Rose Esquenazi
Se você jurar - de Ismael, Nilton
Bastos e Francisco Alves
Ouvimos um
trecho de Se você jurar, de Ismael, Nilton Bastos e
Francisco Alves.
A história de Ismael Silva é muito
interessante. O Bamba do Estácio escreveu mais de 200 canções e tornou-se o
legítimo representante da época de ouro da música popular brasileira. Ele foi o
grande parceiro de Noel Rosa e fundador, ao lado de outros músicos, da primeira
escola de samba do Rio de Janeiro, a Deixa Falar, em 1928. Morreu pobre, como
muitos outros músicos.
Como ensina o pesquisador Jairo Severiano, no livro
Uma história da música popular brasileira,
os novos compositores do Estácio, inclusive Ismael Silva, aos 13 anos,
acreditavam ser os professores do samba.
Afinal, eles mudaram o ritmo que já existia. Como ensaiavam perto da
Escola Normal, que forma professores, se sentiam mestres. Os vizinhos começaram
a debochar do nome: “Mas que escola, que
nada”. Reunido, o grupo teria reagido com essa expressão: Deixa falar. Foi aí que Ismael resolveu organizar o grupo uniformizado, cujo embrião foi o bloco A União Faz a
Força.
No porão de uma casa de cômodos, os
integrantes ensaiavam as músicas, os passos, os volteios. Impressionaram e
deslumbraram todos os viram pela primeira vez vestidos com tecidos brilhantes e
enfeites cintilantes. Incluíram também o surdo e a cuíca, pela primeira vez. Isso
em 1928. Hoje, os historiadores
classificam a escola como rancho, que durou três anos apenas. Mas não importa.
A partir dessa agremiação, surgiram as outras escolas de samba. Em seu
depoimento no Museu da Imagem e do Som, Ismael Silva revelou que foi ele quem criou
o novo samba para ajudar na fluidez do desfile. Com os sambas anteriores, não
era possível desfilar. Na verdade, não foi ele sozinho e sim seu grupo de
bambas.
Frequentador do Bar Apollo e do Café do
Compadre, no Estácio, Ismael conviveu com inúmeros sambistas. Mano Edgar,
Baiaco, Mano Rubens (Rubens Barcellos), Nilton Bastos, Brancura, Bíde, Marçal,
Francelino Ferreira Godinho e outros. Eles também gostavam das rodas de samba
que aconteciam no morro do Salgueiro e da Mangueira. Alguns eram conhecidos como malandros, que gostavam de brigar e
detestavam trabalhar.
Ismael nasceu no dia 14 de setembro
de 1905, em Jurujuba, praia que fica perto de Niterói. Filho de cozinheiro e de
lavadeira, ele tinha cinco irmãos. Por conta das dificuldades financeiras, a
mãe, já viúva, mudou-se para o bairro do Estácio. Ismael pediu para ir à escola,
mas era muito cedo ainda. Aos 7 anos, o menino decidiu: foi para a escola sozinho
e disse para a professora que queria estudar. Com a permissão, o aluno sobressaiu
com boas notas. Aos 15
anos, Ismael compôs o
samba Já desisti. Aos 18, terminou o ginásio e empregou-se na Central do Brasil e no
escritório de um advogado. Não ficou muito tempo.
Em 1925, aos 20 anos, teve o primeiro samba gravado: Me faz carinhos. A música chamou a atenção de Francisco Alves, que já era o maior cantor brasileiro. Em 1927, internado no Hospital da Gamboa, Bide informou que Francisco Alves, queria comprar seu samba Me faz carinhos por 100 mil réis. Em 1928, o próprio Rei da Voz apareceu de carro na frente do Bar Apollo e mandou chamar Ismael. Pediu que ele cantasse todas as músicas que havia composto. Foi assim que Chico Viola propôs parceria exclusiva. Todos os sambas teriam o nome de Francisco Alves em parceria com Ismael Silva. O material seria gravado e entraria na rádio mais popular da época porque apostava no samba, a Mayrink Veiga. Ismael topou, mas tinha uma questão: as músicas também foram compostas por Nilton Bastos. De 1931 a 1940, a Época de Ouro da música brasileira, 32% de todas as gravações eram sambas.
Com esse argumento, formou-se o trio que ficou
conhecido como Bambas do Estácio, em
1928. É dessa época o
samba que ouvimos na abertura do quadro, Se você jurar. Muitos dizem que a música toda era de Nilton
Bastos. Considerado um dos mais belos da história, foi lançado em
1931 e teve 100 gravações diferentes. O sucesso do trio foi imediato. Mas
Nilton Bastos morreu cedo, em 1931, e ficaram Chico e Ismael. Um cantava e o
outro compunha. Segundo Jairo Severiano, o acordo foi bom para a dupla porque
projetou o compositor desconhecido.
Na sociedade, Chico gravou Que Será de Mim, A Razão Dá-se a Quem Tem,
Para Me Livrar do Mal, Sofrer É da Vida, Amor de Malandro, Quem Não Quer Sou
Eu, Nem É Bom Falar, Ao Romper da Aurora, Ando Cismado, a já citada Se Você Jurar e Tristezas Não Pagam Dívidas.
Ismael gostava de se vestir bem, era elegante com
seu terno branco de linho ou azul marinho. Com a morte de Nilton Bastos, ele se
encontrou com o fabuloso Noel Rosa. Tornou-se o maior parceiro do compositor de
Vila Isabel. Ao todo, compuseram nove composições. Entre elas, Para me livrar do mal, Adeus, Gosto, Ando
Cismado. Vamos ouvir Quem não quer
sou eu, com Francisco Alves.
Ismael Silva aprendeu violão com
Gorgulho, integrante do regional de Benedito Lacerda. A parceria com o Rei da
Voz durou 10 anos. Nos shows, muitas pessoas perguntavam quem era Ismael Silva.
Tantas vezes isso aconteceu que, uma noite, o cantor apresentou à plateia o
parceiro de muitos sucessos. Levou-o ao palco e proclamou: “Este é o Ismael Silva,
o preto de alma branca!”
Havia preconceito racial explícito
e Ismael sofreu por ser negro e de origem pobre. Mas a originalidade do samba
se impôs e conquistou os brancos. Ary Barroso, Noel Rosa, Mário Reis e Francisco
Alves passaram a conhecer os segredos do samba e a sincopação mais rica.
Segundo explicou o musicólogo Carlos Sandroni, o ritmo ficou livre da
influência do maxixe. Vamos ouvir o Rei
da Voz interpretando Tristezas Não Pagam
Dívidas.
Nas pesquisas do escritor Luis
Antônio Giron, na obra Mário Reis: o fino
do samba, ele chegou à conclusão que, aspas: “Ismael destacava-se dos
outros, pois se vestia melhor, usava jóias e era homossexual assumido”. O que
hoje é visto com naturalidade, naquela época era sinônimo de defeito físico e
moral. O escritor Paulo Lins, no seu livro Desde
que o samba é samba, tocou no mesmo assunto. As informações irritaram os
amigos de Ismael Silva que não concordaram com a interpretação do autor de Cidade de Deus.
Há também outras versões, de que
Ismael teria tido um único romance na sua existência. Teria sido com a passista
chamada Diva Lopes Nascimento, com quem teve uma filha, nunca assumida por ele.
É bom lembrar que Ismael teve uma
história triste que o marcou para sempre. Com personalidade impetuosa, em 1935,
deu dois tiros em Edu Motorneiro, um valentão que se engraçou com insultos dirigidos
à irmã de Ismael. Ele foi preso, mas, devido a seu comportamento, a pena foi
reduzida à metade. Quando saiu da prisão, ficou deslocado no meio musical. Noel
já havia morrido e a parceria com Francisco Alves terminado havia muito tempo. Na
época, a área musical estava bem organizada e mais profissional. O compositor
se retraiu. Ismael conseguiu emplacar um ou outro sucesso, como Antonico,
com Alcides Gerardi. Na
gravação, podemos ouvir a voz de Ismael Silva. A música foi regravada, em 1971,
pela cantora Gal Costa.
Na lista de composições de Ismael
Silva estão também Liberdade, Uma Jura
que eu Fiz, Até Amanhã, Adeus, Deixa Falar e Boa Viagem. Em vida, ele ganhou
o título de Cidadão Samba, pela Associação das Escolas de Samba do Brasil. Participou do show O Samba Pede Passagem, no Teatro Opinião, em 1965. Três anos
depois, os jornalistas Sérgio Porto, Sérgio Cabral e Lúcio Rangel decidiram
trazer à tona o samba, incluindo os bambas da Velha Guarda. Eles convenceram a
antiga TV Record a lançarem o festival A Bienal do Samba, onde surgiram novos
compositores e intérpretes que amavam o ritmo. Os jovens, como Baden Powell,
Paulo César Pinheiro e Chico Buarque, se destacaram mais do que os mais velhos.
A exceção foi Cartola que apresentou o lindo samba Tive sim.
Nos anos 70, Ismael Silva passou a se
apresentar na boate Jogral, em São Paulo, e ganhou a medalha de Grande Sambista.
Os convites eram um reconhecimento e uma forma de ajudá-lo a ganhar algum
dinheiro em uma época difícil para quem envelhecia no Brasil. Chico Buarque de Holanda declarou
que fora ele, Ismael, o seu grande influenciador, bem mais do que Noel Rosa. Em 1972, em seu
aniversário, recebeu um bilhete de Chico Buarque que dizia: "Ismael, você
está cansado de saber da minha admiração pelos seus sambas. Você sabe o quanto
lhe devo por toda sua obra. O Sérgio Cabral está lhe entregando o meu presente
pelo seu aniversário. É muito menos do que você merece. Um grande abraço, de
coração". Ismael
Silva guardou o cheque durante algum tempo: era o prêmio que Chico tinha
recebido do Governo do Estado da Guanabara.
No fim da vida, pobre e esquecido,
Ismael
Silva vivia em uma casa de cômodos na Avenida Gomes Freire. Sofrendo de uma
úlcera, morreu no dia 14 de março de 1978, aos 72
anos. O selo Discobertas, em convênio com o Instituto Cultural Cravo
Albin, lançou, em 2011, a caixa 100 anos
de música popular brasileira. Ali estão
gravações dos programas realizados pelo radialista e produtor na Rádio MEC
em 1974 e 1975. Para quem gosta de
raridades, é uma boa dica. Em 1982, Ismael foi enredo
da escola de samba Império Serrano. No ano passado, a Estácio de Sá fez uma
série de homenagens aos 110 anos de nascimento do compositor. Vamos terminar
com mais uma pérola do repertório de Ismael Silva: A razão dá-se a quem tem, de Ismael Silva, nas vozes de Francisco
Alves e Mário Reis.
Se meu amor me deixar / Eu não posso me
queixar / Vou sofrendo sem dizer nada a ninguém / A razão dá-se a quem tem / Sei
que não posso suportar / (Se meu amor me deixar) / Se de saudades eu chorar / (Eu
não posso me queixar) / Abandonado sem vintém / (Vou sofrendo sem dizer nada a
ninguém) / Quem muito riu chora também / (A razão dá-se a quem tem)
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