segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Maria Muniz: a Sherazade do Rádio





Rose Esquenazi


     Grande personagem feminina do rádio brasileiro, a Maria Muniz ainda é desconhecida do público. No radioteatro, ela deixou de lado as tramas ficcionais, às vezes, exageradamente delirantes, e partiu para a ficção ligada aos temas da vida, de pessoas reais. Era roteirista e radioatriz. Além disso, Maria Muniz se dedicou aos programas voltados à literatura e à mulher. Foi pioneira e surgiu antes de Edna Savaget, Martha Suplicy, Hebe Camargo e Ana Maria Braga. Maria também foi produtora de uma das mais famosas criações da Rádio MEC, o programa Quadrante. Às 8h da manhã, com reprise no dia seguinte, ao meio-dia, Quadrante trazia uma crônica por dia. A seleção era de primeira: Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meirelles, Paulo Mendes Campos eram alguns deles. O mais famoso locutor desse programa foi o ator Paulo Autran. Não encontrei nenhuma crônica do Paulo Autran gravada para mostrar para vocês. Mas vamos ouvir, na voz de Garcia Xavier, a crônica de Paulo Mendes Campos, “O clube dos asmáticos”,  que foi irradiada na Rádio MEC, em 1963.  

      Nascida em 1905, no Espírito Santo do Pinhal, interior do Estado de S. Paulo, Maria Muniz sempre foi ousada e destemida. Ela gostava das brincadeiras dos meninos, seus irmãos, mais do que as das meninas. “Eu não tinha medo de coisa nenhuma”, revelou Maria Muniz na biografia assinada por Ricardo Cravo Albin, Luiz Antonio Aguiar e Mayra Jucá, lançada em 2005. Assim foi que passou a andar de motocicleta, algo incomum em 1927.  Ia à escola de patins e se apresentou sozinha para fazer as provas do Instituto de Educação.  Ou seja, uma feminista nata.

     No Rio de Janeiro, se aproximou do rádio, onde começou a pensar nos programas educativos e feministas. Ela se perguntava: “Por que a mulher há de ser burra? Tudo o que um homem pode aprender a fazer, a mulher também pode. Se eu fosse ouvir os conselhos das mulheres do meu tempo, tinha ficado uma carola, sem audácia, sem perseverança”.

    Um dos primeiros programas que Maria Muniz participou foi Tesouros imortais, com Teófilo de Barros Filho, na Rádio Jornal do Brasil. Nesse programa, intuitivamente, os produtores inseriram a publicidade no corpo do projeto, adiantando a ideia de merchandising. Quem patrocinava o programa era Eduardo Guinle, integrante da família brasileira mais rica na época. Um ano depois, a Rádio Guanabara ofereceu a Maria o dobro do que ganhava.

    Nesse tempo, Maria estava separada, tinha um filho e morava com uma amiga. Em 1948, na Rádio Guanabara, estreou A felicidade é quase nada. Nas palavras de Cravo Albin, “eram crônicas sobre “situações do cotidiano feminino, nas quais ela expõe diretamente sua opinião e se coloca no lugar de conselheira”. Tanto era novidade quanto uma histórica contribuição.  A felicidade é quase nada ia ao ar às segundas e quartas-feiras, às 14h30. Às segundas, Maria escrevia uma crônica de 15 minutos chamada “Vale a pena ser bela”. Como fez muito sucesso, o quadro passou a ser Hora feminina, às terças, quintas e sextas. Em todos os programas, havia um número musical.  Terminavam com dicas culturais na seção Divertimentos. Às quartas, Maria fazia o quadro Louras ou morenas.

    Segundo o biógrafo Ricardo Cravo Albin, a maior importância de Maria Muniz foi desenvolver uma linguagem nova. Conversava diretamente com as ouvintes, usando a fala usual das donas de casa e das empregadas do comércio. E como fazia sucesso! Quando os ouvintes imaginavam que ela daria conselhos de como cuidar da beleza feminina, ela esclarecia: “Quero fixar bem que Louras ou morenas  visa principalmente à educação espiritual da mulher. Importo-me muito mais com o que pensam as mulheres do que com a aparência que ostentam. Quero assim esclarecer que viso, nesses poucos minutos, dedicar-me exclusivamente à sua alma, minhas queridas amigas”.

     Não é interessante esse conceito? É claro que Maria Muniz sabia que se podia e se devia corrigir os defeitos físicos e desenvolver a beleza exterior. Mas ouçam o que ela escreveu para  A felicidade é quase nada: “Podemos também – e talvez com mais facilidade ainda – destruir em nós as fealdades da alma e aumentar o poder do espírito. Pode-se, portanto, adquirir uma beleza moral. Basta para isso elevar os pensamentos, aprimorar os sentimentos e cultivar os dons intelectuais...”

    Maria escrevia pequenos esquetes de radioteatro em A felicidade é quase nada. Geralmente, eram dois personagens que contracenavam. Situações simples que duravam cinco minutos e acabavam com uma mensagem que Albin dizia ser “a moral da história”.  Havia também a leitura de cartas dos ouvintes.

    Maria Muniz passou da Rádio Guanabara para a Rádio Tamoio. Em uma autoavaliação, ela reconheceu “não haver quem escrevesse roteiros como ela. Suas histórias também eram ótimas”.  Isso é, até que surgiu uma colega muito talentosa. Adivinhem quem era? Nada menos do que Janete Clair. Maria admitiu que a colega era genial.

     Havia outro programa muito popular assinado pela radialista: Eu acredito em milagres. Enorme sucesso da Rádio Tamoio, ficou em primeiro lugar na audiência e teve a duração de 11 anos. Maria contava casos extraordinários relatados por ouvintes que escreviam para a emissora. Eventualmente, inventava histórias quando os casos não eram tão bons.  Acabou ganhando  o reconhecimento e uma Láurea da Cúria Metropolitana, em 1954. O cardeal D. Jaime de Barros Câmara disse assim à Maria: “A senhora é a responsável pela maior campanha de apostolado laico que este país já viu. Sua Santidade o Papa está lhe concedendo uma Láurea. A senhora será condecorada e sua família será abençoada até a terceira geração”. Maria levou um susto. Não imaginava que um programa de rádio teria tanta repercussão.

    Vamos ouvir um trecho com Encontro com a literatura, que ia ao ar na Rádio MEC, às sextas, às 20h30. Nessa edição que tem um som baixo, que não resistiu ao tempo, Maria entrevistou o escritor, poeta e jornalista Álvaro Moreyra. A entrevistadora do programa Maria Muniz descreve biblioteca da casa de Álvaro, “uma floresta de livros”. Ela faz perguntas diretas e um tanto formais. Ainda ressalta os erres e os esses, como se fazia antigamente.  Em 30 minutos, o ouvinte se aproximava e se apaixonava pela obra e vida de vários escritores. Quantos programas de literatura existem hoje nas rádios brasileiras?  

    Maria Muniz perguntava qual foi o primeiro amor da vida do entrevistado, como era a mãe, pedia para descrever a casa da infância, qual foi o primeiro desejo, por aí vai. É bom lembrar que o próprio entrevistado, Álvaro Moreira, que vamos ouvir aqui, era  imortal da Academia Brasileira de Letras, e também atuou no rádio. Primeiramente, na Rádio Cruzeiro do Sul e depois na Rádio Globo, onde escrevia e apresentava Bom dia, amigos, uma crônica diária de cinco minutos de duração. Gostaria de agradecer a Michelle Tito, da Central de Pesquisa da Empresa Brasil de Comunicação e Aline Brettas, da Rádio MEC, que conseguiram esses programas para o quadro O Rádio Faz História.

    Mas por que   Sherazade do Rádio. Segundo Mayra Jucá, que escreveu uma tese sobre a radialista,  o apelido foi dado por Manoel Bandeira, ou à sua máquina de escrever, por Nelson Rodrigues. O livro em homenagem à radialista foi publicado quando ela fez 100 anos, em 2005, Segundo, Mayra Jucá, ela ainda tinha “histórias dignas de encantar o Sultão Shariar por mil e uma noites”.

    Maria Muniz era também inspetora de ensino, radialista  e, durante um tempo, chefe da divulgação da Rádio MEC. O programa Poesia necessária, na Rádio MEC, durou muitos anos. Era dedicado aos grandes poetas nacionais e internacionais. Amiga de Arminda, Villa-Lobos, escreveu também Villa-Lobos, sua vida e sua obra. Infelizmente, procurei por trechos desses dois programas e não encontrei. Vamos ouvir mais uma edição do programa Quadrante, que ficou no ar muitos anos na Rádio MEC e foi produzido por Maria Muniz. Um dos locutores mais famosos do Quadrante, como já contei,  foi o ator Paulo Autran. 

     Paulo Autran disse, em entrevista, que foi “contratado em 1957 por Murilo Miranda para ler as crônicas do programa Quadrante na Rádio Ministério da Educação”. Nesse tempo, Maria foi anjo bom. “Era quem me fazia companhia, aplainava dificuldades burocráticas, resolvia pequenas complicações”. O ator sentia orgulho de ler uma crônica a cada dia da semana principalmente porque eram grandes nomes, tais como Carlos Drummond de Andrade, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino e Dinah Silveira de Queiroz. Era um dos programas com maior audiência da emissora. Na época da ditadura, cortaram a participação de Paulo Autran. A censura achava a que havia liberdade artística demais no programa. Mais tarde voltou ao ar. 

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