e pobre, e pediu muitas desculpas. Disseram que o motorista tinha errado o caminho. Teve até um jornalista, José Mello, do Jornal do Commercio, que escreveu que uma estação de radiotelefonia teve “o desplante de permitir que um cidadão de duvidosa sanidade mental” transmitisse um programa de um antro de perdição, um templo de vício, de um  cassino. Tratava-se, segundo ele, de um atentado “contra o bom senso, a ética, a moral”.
     Havia um anunciante que fazia propaganda da água sanitária Clarinha no programa do Chacrinha. Quando o anunciante desistiu do anúncio, os fãs do programa da Rádio Clube de Niterói já haviam se acostumado com o bordão e, assim, Chacrinha passou a gritar “Terezinha”. Existem outras duas versões: a de uma fã que ligava todos os dias para a emissora e o nome dela era Terezinha. Será? Por fim, a irmã da cantora Rosimere, uma linda garota propaganda, também se chamava Terezinha. O apresentador gostava dela, pelo que tudo indica.
     Chacrinha morava em um quartinho em um porão na Rua Cândido Mendes, no bairro da Glória. Afinal, ele tinha chegado com apenas 200 mil-réis no Rio. Em um determinado momento, Assis Chateaubriand pediu uma programação mais popularesca. Assim, foram contratados algumas estrelas, como Ademilde Fonseca e Claudete Soares, na Rádio Tamoio. Abelardo trabalhava de meia noite às duas da manhã. O programa já tinha certa audiência tanto que, em 1947, quando viu um incêndio nos estúdios da emissora, decidiu fazer um apelo aos ouvintes para que chamassem os bombeiros. O alerta foi dado e assim foram evitados grandes danos ao equipamento e instalações da emissora.
     Chacrinha mudava muito de estações de rádio, comportamento que vai repetir quando estrear na TV nos anos 50. Trabalhava ao mesmo tempo na Rádio Tamoio e na Rádio Mauá. Como o diretor Antonio Maria pediu dedicação exclusiva, e Abelardo saiu da Tamoio. Com a saída de Antonio Maria,  Chacrinha voltou para a Tamoio e ganhou dois programas: Vesperal das Moças, aos sábados, tentando concorrer com a maior audiência da época, o Programa César de Alencar, e voltou com seu Cassino da Chacrinha.
     Walter Clark, criativo diretor da TV Rio e da Rede Globo, contou em sua biografia, que aprendeu muita coisa na Rádio Tamoio, em 1952.  Ele era ajudante do jornalista Luís Quirino e aprendeu com a convivência com Chacrinha. Saber como funcionavam os bastidores de um programa de rádio foi fundamental para uma pessoa como ele que trabalhava na área comercial.
     No livro O campeão de audiência, Walter Clark contou que, mesmo com certo sucesso, “Chacrinha era um pária social na Tamoio e no rádio do Rio de Janeiro. Era uma pessoa marginalizada”. Muitos anos mais tarde, já na TV Rio e depois na TV Globo, Walter vai convidar Chacrinha para atrair o público nas tardes de sábado. A TV não era mais um rádio com imagens porque Chacrinha soube aproveitar o melhor que a TV possui, que é a imagem. Primeiramente em P&B e depois em cores. É bom lembrar esse detalhe para o público jovem.
     Mas vamos voltar ao Chacrinha no rádio. Pode parecer fácil, mas é muito difícil criar bordões. Abelardo gostava das frases populares e tiradas engraçadas. Por exemplo, ele dizia: “Eu vim pra confundir, não pra explicar”. Era comum para ele percorrer as ruas e ouvir os bordões que os vendedores improvisavam na hora. Anotava as frases e testava no programa. Se dessem certo, ele repetia. Se não agradassem, ele esquecia. Alô, alô, seu Amaral. Quem inventou a higiene mental?”Alô, alô, dona Maria, panela no fogo, barriga vazia!”     
     Pode parecer que tenha sido um alienado, mas ele trazia alegria para o público, muitos cantores proibidos pela censura ganharam visibilidade participando de seu programa. Na TV, é bom que se diga, Chacrinha herdou as atrações de calouros e alguns fantásticos cantores foram descobertos no rádio.  Chacrinha morreu no Rio de Janeiro, no dia o Cassino da Chacrinha no programa Por toda a minha vida, da TV Globo. Trata-se de uma recriação da trajetória de Abelardo e está disponível no YouTube.

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