sexta-feira, 24 de julho de 2015

A hora do rancho na Segunda Guerra



O RÁDIO FAZ HISTÓRIA - 20/07/2015
Rose Esquenazi

 
Hoje vamos falar, pela segunda vez, sobre os 70 anos do fim da Segunda Guerra e a participação do brasileiro Francis Charlton Hallawell (1912/2004), o Chico da BBC, em  seu trabalho radiofônico pioneiro.  Francis foi para a Inglaterra para lutar como voluntário e assinou o contrato com a BBC no dia 7 de agosto de 1941, dois anos antes de o Brasil declarar guerra aos países do Eixo. No início, Francis era um locutor de notícias, em português. Depois passou a criar programas e, a partir de 1944, como correspondente, enviava despachos jornalísticos, crônicas e programas radiofônicos da Itália para a Inglaterra. De Londres, os técnicos transmitiam para o Brasil, em ondas curtas.  Vamos ouvir locutor da BBC, que chama Francis Hallawell.
Já havia uma massa de público ligada no rádio e nas notícias de guerra nas grandes cidades brasileiras, embora 70% da população ainda morassem no campo. Em 1944, no Brasil, “mais de 100 estações em ondas médias retransmitiam os programas de Chico da BBC”. A BBC era sinônimo de credibilidade, já que as rádios brasileiras estavam sob a mira cerrada dos agentes censores do Departamento de Imprensa e Propaganda, o DIP, do Estado Novo de Getúlio Vargas.
Alguns desses trabalhos foram preservados até hoje em discos de 78 rotações. Hoje vamos falar sobre o programa gravado ao vivo, em 1944, na Itália, talvez no campo de Francolise, não há nenhuma citação clara sobre a origem. Chama-se A Hora do rancho, que contou com a participação de soldados e de outros correspondentes. Todas as pessoas foram reunidas próximos do microfone e do gravador da BBC que ficava dentro de um pequeno carro feito especialmente para esse fim.
O objetivo de Chico era valorizar o soldado junto ao público brasileiro e confortar os ouvintes. As famílias podiam ter certeza de que os filhos, namorados e maridos estavam bem na Itália. Na abertura, ouvimos a voz de speaker em Londres que fez a apresentação do programa. Podemos observar as gírias, as piadas e a leveza com que Chico da BBC conduziu as entrevistas no campo. Falou sobre a “gororoba”, explicou que os soldados precisavam comer porque “nem jipe funciona sem gasolina”. Exagerou ao chamar o cozinheiro-chefe de “maître do quartel-general da FEB”. Arlindo Formé, de São Paulo, o chef entrevistado, com muito bom humor e excelente voz, fez chiste de tudo.
Não sei se todos conseguem entender a gravação, eu mesma tive certa dificuldade, mas ao perguntar sobre qual era a maior dificuldade para se cozinhar para os soldados, o chef disse que é “desviar de inglês”, no caso do Chico da BBC. Apesar de ser brasileiro nato, muitas pessoas o chamavam de inglês, isso até na imprensa local que circulava pelos acampamentos. Talvez porque Chico preservava um leve sotaque herdado de sua família inglesa. Vamos ouvir mais um trecho do programa Hora do Rancho.
Gaiato, Francis quis saber se o chef não tinha vantagens ao comandar uma cozinha de campanha. Arlindo Formé admitiu que sim, agradava as meninas, que provavelmente, eram italianas que cercavam os brasileiros quando a fome aumentava. Devemos nos lembrar de que os italianos estavam na pior nos anos de 1944 e 1945, com várias cidades devastadas por bombardeios da guerra. Não havia comida suficiente, afinal Mussolini já tinha caído e o país “perdera” para os aliados.
Na segunda entrevista, podemos observar que o soldado responsável pelo fogão é uma pessoa mais humilde e hesitante do que Arlindo Formé. E que decorou a sua fala. Esse soldado apresentou e elogiou os soldados responsáveis por trazer a água para a cozinha: “o nosso cabo Netuno”, segundo ele. Citou também o “príncipe das panelas”, responsável pelos panelões, e um craque que fazia arroz. O maior problema da cozinha do acampamento era quando o fogão enguiçava, disse o soldado. Podia dar muita confusão. Além da fome, os soldados enfrentavam o frio e estavam prestes a sofrer com o inverno rigoroso. Nesses momentos, a tensão aumentava. Mas o programa de Chico não era para fazer críticas ou mostrar o lado mais duro da guerra.
Além das refeições no rancho, havia a comida servida quando os pracinhas estavam em movimento ou lutando nos foxholes. O soldado e escritor Joaquim Xavier da Silveira lembrou-se das scatolettas, que ele traduziu como “caixinhas impermeabilizadas e embaladas a vácuo”, que os americanos entregavam aos soldados brasileiros. Havia, segundo ele, três tipos de rações dependendo da ocasião. “A ração K, conhecida como ração de assalto, era entregue à tropa com orientação de só usá-la em casos extremos, quando não havia a menor possibilidade de chegar outro alimento”. Ao todo, continha 900 calorias, consistindo de café ou limonada solúvel, chocolate, biscoitos, lata de queijo, patê ou sopa, cigarros e fósforos e tabletes de purificador de água. A ração C, chamada de ração de combate, tinha seis pequenas latas, três com carne e cereais, e outras com outros artigos, como “biscoitos, cigarros, doces, café, limonada solúvel e açúcar e pastilhas de Halazone para esterilizar a água”. A ração B, a chamada operacional, era para ser consumida quente. O soldado conseguia a refeição em marmitas na própria cozinha da unidade. Continha as três refeições, totalizando 4 mil calorias, segundo Joaquim Xavier da Silveira. Tinha café da manhã, com leite, pão, manteiga de amendoim, ovos mexidos, feitos com ovo em pó, suco de tomate ou laranjada enlatada. No almoço, carne, feijão e arroz, frutas ou suco de frutas, doces, cigarros, fósforos.
O que os italianos mais desejavam eram os chocolates, chicletes e caramelos das rações dos soldados. Em troca desses produtos, eles podiam fazer vários serviços que nem sempre eram bem-vistos pelas autoridades da FEB. Podiam lavar a roupa do soldado, trocar os regalos por um vinho local ou até fazer favores amorosos. Ao chegar à Itália, o correspondente Rubem Braga percebeu que os italianos esperavam os soldados no porto em busca dessas delícias. Braga escreveu: “Não faltam, de resto, os pedintes, homens e mulheres e crianças de voz chorosa que sempre dizem a mesma coisa. Uma sigaretta, ciocolata, caramella. Una scatoletta”.
Em certas crônicas reunidas no livro raro chamado Scatolettas da Itália, Chico da BBC faz o que crítico Antonio Candido denomina “retalhos de vida”. Para ele, os retalhos são “próximos à reportagem jornalística e radiofônica”, que permitem concorrer com outros meios comunicativos e assegurar a função de escritor. Candido registra o número de analfabetos no Brasil, em 1940, é impressionante: nada menos do que 57% da população. E vejam que o índice de leitura havia aumentado em relação a 1920. Nessa época, 75% da população não sabiam ler. Os novos meios de comunicação, como o rádio, iriam abrir portas de informação para os analfabetos.
Apesar da censura, os correspondentes, que raramente eram convidados para ir à linha de frente dos combates na Itália, tiveram uma importante participação durante a guerra. Mesmo camuflando as derrotas e se concentrando no dia a dia dos soldados, enfrentando o eventual mau humor e a antipatia do alto comando da FEB, os correspondentes deram humanidade aos pracinhas na frente italiana. Faziam propaganda e favor dos aliados, o que Rubem Braga chamou de “simples literatura de exaltação cívica”. Mas, na volta para a casa, eles também foram vistos como heróis, ganharam festas e medalhas militares. Chico da BBC ganhou a medalha OBE, Ordem do Império Britânico, dada pela rainha Elizabeth, em 1963, reconhecimento por seu trabalho durante a guerra.
 Durante o conflito, o rádio era o principal meio de comunicação, e Chico da BBC soube tirar grande proveito da gravação da voz humana. O correspondente Joel Silveira fez um resumo dos conflitos já que também não revelou os horrores vividos pelos soldados. “Nessa guerra de menos de oito meses”, escreveu, “a FEB perdeu 443 homens, entre soldados e oficiais, e mandou para os hospitais da retaguarda perto de 3 mil feridos”.
A BBC, fundada em 1922, deu início às transmissões para a América Latina, em espanhol e português, em 1938. Era a forma que encontrou para se fazer presente na América do Sul, onde outras rádios, como a alemã (Rádio Berlim) e a italiana (AIR) já estavam por aqui fazendo propaganda nazista e fascista. “Uma guerra de palavras estava sendo travada entre 1939 e 1945, e tanto nos países democráticos quanto nos totalitários o microfone tornou-se uma arma poderosa”. Em 1941, a emissora inglesa estreou o Serviço Brasileiro feito especialmente para ouvintes de fala portuguesa. A programação durava quatro horas e tinha como objetivo a informação, com notícias da guerra, e o entretenimento, com diferentes programas culturais. Havia transmissões em 43 idiomas, para países de várias partes do mundo. O mesmo fazia a Rádio Berlim, antes do fim da guerra.
Até hoje, a BBC é considerada a mais importante estação de rádio do mundo.  Não só pela credibilidade, mas também pela seriedade de seu conteúdo e excelência de seu entretenimento, que inclui a TV. Pertencente ao Governo do Reino Unido,é mantida por uma taxa de licença por todas as famílias que tenham rádio ou TV. A emissora emprega mais de 19 mil pessoas e teve um custo operacional de 5 bilhões de libras esterlinas entre 2014 e 2015. Atualmente, enfrenta certa crise econômica. No início do mês, a emissora demitiu cerca de mil funcionários

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