Ester de Abreu, por Rose Esquenazi
Vamos mudar o rumo da prosa. Nesses dois anos de participação no seu
programa, nunca falamos sobre cantoras portuguesas. Hoje, vou corrigir essa
falha ao contar um pouco da história de Ester de Abreu Pereira. Ester nasceu
em Lisboa, no dia 25 de outubro de 1921. A irmã dela também era cantora e se
chamava Gilda Valença. Ester começou a se apresentar nos programas
radiofônicos dirigidos ao público infantil. Em 1940, fez sua estreia na Rádio
Nacional de Lisboa, já como profissional. E, em 1946, depois de um teste,
passou a fazer parte do elenco de artistas.
A carreira de Ester chegou a fazer várias excursões em Portugal. Em 1948,
foi convidada a vir ao Brasil. Era um chamado irrecusável: iria passar dois meses
se apresentando na boate do Copacabana Palace, no espetáculo Sonho nas Berlengas.
Para quem sabe, Berlengas é um lindo arquipélago português, composto por ilhas graníticas,
situado no Oceano Atlântico.
Ester acabou ficando no Rio de Janeiro definitivamente, sendo contratada pela
Rádio Nacional, no mesmo ano de 1948. Ouvimos na abertura do quadro o
maior sucesso da cantora portuguesa gravado em 1952: o fado-canção
Coimbra é uma lição de amor, de José Galhardo e Raul Ferrão.
Ester era muito bonita e chamava a atenção. Costumava enfeitar as capas da
Revista do Rádio e Radiolândia. Como portuguesa, é claro que ela gravou
vários fados, mas se dedicou também aos sambas-canções, boleros, músicas
de Carnaval e baiões. Semana passada, falamos sobre Ivon Curi e as belas
músicas francesas que ele interpretava. Como havia grande variedade musical
na Rádio Nacional, eram também escalados os cantores Fernando Albuerne e
Rosita Gonzales, que cantavam em espanhol.
Já Rui Rei, pseudônimo do paulistano Domingos Zeminian, cantava ritmos
centro-americanos. Rui chegou a ter uma orquestra e costumava se
apresentar com camisas de mangas bufantes que se mexiam ao som das
maracas. Lenita Bruno e Julie Joy eram as responsáveis pela interpretação dos
sucessos norte-americanos. Segundo Luiz Carlos Saroldi e Sonia Virgínia
Moreira, no livro "Rádio Nacional, o Brasil em sintonia"., a emissora refletia,
segundo as palavras dos autores, “a própria Praça Mauá e seus arredores.
Zona portuária repleta de bares e inferninhos à disposição de marinheiros,
oficiais e embarcadiços. (Era uma) Torre de Babel às avessas”.
Havia outra cantora portuguesa na Rádio Nacional, a Olivinha Carvalho. Mas
Ester estava no primeiro time entre as responsáveis pelo sotaque lusitano do
nosso povo irmão. Vamos ouvir Nem as paredes confesso, de Artur Ribeiro.
Quando eu era adolescente, decorava os fados que tocavam na rádio e
na TV e adorava cantar desafinadamente na casa de Isabel, a nossa
costureira. Existiam costureiras naquele tempo. Autêntica portuguesa, ela
achava graça daquelas interpretações. Pelo menos, morria de rir comigo.
Interpretada também por Amália Rodrigues e Nelson Gonçalves, Nem as
paredes confesso ganhou uma versão moderna do ótimo cantor António
Zambujo, de 40 anos, que faz sucesso em Portugal no Brasil. Ouça, com
Ester de Abreu, Nem as paredes confesso.
Em 1950, Ester estreou na gravadora Continental o fado canção Já não sei, de
Antônio Mestre e o fado Pomar da vida, de Renê Bittencourt e Antônio Mestre.
Em 1951, gravou o fado baião Ai, ai Portugal, de Humberto Teixeira e Luiz
Gonzaga e o baião Carro de boi, de Humberto Teixeira e Caribé da Rocha.
No ano seguinte gravou para o carnaval a marcha Cabral no Carnaval, do
cantor e compositor Blackout. Entre 1952 e 1953, teve um romance com o
então prefeito do Distrito Federal, coronel Dulcídio do Espírito Santo Cardoso,
relacionamento que gerou muita fofoca nos jornais e revistas da época. Como
disse Marcus Lontra na época em que trabalhou no Museu de Arte Moderna:
“No Rio de Janeiro, a alma portuguesa perpassa a cidade. Ela se faz presente
na arquitetura, na vida diária das pessoas. É entretanto através da música,
através do fado, que os cariocas aprendem – e vivenciam – o espírito lusitano”.
Ouça Ai, ai Portugal.
Em 1954, Ester de Abreu gravou de Paulo Tapajós e Jorge Henrique a canção
Quero-te outra vez. No mesmo ano lançou seu primeiro LP, pela RCA Victor. E
foi assim, a cada ano se destacava e sempre trazia novidades, como o fox
Gosto milhões, de Cole Porter, com versão de Haroldo Barbosa, em 1955.
Não eram apenas músicas portuguesas que a Nacional escalava para o
Programa César de Alencar. Havia também as atrações especiais como
Musical Poesia, Paisagens de Portugal e Aquarelas de Portugal. Ou seja, as
gerações de imigrantes nascidas aqui e dos brasileiros estavam sendo
enriquecidos pelo sotaque lusitano. O fado-saudade chegava ao ponto máximo
quando Amália Rodrigues, a Rainha do Fado, vinha ao Brasil para se
apresentar. Em 2013, a Rádio Nacional de Brasília fez uma bonita homenagem
a Amália, que morreu em 1999, aos 79 anos. Vamos ouvir a nossa
personagem de hoje, Ester de Abreu, interpretando Sempre que Lisboa canta.
Em 1957, Ester de Abreu gravou de Fernando César e Dolores Duran, a toada
Só ficou a saudade. De Irani de Oliveira e Lourival Faissal, cantou o fado
Canção do imigrante. Em 1962 lançou pela Continental o bolero Que Deus me
dê, da dupla Jair Amorim e Evaldo Gouveia.
A partir dos estudos de Alda de Almeida, jornalista e professora da Faculdade
Veiga de Almeida, aprendemos que, em 2005, havia 61.842 portugueses na
cidade do Rio de Janeiro e quase 83 mil no Estado do Rio. Muitos ainda amam
o fado-saudade e acompanham em algumas estações do Rio de Janeiro
programas dedicados à tradição. A Rádio Bandeirantes Rio, antiga Rádio
Guanabara, a Rádio Rio de Janeiro e a Rádio Metropolitana apresentam
atrações para lembrar canções modernas e antigas: serestas, boleros e fados
que vêm dos anos 40, 50 e 60.
Além disso, os programas informam sobre a programação dos clubes
portugueses que estão vivos e ativos. Casa de Vizeu, Casa do Porto, Casa de
Trás-os- Montes e Alto Douro, Casa de Espinho, Casa dos Poveiros, Casa do
Minho, Clube Português do Rio de Janeiro, Comunidade Paroquial Nossa
Senhora da Ajuda. Os clubes promovem shows e servem churrasco, papas de
sarrabulho e, claro, doces portugueses.
A cantora Ester de Abreu encerrou a carreira artística na década de 1970 e
morreu no dia 24 de fevereiro de 1997, no Rio de Janeiro. O público mais
maduro deve se lembrar dela com carinho, já que tinha uma linda voz. No texto
“Ondas lusitanas: a comunidade luso-brasileira no AM carioca”, Alda de
Almeida cita Fernando Pessoa: “Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode
ver no Universo...”. E já que estamos falando do grande escritor português,
vale a pena ouvir a opinião de Fernando Pessoa no jornal Notícias Ilustrado,
em 1929, sobre o gênero tão português: “O fado não é alegre nem triste. //É um
episódio de intervalo. //Formou-o a alma portuguesa quando não existia e
desejava tudo sem ter força para o desejar.// O fado é o cansaço de alma forte,
o olhar de desprezo de Portugal ao Deus em que creu e que também o
abandonou. //No fado, os deuses regressam, legítimos e longínquos”. Bonitas
palavras, não é? Para terminar, ouça com Ester de Abreu e Francisco
Carlos, o El Broto, Moreninha de Lisboa.
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